Deu no “The
New York Times”, o mais prestigioso jornal da potência imperial do norte.
O relato espantoso está na edição internacional em português, encartada na
“Folha de São Paulo” do dia 15 de abril de 2013. Assinada por Mark
Mazzetti, a matéria fala de acontecimentos localizados no coração das trevas,
fora do alcance do entendimento razoável e muito além dos limites do que se
pode aceitar.
Os fatos são
antigos e de localização longínqua, mas chegam aos quatro cantos do mundo como
brutal atualidade. Em junho de 2004, no Waziristão do Sul, região rebelada do
Paquistão, Nek Muhammad, líder da tribo pashtun, conversava por telefone via
satélite com jornalistas sobre suas façanhas no confronto com as forças do
exército paquistanês. No curso da conversa, segundo está no relato,
perguntou a um de seus seguidores sobre o estranho pássaro metálico que pairava
acima dele. Ato contínuo, um míssil destruiu o casebre de onde falava, matou
Muhammad e várias outras pessoas que estavam ao seu lado, inclusive duas
crianças.
Os militares
paquistaneses, prontamente, assumiram a autoria do ataque, registrado nos anais
da “normalidade” dos conflitos que assolam a região. Segundo afirma a matéria
em foco, uma mentira deslavada. Na realidade, Muhammad e seus companheiros
foram mortos pela CIA, que usava pela primeira vez no Paquistão um “Drone
Predator”, o avião teleguiado e portador de licença para matar os “inimigos”
condenados sem julgamento pelo aparato repressivo norte-americano. Foi o
ato inaugural, fora das áreas de guerra declarada, do conceito macabro e da
prática aterrorizante dos chamados “assassinatos seletivos”. Que já
começou exibindo o seu cortejo de “danos colaterais”.
O pobre
Muhammad, fato sabido antes do ataque, não estava no rol dos marcados para
morrer. Deu azar. Ele incomodava o exército paquistanês no exato período em que
o serviço secreto americano precisava de carta branca para executar os que,
naquela região, constavam da sua lista letal. A CIA concordou em matá-lo (e
quem mais estivesse por perto) em troca do livre acesso ao espaço aéreo.
Foi, portanto, uma barganha sinistra entre serviços secretos: se a CIA
matasse Muhammad, a ISI autorizaria voos de “drones” sobre seu território. Uma
malha de cumplicidades típica da lógica do terrorismo de Estado.
A chamada
“guerra preventiva”, os relatórios que dão conta do uso sistemático da tortura
nas prisões secretas da CIA, tipo Guantánamo, espalhadas mundo afora, são
feições distintas do mesmo absurdo. Diante do impacto negativo e no
debate sobre a eficácia de tais procedimentos, o aparato repressivo do império
resolveu “evoluir” de opinião. Ao invés de capturar, melhor matar. Com a
adoção do “assassinato seletivo” como política de Estado, a eficácia da força
bruta foi elevada ao seu ponto culminante.
O episódio
ocorrido no Wasiristão, entre outras coisas, revela a impossibilidade de
quantificar o número dos mortos pelos aviõezinhos da CIA. Calcula-se em
centenas de ataques e milhares de seres humanos liminarmente condenados e
executados como ameaçadores terroristas. Sem contar os mortos (nem sempre)
registrados como danos colaterais: as vítimas de barganhas como o infeliz
Muhammad, ou qualquer um que tiver o azar de estar nas proximidades dos
marcados para morrer.
Os
aviõezinhos do “assassinato seletivo”, tudo indica, são a nova forma americana
de combate. A mais avançada tecnologia está posta a serviço do mais primitivo
dos instintos. A máquina militar de poder inigualável opera as agências de
inteligência como força paramilitar em manobras típicas do pior tipo de
terrorismo, aquele a partir do qual todo o ciclo do terror se retroalimenta: o
terrorismo de Estado. Ancorado na força bruta e fora do alcance de qualquer
controle imaginado pelo processo civilizatório, o império em decadência se
sustenta na barbárie tecnicizada.
Léo Lince é sociólogo.
Fonte: Correio da
Cidadania
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