sábado, 23 de outubro de 2010

FUTURO INTERROMPIDO


Cristovam Buarque
Não deveria haver surpresa no fato de o debate eleitoral estar sendo pautado pelo tema do aborto, da sexualidade e da crença no cristianismo.

Dois fatos levam a população a se preocupar com isso: de um lado, décadas de queda nos valores morais da sociedade — resultando em corrupção, desarticulação da família, generalização da droga, gravidez precoce, abandono de mulheres pelos maridos, prevalência da riqueza como objetivo central e valorização absoluta do consumo — fizeram com que ela, desarvorada pela falta de valores, buscasse abrigo na religiosidade.

De outro lado, nos últimos oito anos a apatia ideológica fez com que os partidos ficassem parecidos, o debate sem idéias novas e os candidatos pouco diferentes entre si.

Debatem-se velhos temas: como crescer, e não qual crescimento; privatizar ou estatizar, e não dar caráter de interesse público a toda atividade econômica, estatal ou privada; como construir mais escolas técnicas, e não como fazer uma revolução na Educação; quem vai distribuir mais Bolsa Família, e não quem a tornará desnecessária.

Nesta crise de valores e neste vazio de ideias, o aborto se torna tema central, embora nada tenha a ver com o cargo de presidente da República. Além disso, este tema fica limitado à defesa da vida do indefeso embrião, sem tocar no assunto do direito à vida daqueles que já nasceram, mas que são abandonados pela sociedade e pelos governos que ela elege.

Para serem levados a sério, os que defendem o direito à vida do embrião deveriam defender também o direito à vida daquele abortado logo depois do nascimento, por falta de uma incubadora que sirva de ponte entre a barriga da mãe e o mundo real onde vai respirar. Mas o Brasil abandona muitos de seus recém-nascidos em hospitais sem UTI infantil, forçando o médico a escolher quais terão a chance da vida e quais serão abandonados à morte, provocando um aborto pós-parto. Um recém-nascido é ainda mais indefeso do que um embrião na barriga da mãe, mas não vemos os que se opõem à descriminalização do aborto criminalizando também os responsáveis pelo aborto decorrente do abandono nas maternidades públicas.

O debate eleitoral mostrou forte movimento contra o aborto provocado por mães antes do parto, mas não há movimento contra os responsáveis pelo fato de que todos os dias mães amorosas perdem seus filhos por falta de atendimento médico no pós-parto.

Também ocorre um aborto quando uma criança morre por desnutrição ou falta de remédios. Vinte e cinco anos depois da restauração da democracia, depois da retomada do crescimento econômico, da estabilidade monetária e da afirmação do Brasil no cenário mundial, depois de 16 anos de governos social-democratas, milhares de crianças morrem no Brasil por falta de comida e de remédios, com suas vidas interrompidas, abortadas.

Seus aborteiros não são mães, nem médicos, são os governos e todos nós, seus eleitores e contempladores passivos, que nos omitimos diante do direito à vida, enquanto comemoramos PIB, Copa do Mundo, Olimpíadas, trem-bala, pontes, estradas, hidrelétricas...

É também um aborto não oferecer escola de qualidade para toda criança.

Bicho só precisa de comida e ar, nasce uma só vez, quando sai da barriga da mãe ou do ovo onde é gestado.

Gente nasce duas vezes: quando sai da barriga e quando entra na escola.

Não entrar na escola é ter o futuro interrompido, abortado. No Brasil, crianças são abortadas a cada minuto, ao abandonarem a escola antes do tempo, como se estivessem sendo expulsas do útero materno antes dos nove meses de gravidez. Mas não há movimento contra esse aborto.

O Brasil é um país que debate as posições dos candidatos sobre o aborto pré-parto, que nem depende do presidente, e se esquece de debater o cuidado das crianças no pósparto, abortando-as por falta de cuidados, remédios, comida, escola. E abortando tantas crianças, diante do silêncio de todos, inclusive de líderes laicos e religiosos, vamos interrompendo o futuro do Brasil.


CRISTOVAM BUARQUE é professor da UnB e senador (PDT-DF).

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

COERÊNCIA RARA: Heloisa Helena sai da presidência do PSOL por divergir do apoio à Dilma

Comunicado de Afastamento da Presidência Nacional do PSOL


1. Agradeço a solidariedade de muitos diante da minha derrota ao Senado (escrevo na primeira pessoa pois sei, como em outras guerras ao longo da história já foi dito "A vitória tem muitos pais e mães, a derrota é orfã!").

Registro que enfrentei o mais sórdido conluio entre os que vivem nos esgotos do Palácio do Planalto - ostentando vulgarmente riquezas roubadas e poder - e a podridão criminosa da política alagoana. Sobre esse doloroso processo só me resta ostentar orgulhosamente as cicatrizes, os belos sinais sagrados dos que estiveram no campo de batalha sem conluio, sem covardia, sem rendição!

2. Comunico à Direção Nacional e Militância do PSOL a minha decisão de formalizar o que de fato já é uma realidade há meses, diante das alterações estatutárias promovidas pela maioria do DN me afastando das atribuições da Presidência. Como é de conhecimento de todas(os) fui eleita no II Congresso Nacional por uma Chapa Minoritária, composta majoritariamente pelo MES e Poder Popular (MTL), em um momento da vida partidária extremamente tumultuado que mais parecia a velha e cruel opção metodológica das lutas internas pelo aparato diante dos escombros de miserabilidade e indigência da nossa Classe Trabalhadora. Daí em diante o aprofundamento da desprezível carnificina política foi ora transparente ora dissimulado mas absolutamente claro!

Assim sendo, em respeito à nossa Militância e aos muitos Dirigentes que tanto admiro e por total falta de identidade com as posições assumidas nos últimos meses pela maioria das Instâncias Nacionais (culminando com o apoio a Candidatura de Dilma!) tenho clareza que melhor será para a organização e estruturação do Partido o meu afastamento e a minha permanência como Militante Fundadora do PSOL, sempre à disposição das nobres tarefas de organização das lutas do nosso querido povo brasileiro! Avante Camaradas!

Maceió, 19 de Outubro de 2010.

Heloísa Helena




A DIREITA CONTROLA OS DOIS LADOS

DEVAGAR COM O ANDOR

“Quero fazer uma análise mais profunda, porque estou convencido de que os períodos de Fernando Henrique Cardoso e o de Lula, se não são a mesma coisa, são parte de um mesmo projeto.” – Alain Touraine – sociólogo francês

Tenho recebido muitas mensagens de companheiros(as) que se engajaram na campanha presidencial. Os ânimos estão exaltados. Um lado, apelando para baixarias, acusa que o outro é que está baixando o nível e vice-versa.

Para quem professa com convicção uma ideologia de esquerda, esse não é o caminho adequado. É preciso baixar a bola e, em vez de ataques, analisar a conjuntura nacional, o contexto internacional, os retrocessos e os avanços políticos havidos e o comportamento dos políticos e dos partidos desde a Constituinte.

Peço pois, licença para compartilhar uma reflexão, ainda carente de discussão com muitas(os) companheiras(os).

As candidaturas dos partidos de esquerda, que defendem os interesses da classe trabalhadora, infelizmente tiveram votação inexpressiva. Há mais de uma década, temos vivido um retrocesso político no país, devido a fragmentação das organizações da classe trabalhadora e a fragilidade da política de comunicação dos grupos de esquerda. As ideias conservadoras têm progredido perigosamente. Deveríamos fazer uma análise dos partidos políticos que limitam suas atuações às campanhas eleitorais e não fazem trabalho de organização e de formação política.

Quem luta pela implantação de uma sociedade mais justa no Brasil, com um regime econômico que, com soberania, desenvolva o país e distribua renda com justiça; por um regime político que propicie igualdade de oportunidades, cultura, educação, saúde, previdência digna, direitos trabalhistas, proteção à velhice, ao meio ambiente, democratização dos meios de comunicação, esses não podem alimentar a perspectiva de que avançaremos rumo ao socialismo com um desses dois candidatos e seus condomínios políticos no poder. Ou ainda, pensar que para a retomada das lutas, o candidato X será melhor do que Y; que um deve ser exterminado nas urnas, pois o outro será enquadrado com as lutas populares.

Temos que voltar os olhos para o futuro. Devemos ter uma perspectiva de atuação das esquerdas, mas é indispensável que as lideranças populares, seja em sindicatos ou em partidos ou outras organizações, mantenham coerência e independência de quaisquer governantes com o perfil dos que estão disputando as eleições.

A meu ver, os sindicalistas cooptados, os que se corromperam, são caso perdido. Se ganhar Lula, continuarão se locupletando na máquina pública. Se ganhar o outro, muitos desses “líderes” imediatamente aderirão ao novo governo. De todos porém, por desmoralizados, nada se pode esperar.

As esquerdas (os que não aderiram ou os que abandonaram o cipoal ideológico do governo Lula), devido ao processo eleitoral, estão diante de uma excelente oportunidade para construir unidade para a retomada das lutas populares. Organizar, politizar e mobilizar os trabalhadores urbanos (os rurais contam com bons instrumentos como o MST e a Via Campesina), os estudantes e outros segmentos. Isso não será com os dirigentes sindicais e estudantis que estão priorizando ocupação de espaços em governos.

Para mim, repito, é ilusão pensar que um desses campos que disputam as eleições, vão propiciar avanços para as lutas de emancipação dos trabalhadores, rumo ao socialismo. Essa briga na internet deveria considerar diversos aspectos, como:

Em termos de privatização, o governo FHC deixou um legado de traição, entregando até as entranhas da pátria ao privatizar a Vale do Rio Doce. Uma ignomínia que o governo Lula não procura reverter. Mas Lula também faz privatizações, tão indecentes quanto as de FHC. Ou não é privatização, doar recursos públicos a empresas nacionais e estrangeiras para aquisição de outras empresas ou para aumento de capital? E, pagando juros de 10,75% para captar, repassa ao BANDES que “empresta” à taxa TJLP de 6%. Fosse aplicado em algum investimento de infraestrutura, seria correto. Mas não é. Basta ver o socorro financeiro ao Banco Votorantin e as doações à Votrantin Papel e Celulose para comprar a Aracruz Celulose. Foram R$ 2,4 bilhões, sem contar a compra pelo BNDES de 49.99% do capital votante do banco, pagando o valor de todo o banco.

O escandaloso PROER do FHC precisa sempre ser condenado. Mas, e a farra que Lula faz com as empreiteiras, com os bancos públicos concedendo empréstimos subsidiados para compra ou criação de outras empresas? Passaram a atuar, além do seu ramo, em petroquímica, mineração, produção de etanol, exploração de óleo e gás, telecomunicações, gestão de rodovias com pedágios privilegiados, estaleiros, Seguros etc. Tudo a custa do bondoso BNDES, como o “affair” Telemar-OI-Brasil Telecom.

Para comprar a Brasil Telecom, a OI (que é sócia do Lulinha na Gamecorp) recebeu empréstimo de R$ 4,3 bilhões do Banco do Brasil e R$ 2,6 bilhões do BNDES. Lula, alterando a Lei de Outorgas, viabilizou a operação e a OI, de quebra, livrou-se de uma multa de R$ 490 milhões.

A JBS Friboi (carne bovina) entrou no mercado de capitais em 2007. Em 2005 adquiriu a Swift Armour Argentina; em 2007 a Swift Fieids & Co., dos EUA. Em 2008 a Inalca (Itália) e em 2009 engoliu a Tatiara Meat Company da Austrália. Lançou debêntures e o BNDES adquiriu 65% por R$ 2,2 bilhões. E mais: em 2009 o BNDES jogou na Bertin a fábula de R$ 5,7 bilhões, que logo depois foi comprada pela JBS, surgindo uma nova holding que comprou a Pilgrim”s Pride, com negócio nos EUA, México e Porto Rico. Para isso, lançou debêntures no total de R$ 3,4 bilhões e o BNDES comprou 99%. Essas operações não criaram sequer um emprego no Brasil. Há muitos outros casos.

A oligopolização do setor de supermercados começou com FHC e não parou nos últimos anos, inclusive com invasão de estrangeiros que engoliram redes nacionais.

Nenhum dos candidatos aborda aspectos da política econômica. Não se colocam contra a autonomia e independência do Banco Central; não falam nos aspectos danosos do câmbio flexível, dos juros, da dívida que já ultrapassou os R$ 2 TRILHÕES. Auditoria da dívida... ora, não vão mexer nos interesses dos banqueiros.

Sobre Previdência Social (principalmente gestão quadripartite), Convenção 158 da OIT, retomada do monopólio estatal do petróleo, Abertura dos Arquivos da Ditadura etc., tudo isso é tabu para eles. O famigerado Fator Previdenciário, criado por FHC, teve sua extinção vetada por Lula.

E quanto aos escândalos, que estão sendo tão citados? Vejamos:

Governo FHC: Anões do Orçamento, compra de votos para reeleição, precatórios, do DNER, Sudene, Sudam, Privatizações, Proer, Bancos Marka e Fonte-Cindam etc. etc.

Governo Lula: Mensalão, Sanguessugas, Dossiê Vedoin (crime eleitoral- contra José Serra), Caos do tráfego aéreo, Vampiros, Furacão, Navalha.....

FHC engendrou a Lei que permite leilões de bacias sedimentares. E fez quatro leilões. Lula realizou seis leilões.

Já recebi, várias vezes, e-mails com entrevistas do Ciro Gomes. Uma é a favor do PT. Foi uma enxurrada de correios! Outra entrevista é a favor do PSDB. Outra enxurrada. Quanto valor dão a esse indivíduo! Mas só quando é favorável.

Mas devemos também voltar os olhos para o Parlamento.

É bom que alguns senadores reacionários, ex PFL etc., não tenham sido reeleitos. Mas quem entrou em seus lugares? A Câmara dos Deputados, como o Senado, terá predominância reacionária. Vejamos:

A coligação governamental elegeu 311 deputados Terá maioria suficiente para alterações na Constituição. O PT terá 88; o PMDB, 79; o PR, 41; o PSB, 34; o PDT, 28; o PSC, 17; o PCdoB, 15; o PRB, 8, e o PTC, 1. Os partidos da coligação José Serra elegeram 112 deputados – 53 do PSDB, 43 do DEM, 12 do PPS e 4 do PMN. O PV elegeu 15, e o PSOL manteve três deputados. Outros oito partidos independentes obtiveram o seguinte resultado: O PP elegeu 41; o PTB, 21; o PTdoB, 3. PHS, PRP e PRTB elegeram cada qual 2, e PTC e PSL, 1. TRISTE QUADRO DO NOSSO FUTURO PARLAMENTO. Quantos parlamentares de esquerda? Prestem atenção ao quadro acima. É trágico!

Quem visa apenas o bem-estar social, os interesses das classes trabalhadoras, deve apoiar toda proposição que vá ao encontro dos seus princípios, parta a iniciativa de onde partir. Não deve aderir a qualquer governo ou candidatura, mas apoiar medidas que eventualmente estejam de acordo com suas ideias. Assim como não deve aderir a uma oposição sem finalidade, apenas oportunista.

Alberto Pasqualini ensinou: “Um partido que realmente propugna o bem-estar social e, especialmente, os interesses das classes trabalhadoras deve apoiar toda proposição sincera coincidente com as formulações de seu programa, parta a iniciativa de onde partir. Pode um partido não querer se corresponsabilizar em determinada administração; porém, jamais lhe será lícito enveredar pelo caminho da oposição sem finalidade. Um partido, pois, que pretende realmente representar e defender as classes trabalhadoras, deve seguir em uma linha construtiva e não negativista. Para ser construtiva não é necessário que demande o palácio do governo em busca de acomodações e arranjos políticos, ou que renuncie ao direito da crítica; para não ser negativista, bastará que, na solução de qualquer questão ou problema, se inspire unicamente nas diretrizes do seu programa e adote a atitude e a posição que o bem comum e os interesses coletivos aconselham”.

É realmente de direita um grupo que tem entre seus componentes os Srs. Armínio Fraga, Tasso Jereissati, David Zilberstajn, Demóstenes Torres, Kátia Abreu, FHC, Ronaldo Caiado, os Bornhausen, Marco Maciel e muitos outros que apoiam o Serra.

Mas, não são de direita também, o Henrique Meireles, o José Sarney, o Renan Calheiros, o Fernando Collor, Francisco Dornelles, Romero Jucá, Romeu Tuma, Jader Barbalho, e muitos outros, que apoiam a Dilma?

Vê-se que quem está bastante confortável é a Direita. Comanda os dois lados.

FHC quis eliminar Era Vargas. Certamente, por ser contra direitos trabalhistas e contra industrialização. LULA declarou que a CLT é o AI-5 dos trabalhadores.

Eu, pessoalmente, tive muitas experiências com o PT, embora nunca me tenha filiado a esse Partido. Coloquei um tijolinho na criação da CUT, em 1983, e participei de sua primeira Direção Nacional. Na CUT-RJ, exerci os cargos de Vice-Presidente, Secretário de Formação Sindical, Secretário Geral e Tesoureiro. Por não ser filiado ao PT, não podia ser presidente, embora fosse presidente do Sindicato dos Bancários, baluarte da construção da Central no Rio de Janeiro. Mas, quando dos descaminhos da Central, comecei a rebelar-me e passei maus pedaços que não convém, neste instante, comentar ou declarar. Mas não são os problemas dessa fase que me levam a adotar posição sobre candidatura presidencial. Apenas pude descobrir que essa organização não titubeia em transpor a fronteira da criminalidade para se impor. Mas, crimes hediondos o PSDB também os pratica.

Mas pretendo patentear que as esquerdas devem se preparar para serem oposição em qualquer governo que venha a assumir e não gastar tanto tempo discutindo quem é o mais sujo.

Entendo que deve-se compreender as razões tanto dos que votarão na Dilma, dentre estes muitos valorosos companheiros. Mas também não demonizar os que não acompanharão essa posição. Dentre os que defendem Serra, há muitos brilhantes companheiros que devemos respeitar, como o Jackson Lago, por exemplo, que tem brilhante folha de lutas pelas causas populares e contra o Império da família Sarney.

A terceira posição, também respeitável é de ANULAR; protesto legítimo de quem não está satisfeito com nenhum dos candidatos. Afinal, anular voto para cargo executivo, diferentemente de anulação para Parlament4o, é PROTESTO contra o status quo. Não se escarnecer companheiros que tomam essa posição, como o excelente Plínio de Arruda Sampaio.

RONALD SANTOS BARATA (em 17 de outubro de 2010)

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Entrevista do sociólogo Francisco de Oliveira, fundador do PT

No começo de 2003, ano em que rompeu com o PT, o sociólogo Francisco de Oliveira, 76, afirmou que "Lula nunca foi de esquerda".

Agora, o professor emérito da USP dá um passo adiante e diz que Lula, mais que Fernando Henrique Cardoso, é "privatista numa escala que o Brasil nunca conheceu".

Na entrevista abaixo, Oliveira, um dos fundadores do PT, também afirma que tanto faz votar em Dilma Rousseff (PT) ou José Serra (PSDB), analisa o papel de Marina Silva (PV) e critica a entrada do aborto no debate político pela ótica da religião.


Folha - Qual a sua avaliação sobre o debate eleitoral no primeiro turno?

Francisco de Oliveira - Fora o horror que os tucanos têm pelos pobres, Serra e Dilma não têm posições radicalmente distintas: ambos são desenvolvimentistas, querem a industrialização...
O campo de conflito entre eles é realmente pequeno. Mas, por outro lado, isso significa que há problemas cruciais que nenhum dos dois está querendo abordar.


Que tipo de problema?

Não se trata mais de provar que a economia brasileira é viável. Isso já foi superado. O problema principal é a distribuição de renda, para valer, não por meio de paliativos como o Bolsa Família. Isso não foi abordado por nenhum dos dois.
A política está no Brasil num lugar onde ela não comove ninguém. Há um consenso muito raso e aparentemente sem discordâncias.


Dá a impressão que tanto faz votar em uma ou no outro...

É verdade. É escolher entre o ruim e o pior.


Qual a sua opinião sobre a movimentação de igrejas pregando um voto anti-Dilma por causa de suas posições sobre o aborto?

É um péssimo sinal, uma regressão. A sociedade brasileira necessita urgentemente de reformas, e a política está indo no sentido oposto, armando um falso consenso.
O aborto é uma questão séria de saúde pública. Não adianta recuar para atender evangélicos e setores da Igreja Católica. Isso não salva as mulheres das questões que o aborto coloca.


O que significa a entrada desse tema no debate?

Representa o consenso por baixo devido ao êxito econômico. Essas posições conservadoras ganham força. Há uma tendência a todo mundo ser bonzinho. Nesse contexto, ninguém quer tomar posições consideradas radicais.
Com o progresso econômico, há um sentimento de conformismo que se alastra e se sedimenta, as pessoas ficam medrosas, conservadoras. Isso está ocorrendo no Brasil.
Gente da classe C e D mostra-se a favor de uma marcha de progresso lenta e contínua. Eles não querem briga, não querem conflito. Por isso o Lula paz e amor deu certo.


Se as pessoas tornam-se conservadoras, o que explica a divisão do Brasil quando considerada a votação de Dilma e Serra nos Estados?

É um racha. Significa que a questão da desigualdade regional ainda é muito marcante. Aliás, essa é outra questão que está fora da discussão. Os dois não querem abordar o tema. O que eles têm a dizer sobre os problemas regionais? O que fazer com as regiões deprimidas?
Por baixo disso tudo está a velha história de que São Paulo é uma locomotiva que puxa 25 vagões vazios.
Essa tensão existe. Esse desequilíbrio vai criando a sensação de que há um lado pobre e um lado rico. Como se houvesse um voto comprado, de curral eleitoral, e outro consciente. Há de fato uma fratura, e isso ressurge em períodos eleitorais.


Marina aparece como uma terceira força sustentável?

Acho que não. A ascensão dela se dá pela falta de radicalização dos dois principais, e a questão do ambiente é relativamente neutra. Não vejo eco na sociedade, a não ser de forma superficial. Não é um tema que toca nos nervos das pessoas. A onda verde é passageira.


O sr. foi um dos primeiros a romper com o PT, em 2003, e saiu fazendo duras críticas ao presidente. Lula, porém, termina o mandato extremamente popular. Na sua opinião, que lugar o governo Lula vai ocupar na história?

A meu ver, no futuro, a gente lerá assim:
Getúlio Vargas é o criador do moderno Estado brasileiro, sob todos os aspectos. Ele arma o Estado de todas as instituições capazes de criar um sistema econômico. E começa um processo de industrialização vigoroso. Lula, é bom que se diga, não é comparável a Getúlio.
Juscelino Kubitschek é o que chuta a industrialização para a frente, mas ele não era um estadista no sentido de criar instituições.
A ditadura militar é fortemente industrialista, prossegue num caminho já aberto e usa o poder do Estado com uma desfaçatez que ninguém tinha usado.
Depois vem um período de forte indefinição e inflação fora de controle.
O ciclo neoliberal é Fernando Henrique Cardoso e Lula. Coloco ambos juntos. Só que Lula está levando o Brasil para um capitalismo que não tem volta. Todo mundo acha que ele é estatizante, mas é o contrário.

Como assim?

Lula é mais privatista que FHC. As grandes tendências vão se armando e ele usa o poder do Estado para confirmá-las, não para negá-las. Então, nessa história futura, Lula será o grande confirmador do sistema.
Ele não é nada opositor ou estatizante. Isso é uma ilusão de ótica. Ao contrário, ele é privatista numa escala que o Brasil nunca conheceu.
Essa onda de fusões, concentrações e aquisições que o BNDES está patrocinando tem claro sentido privatista. Para o país, para a sociedade, para o cidadão, que bem faz que o Brasil tenha a maior empresa de carnes do mundo, por exemplo?
Em termos de estratégia de desenvolvimento, divisão de renda e melhoria de bem-estar da população, isso não quer dizer nada.

Em 2004, o sr. atribuiu a Lula a derrota de Marta na prefeitura. Qual sua avaliação de Lula como cabo eleitoral de Dilma?

Ele acaba sendo um elemento negativo, mesmo com sua alta popularidade. O segundo turno foi um aviso. Há uma espécie de cansaço. Essa ostensividade, essa chalaça, isso irrita profundamente a classe média. É a coisa de desmoralizar o adversário, de rebaixar o debate. Lula sempre fez isso.

Como o sr. avalia as afirmações de que o comportamento de Lula ameaça a democracia?

Não vejo como uma ameaça. Mas o Lula tem um componente intrinsecamente autoritário.


Em que sentido?

Ele não ouve ninguém, salvo um círculo muito restrito, e ele tem pouco apreço por instituições.
Eu o conheço desde os anos de São Bernardo. Ele tem a tendência, que casa perfeitamente com o estilo de política brasileira, de combinar primeiro num grupo restrito e, depois, fazer a assembléia. Ele sempre agiu assim.
Não é pessoal, é da cultura brasileira, ele foi cevado nisso. Mas não que ele queira derrubar a democracia.
Isso é da cultura política em que ele foi criado: o sindicalismo, que é um mundo muito autoritário, muito parecido com a cultura política mais ampla. E ele se dá bem, sabe se mover nesse mundo.
As instituições de fato não são o barato dele. Mas ele não ameaça a democracia do ponto de vista mais direto nem tem disposição de ser ditador. Acho essas afirmações um exagero, uma maldade, até. Elas têm um conteúdo político muito evidente.
Agora, certa ala do PT, com José Dirceu... Esse tem projetos mais autoritários.

E essa ala ganharia mais força num governo Dilma?

Acho que não. Porque Lula vigia ele de muito perto. Lula não gosta dele [José Dirceu]. Tem medo, até, do ponto de vista político. Ele veio de outra extração, a qual Lula detesta. Uma extração propriamente política, de esquerda.

O sr. já disse que Lula havia matado a sociedade civil. O que pode acontecer num governo Dilma e Serra? Haveria diferença?

Os governos tucanos têm horror ao povo. Isso não é força de expressão. É uma questão de classe social.
Eles não têm contato com o real cotidiano popular. Eles não andam de ônibus, não têm experiência do cotidiano da cidade. Nem de metrô eles andam, o que é incrível.
A cidade é grande, tem violência, a gente sabe. Mas eles não sabem como é o transporte, como são os hospitais, as escolas públicas. Há uma fratura real, eles perderam a experiência do cotidiano real. E isso não entra pelas estatísticas, só pela experiência.
Por causa disso, o governo deles é sempre uma coisa muito por cima. Eles são pouco à vontade com o popular. Essa é a diferença marcante em relação a Lula.
Sobre Dilma eu não sei. Ela pode também sofrer desse mal.


Mas, do ponto de vista da evolução e da função dos movimentos sociais, qual dos dois é preferível?

Eis uma questão difícil. Os tucanos, com esse horror a pobre, tendem sempre a aumentar essa fratura, essa separação. Os tucanos não têm jeito...


Fonte: Folha de São Paulo de 17/10/2010 (Uirá Machado)

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Incontinências eleitorais de um 2º turno perdido


Oscarino Arantes

Quem será o próximo presidente – ou “presidenta” – do Brasil? Se esta pergunta realmente importasse, não valeria à pena escrever sobre o que eu chamo de “incontinências” desse 2º turno. Pela terceira vez nos últimos oito anos, PT e PSDB se encontram no 2º turno da eleição presidencial. Dessa vez, no entanto, a expressão carismática de um candidato, cede lugar a troca de acusações desairosas, com retoques de uma ópera bufa.

Marina Silva, que ensaiou a pantomima de “terceira via”, servindo de escada para os verdadeiros protagonistas, após surpreender no 1º turno catalizando na última hora os votos de protesto contra o status quo, segue o script rumo à irrelevância nesse 2º turno. Afinal, era muito prematuro infirmar um “eleitorado” para Marina, o PV ou à causa ambiental. Nenhum deles possui densidade política ou social para se habilitar a tanto. Por isso, a neutralidade que se anuncia já era esperada. Um compromisso direto, provavelmente não teria o efeito correspondente em votos, e exporia a fragilidade do resultado obtido no 1º turno. Melhor sair de cena ainda sob aplausos.

Serra por sua vez, reedita o enredo das duas últimas eleições, quando o PSDB chegou no 2º turno, já na sobrevida com aparelhos. A verdadeira “herança maldita” de FHC foi deixada para seus correligionários: os tucanos não têm discurso desde que o reformismo se perdeu no casuísmo político e o governo Lula se apropriou da estabilidade econômica. Serra joga agora suas fichas na inabilidade ‘congênita’ de Dilma que se revela sob pressão, enquanto patina em sua própria falta de liderança e carisma. O desafio para Serra é se vender como “novo” de um projeto consumado.

Por fim, temos Dilma, que além da falta de habilidade, está demonstrando uma falta de “aderência” na imagem de Lula, apesar de todo o esforço de marketing montado no Palácio do Planalto. O presidente alcança a impressionante marca de 80% de aprovação e sua candidata, no 2º turno, gira em torno de 46% do eleitorado. Talvez esse fenômeno de ‘descolamento’, possa ser explicado ao inverso: é a imagem de Dilma que não cola em Lula. Lembremos que Lula, em todo seu governo, demonstrou uma incrível capacidade “teflon” – ou seja – nenhum escândalo de corrupção, por mais próximo que fosse, conseguia “colar” no Presidente. Isso mais uma vez comprova que a liderança carismática é uma projeção personalíssima mitificada, que não se propaga além do seu personagem, nem costuma sobreviver a ele. Lula não consegue “vender” Dilma para seu eleitorado, porque Dilma não é Lula, e isso está claro para a massa de simpatizantes do Presidente.

Quem será o próximo presidente – ou “presidenta” – do Brasil? Essa pergunta continua sem relevância, diante de um cenário político absorto nas incontinências vazias de um 2º turno, perdido para o país.