terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Trenzinho do Caipira - Camerata de Violões Heitor Villa-Lobos

Eliana Calmon e a 'Caixa Preta' do Poder Judiciário no Brasil

Carlos Newton

Não há dúvida de que a ministra Eliana Calmon, corregedora do Conselho Nacional de Justiça, merece ser considerada a Personalidade do Ano. Quando mais tentam calá-la e evitar que atue em prol do interesse público, mais ficam aparentes as podridões do Judiciário.

Agora a ministra acusa a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), a Associação de Juízes Federais do Brasil (Ajude) e a Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho (Anamatra) de divulgarem informações “desencontradas e absurdas” de que ela estaria investigando mais de 200 mil pessoas, com a intenção de fazer um “verdadeiro linchamento moral”.

A corregedora do Conselho Nacional de Justiça disse que não é nada disso. A instituição realiza investigações patrimoniais de juízes e servidores do Judiciário há quatro anos, mas o trabalho só gerou polêmica quando chegou no Tribunal de Justiça de São Paulo, uma conseqüência do “corporativismo” das associações de magistrados, segundo ela.

“Todos os servidores públicos são obrigados a apresentar a declaração de imposto de renda. Não é para ficarem guardados num arquivo, mas para que os órgãos de controle examinem quando houver suspeita de transações ilícitas”, disse Calmon.

Ela argumentou que decidiu fazer investigações pontuais, com base em informações enviadas pelo Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras), em casos de movimentações consideradas atípicas – acima de R$ 250 mil. No caso do tribunal de São Paulo, foram identificadas 150 transações do tipo e, por isso, ela decidiu investigar.

“Foram apenas 150, como falar agora em mais de 200 mil investigados. Questionamos, até porque pode ser tudo legal, fruto de herança, sorteio”, explicou.

De toda forma, há algo de estranho no ar, porque os próprios juízes não cumprem a lei. A ministra disse que a inspeção realizada no TJ-SP verificou que 45% dos magistrados não enviaram à corte suas declarações de imposto de renda, desrespeitando a legislação. Sobre essas investigações, a corregedora também afirmou que nunca houve devassa ou quebra de sigilo e tudo que foi realizado por sua equipe está dentro da lei.

Também disse que nunca realizou nenhuma investigação contra ministros do Supremo Tribunal Federal e só ficou sabendo pelos jornais que Cezar Peluso e Ricardo Lewandowski receberam valores do Tribunal paulista, referente a um suposto passivo trabalhista.

Questionada se os procuraria para esclarecer o fato, a ministra disse que não, pois “não se trata de um grupo de amigos”.

“Só posso lamentar [a polêmica], fruto de maledicência e irresponsabilidade da AMB, Ajude e Anamatra, que mentirosamente desinformam a população ou informam com declarações incendiárias e inverossímeis”, afirmou Eliana Calmon, acrescentando que é uma tentativa de desviar o foco, pois seu trabalho visa “defender as instituições brasileiras da corrupção que infelizmente se alastra pelo país”.

“O que está realmente em jogo é a sobrevivência do Conselho Nacional de Justiça. Esse é o verdadeiro ovo da serpente”, advertiu a corregedora, que está lutando praticamente sozinha para moralizar a Justiça brasileira.

Fonte: Tribuna On Line

Juízes reagem em defesa de Eliana Calmon e condenam a AJUFE

FREDERICO VASCONCELOS DE SÃO PAULO

FILIPE COUTINHO DE BRASÍLIA
 
Um grupo de juízes federais começou a coletar ontem assinaturas para um manifesto público condenando as críticas feitas pela Ajufe (Associação dos Juízes Federais do Brasil) à atuação da corregedora nacional de Justiça, ministra Eliana Calmon.

"Entendemos que a agressividade das notas públicas da Ajufe não retrata o sentimento da magistatura federal. Em princípio, os juízes federais não são contrários a investigações, promovidas pela corregedora. Se eventual abuso investigatório ocorrer é questão a ser analisada concretamente", afirma o manifesto, para realçar que "não soa razoável, de plano, impedir a atuação de controle da corregedoria".

A ideia surgiu em lista de discussão de magistrados federais na internet. Foi proposta pelo juiz federal Rogério Polezze, de São Paulo.

Ganhou adesões após a manifestação do juiz Sergio Moro, do Paraná, especializado em casos de lavagem de dinheiro, não convencido de que houve quebra de sigilo de 200 mil juízes. "Não estou de acordo com as ações propostas no STF nem com as desastradas declarações e notas na imprensa", disse Moro. "É duro como associado fazer parte dos ataques contra a ministra."

"Não me sinto representado pela Ajufe, apesar de filiado", afirmou o juiz federal Jeferson Schneider, do Paraná, em mensagem na lista de discussão dos juízes. Marcello Enes Figueira disse que "assinava em baixo do que afirmou o colega Sergio Moro".

O juiz federal Odilon de Oliveira, de Campo Grande (MS), também aderiu, afirmando que "entregar" a ministra era um "absurdo" que a Ajufe cometia. "A atitude da Ajufe, em represália à ministra é inaceitável", diz o juiz Eduardo Cubas, de Goiás.

O juiz Roberto Wanderley Nogueira, de Pernambuco, criticou as manifestações das entidades. E disse que "a ministra não merece ser censurada, e tanto menos execrada pelos seus iguais, pois seu único pecado foi ser implacável contra a corrupção".

O presidente da Ajufe, Gabriel Wedy, atribuiu a iniciativa à proximidade das eleições para renovação da diretoria da Ajufe, em fevereiro. "É um número bastante pequeno, diante de 2.000 juízes federais", disse. "São manifestações democráticas e respeitamos o direito de crítica."

A Ajufe e outras duas associações de juízes entraram ontem com representação na Procuradoria-Geral da República contra Calmon, para que seja investigada sua conduta na investigação sobre pagamentos atípicos a magistrados e servidores.

Para os juízes, a ministra quebrou o sigilo fiscal dos investigados, ao pedir que os tribunais encaminhassem as declarações de imposto de renda dos juízes.

"Não se pode determinar ou promover a 'inspeção' das 'declarações de bens e valores' dessas pessoas, porque tais declarações são sigilosas e não poderiam ser objeto de qualquer exame por parte da corregedora nacional de Justiça", diz a representação.

Calmon não comentou a representação dos juízes. Anteontem, a ministra disse que os magistrados e servidores são obrigados a entregar aos tribunais todo ano a declaração de Imposto de Renda.

Segundo Calmon, os dados são entregues aos tribunais justamente para que a corregedoria tenha acesso, e não para "ficarem dentro de arquivos".

O objetivo da corregedora é cruzar as informações com levantamento do Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras), que apontou 3.438 juízes e servidores com movimentações atípicas.

A polêmica começou quando o ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Ricardo Lewandowski mandou parar a investigação no Tribunal de Justiça de São Paulo, primeiro alvo da corregedoria do CNJ.

Os juízes então passaram a acusar a ministra Eliana Calmon de quebrar o sigilo de todos os magistrados e servidores que foram alvo da varredura do Coaf, um total de mais 200 mil pessoas.

A ministra rebateu e disse que as acusações são uma maneira de tirar o foco da investigação do CNJ.

Fonte: FOLHA DE SÃO PAULO

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

ESSES "PODRES PODERES" E A FARRA COM O DINHEIRO PÚBLICO NO PODER JUDICIÁRIO

Triste Judiciário

MARCO ANTONIO VILLA

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) é formado por 33 ministros. Foi criado pela Constituição de 1988. Poucos conhecem ou acompanham sua atuação, pois as atenções nacionais estão concentradas no Supremo Tribunal Federal. No site oficial está escrito que é o tribunal da cidadania. Será?

Um simples passeio pelo site permite obter algumas informações preocupantes.

O tribunal tem 160 veículos, dos quais 112 são automóveis e os restantes 48 são vans, furgões e ônibus. É difícil entender as razões de tantos veículos para um simples tribunal. Mais estranho é o número de funcionários. São 2.741 efetivos.

Muitos, é inegável. Mas o número total é maior ainda. Os terceirizados representam 1.018. Desta forma, um simples tribunal tem 3.759 funcionários, com a média aproximada de mais de uma centena de trabalhadores por ministro!! Mesmo assim, em um só contrato, sem licitação, foram destinados quase R$2 milhões para serviço de secretariado.

Não é por falta de recursos que os processos demoram tantos anos para serem julgados. Dinheiro sobra. Em 2010, a dotação orçamentária foi de R$940 milhões. O dinheiro foi mal gasto. Só para comunicação e divulgação institucional foram reservados R$11 milhões, para assistência médica a dotação foi de R$47 milhões e mais 45 milhões de auxílio-alimentação. Os funcionários devem viver com muita sede, pois foram destinados para compra de água mineral R$170 mil. E para reformar uma cozinha foram gastos R$114 mil. Em um acesso digno de Oswaldo Cruz, o STJ consumiu R$225 mil em vacinas. À conservação dos jardins - que, presumo, devem estar muito bem conservados - o tribunal reservou para um simples sistema de irrigação a módica quantia de R$286 mil.

Se o passeio pelos gastos do tribunal é aterrador, muito pior é o cenário quando analisamos a folha de pagamento. O STJ fala em transparência, porém não discrimina o nome dos ministros e funcionários e seus salários. Só é possível saber que um ministro ou um funcionário (sem o respectivo nome) recebeu em certo mês um determinado salário bruto. E só. Mesmo assim, vale muito a pena pesquisar as folhas de pagamento, mesmo que nem todas, deste ano, estejam disponibilizadas. A média salarial é muito alta. Entre centenas de funcionários efetivos é muito difícil encontrar algum que ganhe menos de 5 mil reais.

Mas o que chama principalmente a atenção, além dos salários, são os ganhos eventuais, denominação que o tribunal dá para o abono, indenização e antecipação das férias, a antecipação e a gratificação natalinas, pagamentos retroativos e serviço extraordinário e substituição. Ganhos rendosos. Em março deste ano um ministro recebeu, neste item, 169 mil reais. Infelizmente há outros dois que receberam quase que o triplo: um, R$404 mil; e outro, R$435 mil. Este último, somando o salário e as vantagens pessoais, auferiu quase meio milhão de reais em apenas um mês! Os outros dois foram "menos aquinhoados", um ficou com R$197 mil e o segundo, com 432 mil. A situação foi muito mais grave em setembro. Neste mês, seis ministros receberam salários astronômicos: variando de R$190 mil a R$228 mil.

Os funcionários (assim como os ministros) acrescem ao salário (designado, estranhamente, como "remuneração paradigma") também as "vantagens eventuais", além das vantagens pessoais e outros auxílios (sem esquecer as diárias). Assim, não é incomum um funcionário receber R$21 mil, como foi o caso do assessor-chefe CJ-3, do ministro 19, os R$25,8 mil do assessor-chefe CJ-3 do ministro 22, ou, ainda, em setembro, o assessor chefe CJ-3 do do desembargador 1 recebeu R$39 mil (seria cômico se não fosse trágico: até parece identificação do seriado "Agente 86").

Em meio a estes privilégios, o STJ deu outros péssimos exemplos. Em 2010, um ministro, Paulo Medina, foi acusado de vender sentenças judiciais. Foi condenado pelo CNJ. Imaginou-se que seria preso por ter violado a lei sob a proteção do Estado, o que é ignóbil. Não, nada disso. A pena foi a aposentadoria compulsória. Passou a receber R$25 mil. E que pode ser extensiva à viúva como pensão. Em outubro do mesmo ano, o presidente do STJ, Ari Pargendler, foi denunciado pelo estudante Marco Paulo dos Santos. O estudante, estagiário no STJ, estava numa fila de um caixa eletrônico da agência do Banco do Brasil existente naquele tribunal. Na frente dele estava o presidente do STJ. Pargendler, aos gritos, exigiu que o rapaz ficasse distante dele, quando já estava aguardando, como todos os outros clientes, na fila regulamentar. O presidente daquela Corte avançou em direção ao estudante, arrancou o seu crachá e gritou: "Sou presidente do STJ e você está demitido. Isso aqui acabou para você." E cumpriu a ameaça. O estudante, que dependia do estágio - recebia R$750 -, foi sumariamente demitido.

Certamente o STJ vai argumentar que todos os gastos e privilégios são legais. E devem ser. Mas são imorais, dignos de uma república bufa. Os ministros deveriam ter vergonha de receber 30, 50 ou até 480 mil reais por mês. Na verdade devem achar que é uma intromissão indevida examinar seus gastos. Muitos, inclusive, podem até usar o seu poder legal para coagir os críticos. Triste Judiciário. Depois de tanta luta para o estabelecimento do estado de direito, acabou confundindo independência com a gastança irresponsável de recursos públicos, e autonomia com prepotência. Deixou de lado a razão da sua existência: fazer justiça.

Fonte: O Globo

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Cinismo ou Ceticismo - artigo de Cristovam Buarque

Cristovam Buarque

Diversos repórteres descreveram a rebelião em Canudos. Mas foi Euclides da Cunha quem ficou na história, porque no lugar de apenas descrever as aparências entre o que parecia um Conselheiro insensato e Generais sensatos, mostrou o que havia por baixo das aparências: a disputa entre Cidade e Campo, Império e República, Moderno e Arcaico.

Cem anos depois, estamos repetindo a mesma forma superficial de fazer reportagens sem descrições mais profundas da sociologia da corrupção. As notícias giram em torno de denúncia dos fatos visíveis: vídeos, contratos, fotos e propinas. Ainda não surgiu o Euclides da Cunha da corrupção. Estamos vendo e descrevendo o superficial.

Por trás dos fatos de políticos roubando dinheiro público, está a realidade de uma sociedade acostumada a desprezar o que é público. A indignação contra a corrupção é um bom sinal de que o interesse público começa a nascer, mesmo assim muito discretamente, porque as causas mais profundas não são denunciadas. Como Canudos, há uma barreira protegendo a percepção das causas mais profundas.

Depois de séculos em que até o trabalhador era propriedade privada e de décadas de uma democracia servindo aos interesses de minorias, o interesse privado ainda prevalece sobre o público. Fica explicado - não justificado, obviamente - porque tantos se sentem no direito de vandalizar os bens públicos, como se destruir bens públicos não fosse uma forma de corrupção. Fica explicada também a aceitação de expressões como “isto não é roubo”, ou “rouba, mas faz”, ou "mas, e daí, se todos roubam", ou a mais moderna e cínica “rouba, mas é um dos nossos”, ou ainda "rouba, mas não é para si, é para a campanha".

Até há pouco tempo, pelo menos existiam partidos e militantes que repudiavam essas afirmações. A democracia cooptou-os, absorveu-os e os fez tolerantes, criando uma geração de céticos e cínicos, porque a realidade da primazia do privado é mais forte do que as idéias, os sonhos e a vontade dos que querem defender o público. Isso faz com que os jovens que há poucos meses estavam sendo pisoteados pelas patas de cavalos da polícia, ao manifestarem-se contra a corrupção, não compareçam e até repudiem as recentes manifestações pela ética. Pode ser por ingenuidade ou por convicção de que os fins justificam os meios, ou pode ser por cinismo até porque as ações não mostram fins diferentes do ponto de vista dos interesses do público e do longo prazo.

Esse desprezo pelo interesse público induz e permite uma tolerância com o roubo dos recursos públicos a ponto de, eufemisticamente, chamá-lo de corrupção, no lugar de roubo. A sociedade aceita como natural o uso do dinheiro público para obras desnecessárias ou que beneficiam apenas uma minoria. Felizmente, cobrar propina na construção de prédio público já começa a provocar indignação, mas fazer obra faraônica ou estádios ao lado de casas sem esgoto não escandaliza. A primazia do privado sobre o público, do indivíduo sobre a Nação, leva à "corrupção pelo vandalismo", à "corrupção nas prioridades" e à "corrupção do imediatismo", provocando o consumo de recursos que pertencem também às gerações futuras, como acontecerá com os royalties do petróleo, como se isto não fosse também uma corrupção.

É por isso que, nas palavras do professor Kurt Weyland, citado pelo jornalista Rudolfo Lago, no site Congresso em Foco: “O Brasil tem uma democracia estável, mas de baixa qualidade”. Porque a política não está comprometida com a causa pública. Felizmente, enquanto não surge um Euclides da Cunha, temos repórteres atuantes, desvendando segredos e descrevendo a realidade apenas nas aparências. Como os repórteres que foram a Canudos, os de hoje talvez tenham interesses e visão das minorias privilegiadas, viciadas no interesse particular da renda e do c onsumo privado, que impedem a visão das causas da corrupção que vão muito além do comportamento dos p olíticos imorais. A corrupção está na estrutura social, na qual o Estado pertence e existe para poucos.

Euclides da Cunha, além da genialidade literária, possuía uma habilidade sociológica que não dá para exigir de todos nós, nem dos nossos leitores que, provavelmente, não gostariam de tomar conhecimento de toda a verdade.

Mas dá para exigir que os militantes não sejam cínicos no presente, para que não sejam todos céticos quanto ao futuro.

Cristovam Buarque é professor da UnB e senador pelo PDT-DF

Transcrito do Blog do Senador Cristovam Buarque

Publicado em 5 de novembro de 2011.

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Homenagem ao Poeta Maior: Carlos Drummond de Andrade




Memória

Amar o perdido
deixa confundido
este coração.

Nada pode o olvido
contra o sem sentido
apelo do Não.

As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão.

Mas as coisas findas,
muito mais que lindas,
essas ficarão.



Sentimento do Mundo

Tenho apenas duas mãos

e o sentimento do mundo,
mas estou cheio escravos,
minhas lembranças escorrem
e o corpo transige
na confluência do amor.

Quando me levantar, o céu
estará morto e saqueado,
eu mesmo estarei morto,
morto meu desejo, morto
o pântano sem acordes.

Os camaradas não disseram
que havia uma guerra
e era necessário
trazer fogo e alimento.
Sinto-me disperso,
anterior a fronteiras,
humildemente vos peço
que me perdoeis.

Quando os corpos passarem,
eu ficarei sozinho
desfiando a recordação
do sineiro, da viúva e do microcopista
que habitavam a barraca
e não foram encontrados
ao amanhecer

esse amanhecer
mais noite que a noite.



 

sábado, 22 de outubro de 2011

De Nuremberg à Sirte: a longa jornada noite à dentro

Oscarino Arantes

Quando após a Segunda Guerra Mundial, as nações vitoriosas reuniram na cidade de Nuremberg, na Alemanha, um tribunal com o objetivo de julgar os crimes cometidos pelos nazistas durante a guerra, muitos criticaram as implicações políticas desse tipo de julgamento. Que direito in abstracto teria de ser aplicado? O dos vencedores? Sobre fatos anteriores à vitória? Que normas in concreto haviam sido violadas? Logo de início os advogados de defesa aprovaram uma moção afirmando que o Tribunal de Nuremberg violava o antigo princípio do direito romano, segundo o qual não crime, nem há pena sem lei anterior que os defina ("nullum crimen, nulla poena sine praevia lege"). 

Apesar de sua evidente precariedade sob ângulo jurídico o Tribunal Militar Internacional (TMI), nome oficial do Tribunal de Nuremberg, durou 285 dias (de 1945 à 1949), nos quais foram ouvidas 240 testemunhas e julgados 199 homens, sendo 21 deles líderes nazistas. Se sob o aspecto jurídico o Tribunal de Nuremberg pode ser debatido até hoje, sob a perspectiva histórica representou um louvado esforço da civilização que se afirmava vitoriosa após emergir do abismo da barbárie genocida. Uma barbárie nascida de sua própria intemperança, mas que pode ser superada por valores comuns, que se cristalizaram na Carta das Nações Unidas e mais tarde na Declaração Universal dos Direitos Humanos. 

Por isso, quando vemos a celebração pelas chamadas potências ocidentais da execução de Muammar Khadafi, rendido e sob custódia das forças insurgentes, temos de lamentar a longa estrada percorrida desde Nuremberg. O processo civilizatório entrou em colapso em nosso tempo. Não há um mínimo esforço para afirmar valores comuns na vitória, nem generosidade com o vencido. Nada se deixa para o futuro como rumo a ser seguido a não ser a hegemonia do poder militar. Tudo se resolveu no cano de uma arma e no cano de esgoto: a misericórdia dos pequenos.

Em Nuremberg pela primeira vez o vencedor buscou estender a mão generosa para a justiça, ainda que uma justiça precária. Mas nesse gesto, os vencedores traduziam a nítida mensagem de um porvir que merecia ser celebrado. Em Sirte, ao contrário, nos deparamos com a mão vingativa do vencedor, que desdenha o vencido e se satisfaz com a confirmação de sua supremacia bélica. Khadafi preso responderia por seus crimes. Khadafi morto se tornou mais uma vítima da crueldade e um arquivo queimado. É a vitória da barbárie, que traduz um futuro sem futuro. Triste pedra fundamental para a nova Líbia. 

terça-feira, 11 de outubro de 2011

Slavoj Zizek na ocupação de Wall Street: o casamento entre democracia e capitalismo acabou

“Estamos testemunhando como o sistema está se autodestruindo. Quando criticarem o capitalismo, não se deixem chantagear pelos que vos acusam de ser contra a democracia. O casamento entre a democracia e o capitalismo acabou"

O filósofo e escritor esloveno Slavoj Zizek visitou a acampamento do movimento Ocupar Wall Street, no parque Zuccotti, em Nova York e falou aos manifestantes. Leia a íntegra de seu pronunciamento:

Durante o crash financeiro de 2008, foi destruída mais propriedade privada, ganha com dificuldades, do que se todos nós aqui estivéssemos a destruí-la dia e noite durante semanas. Dizem que somos sonhadores, mas os verdadeiros sonhadores são aqueles que pensam que as coisas podem continuar indefinidamente da mesma forma.

Não somos sonhadores. Somos o despertar de um sonho que está se transformando num pesadelo. Não estamos destruindo coisa alguma. Estamos apenas testemunhando como o sistema está se autodestruindo.

Todos conhecemos a cena clássica do desenho animado: o coiote chega à beira do precipício, e continua a andar, ignorando o fato de que não há nada por baixo dele. Somente quando olha para baixo e toma consciência de que não há nada, cai. É isto que estamos fazendo aqui.

Estamos a dizer aos rapazes de Wall Street: “hey, olhem para baixo!”

Em abril de 2011, o governo chinês proibiu, na TV, nos filmes e em romances, todas as histórias que falassem em realidade alternativa ou viagens no tempo. É um bom sinal para a China. Significa que as pessoas ainda sonham com alternativas, e por isso é preciso proibir este sonho. Aqui, não pensamos em proibições. Porque o sistema dominante tem oprimido até a nossa capacidade de sonhar.

Vejam os filmes a que assistimos o tempo todo. É fácil imaginar o fim do mundo, um asteróide destruir toda a vida e assim por diante. Mas não se pode imaginar o fim do capitalismo. O que estamos, então, a fazer aqui?

Deixem-me contar uma piada maravilhosa dos velhos tempos comunistas. Um fulano da Alemanha Oriental foi mandado para trabalhar na Sibéria. Ele sabia que o seu correio seria lido pelos censores, por isso disse aos amigos: “Vamos estabelecer um código. Se receberem uma carta minha escrita em tinta azul, será verdade o que estiver escrito; se estiver escrita em tinta vermelha, será falso”. Passado um mês, os amigos recebem uma primeira carta toda escrita em tinta azul. Dizia: “Tudo é maravilhoso aqui, as lojas estão cheias de boa comida, os cinemas exibem bons filmes do ocidente, os apartamentos são grandes e luxuosos, a única coisa que não se consegue comprar é tinta vermelha.”

É assim que vivemos – temos todas as liberdades que queremos, mas falta-nos a tinta vermelha, a linguagem para articular a nossa ausência de liberdade. A forma como nos ensinam a falar sobre a guerra, a liberdade, o terrorismo e assim por diante, falsifica a liberdade. E é isso que estamos a fazer aqui: dando tinta vermelha a todos nós.

Existe um perigo. Não nos apaixonemos por nós mesmos. É bom estar aqui, mas lembrem-se, os carnavais são baratos. O que importa é o dia seguinte, quando voltamos à vida normal. Haverá então novas oportunidades? Não quero que se lembrem destes dias assim: “Meu deus, como éramos jovens e foi lindo”.

Lembrem-se que a nossa mensagem principal é: temos de pensar em alternativas. A regra quebrou-se. Não vivemos no melhor mundo possível, mas há um longo caminho pela frente – estamos confrontados com questões realmente difíceis. Sabemos o que não queremos. Mas o que queremos? Que organização social pode substituir o capitalismo? Que tipo de novos líderes queremos?

Lembrem-se, o problema não é a corrupção ou a ganância, o problema é o sistema. Tenham cuidado, não só com os inimigos, mas também com os falsos amigos que já estão trabalhando para diluir este processo, do mesmo modo que quando se toma café sem cafeína, cerveja sem álcool, sorvete sem gordura.

Vão tentar transformar isso num protesto moral sem coração, um processo descafeinado. Mas o motivo de estarmos aqui é que já estamos fartos de um mundo onde se reciclam latas de coca-cola ou se toma um cappuccino italiano no Starbucks, para depois dar 1% às crianças que passam fome e fazer-nos sentir bem com isso. Depois de fazer outsourcing ao trabalho e à tortura, depois de as agências matrimoniais fazerem outsourcing da nossa vida amorosa, permitimos que até o nosso envolvimento político seja alvo de outsourcing. Queremos ele de volta.

Não somos comunistas, se o comunismo significa o sistema que entrou em colapso em 1990. Lembrem-se que hoje os comunistas são os capitalistas mais eficientes e implacáveis. Na China de hoje, temos um capitalismo que é ainda mais dinâmico do que o vosso capitalismo americano. Mas ele não precisa de democracia. O que significa que, quando criticarem o capitalismo, não se deixem chantagear pelos que vos acusam de ser contra a democracia. O casamento entre a democracia e o capitalismo acabou.

A mudança é possível. O que é que consideramos possível hoje? Basta seguir os meios de comunicação. Por um lado, na tecnologia e na sexualidade tudo parece ser possível. É possível viajar para a lua, tornar-se imortal através da biogenética. Pode-se ter sexo com animais ou qualquer outra coisa. Mas olhem para os terrenos da sociedade e da economia. Nestes, quase tudo é considerado impossível. Querem aumentar um pouco os impostos aos ricos? Eles dizem que é impossível. Perdemos competitividade. Querem mais dinheiro para a saúde? Eles dizem que é impossível, isso significaria um Estado totalitário. Algo tem de estar errado num mundo onde vos prometem ser imortais, mas em que não se pode gastar um pouco mais com cuidados de saúde.

Talvez devêssemos definir as nossas prioridades nesta questão. Não queremos um padrão de vida mais alto – queremos um melhor padrão de vida. O único sentido em que somos comunistas é que nos preocupamos com os bens comuns. Os bens comuns da natureza, os bens comuns do que é privatizado pela propriedade intelectual, os bens comuns da biogenética. Por isto e só por isto devemos lutar.

O comunismo falhou totalmente, mas o problema dos bens comuns permanece. Eles dizem-nos que não somos americanos, mas temos de lembrar uma coisa aos fundamentalistas conservadores, que afirmam que eles é que são realmente americanos. O que é o cristianismo? É o Espírito Santo. O que é o Espírito Santo? É uma comunidade igualitária de crentes que estão ligados pelo amor um pelo outro, e que só têm a sua própria liberdade e responsabilidade para este amor. Neste sentido, o Espírito Santo está aqui, agora, e lá em Wall Street estão os pagãos que adoram ídolos blasfemos.

Por isso, do que precisamos é de paciência. A única coisa que eu temo é que algum dia vamos todos voltar para casa, e vamos voltar a encontrar-nos uma vez por ano, para beber cerveja e recordar nostalgicamente como foi bom o tempo que passávamos aqui. Prometam que não vai ser assim. Sabem que muitas vezes as pessoas desejam uma coisa, mas realmente não a querem. Não tenham medo de realmente querer o que desejam. Muito obrigado.

Tradução de Luis Leiria para o Esquerda.net
Fonte: Carta Maior

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

MIA COUTO DERRUBA A IDEOLOGIA DO MEDO



Numa Conferência em Estoril (Portugal), o escritor moçambicano Mia Couto lê um texto radical, que desconstrói a ideologia da segurança baseada na proliferação do medo. Forte, instigante e corajoso.
  

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

POR UMA PALESTINA LIVRE

Oscarino Arantes

Obama está certíssimo ao afirmar que a paz não pode ser alcançada por resolução da ONU. Ninguém melhor do que o presidente norte-americano para saber disso. Segundo o receituário da Casa Branca, resoluções da ONU servem para fazer guerra, não a paz. Sérvia e Iraque descobriram isso tarde. Em cinco décadas, Israel descumpriu mais de duas dúzias de resoluções da ONU para se retirar dos territórios árabes ocupados e nada lhe aconteceu. Saddan Hussein descumpriu uma única resolução para sair do Kwuait e atraiu a “Desert Storm” sobre seu país.

Acontece que os palestinos não estão batendo à porta da ONU em busca da paz, mas de um Estado, Mr. Obama. Uma pretensão mais do que justa, com toque de sutil ironia: foi a ONU que criou o Estado de Israel. Agora, 63 anos depois, tem a mesma ONU a oportunidade de equilibrar um pouco a assimetria do conflito entre israelenses e palestinos.

Obama pede tempo e paciência aos palestinos. Para quê? Nada oferece. O tempo trabalha para Israel, que sempre adiou o desfecho de negociações para aumentar a colonização nos territórios ocupados e inviabilizar um futuro Estado Palestino. Tell Aviv usa a tática do “consumatum est” para ceder cada vez menos e obter cada vez mais, até o ponto (num futuro breve) de não ter que ceder mais nada.

A máquina de propaganda sionista insiste em rotular a iniciativa palestina na ONU como "unilateral". Seria então um estranho caso de unilateralismo, único na História, que postula formalmente perante o principal organismo multilateral do mundo. Sem dúvida inusitado. Importante lembrar que a resolução 181, aprovada pela ONU em 1947, já previa a criação de um Estado palestino na região, ao lado de Israel. Portanto não há novidade no pedido da Autoridade Palestina.

Não Mr. Obama, a paz não virá de negociações entre palestinos e israelenses. A paz virá de posições corajosas de outros países que desafiem Israel a alterar sua política egocêntrica e etnocida com relação aos palestinos. Como disse recentemente o primeiro ministro turco, Israel virou uma criança mimada. Uma criança sentada num arsenal nuclear, diga-se de passagem. Isso é uma verdade devido ao apoio cego e incondicional de Washington, refém do lobby judaico. Hoje, não se sabe mais quem é o Estado cliente, nessa relação doentia, quase simbiótica. Os EUA pagam um preço alto demais por sua “aliança” cega com Israel e não dão sinal de mudança, pelo que se viu dos últimos dias. Mas o tempo da impostura está acabando, como anunciam as vozes do levante árabe. Por isso o medo de isolamento diplomático que o governo sectário de Benjamin Netanyahu sente, pode ser a melhor chance nos últimos anos, para uma real mudança de perspectiva que destrave as negociações de paz. 

POESIA PALESTINA DE RESISTÊNCIA


Não iremos embora

Tawfic Zayyad*

Aqui
Sobre vossos peitos
Persistimos
Como uma muralha
Em vossas goelas
Como cacos de vidro
Imperturbáveis
E em vossos olhos
Como uma tempestade de fogo
Aqui
Sobre vossos peitos
Persistimos
Como uma muralha
Em lavar os pratos em vossas casas
Em encher os copos dos senhores
Em esfregar os ladrilhos das cozinhas pretas
Para arrancar
A comida de nossos filhos
De vossas presas azuis
Aqui sobre vossos peitos
Persistimos
Como uma muralha
Famintos
Nus
Provocadores
Declamando poemas
Somos os guardiões da sombra
Das laranjeiras e das oliveiras
Semeamos as idéias como o fermento na massa
Nossos nervos são de gelo
Mas nossos corações vomitam fogo
Quando tivermos sede
Espremeremos as pedras
E comeremos terra
Quando estivermos famintos
Mas não iremos embora
E não seremos avarentos com nosso sangue
Aqui
Temos um passado
E um presente
Aqui
Está nosso futuro

*Tawfic Zayyad, palestino de Nazaré, é considerado um pioneiro da poesia de resistência. A maior parte de sua obra foi escrita na prisão.

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

O Oriente Médio nunca será o mesmo

Estado palestino não virá esta semana. Mas debate na ONU vai sacudir geopolítica da região, e superar décadas de subserviência


Por Robert Fisk

Os palestinos não conseguirão seu estado essa semana. Mas os palestinos provarão – se obtiverem votos suficientes na Assembleia Geral e se Mahmoud Abbas não sucumbir à sua subserviência característica ante o poder de EUA-Israel – que já fizeram por merecer ser estado. E estabelecerão para os árabes o que Israel gosta de chamar – enquanto amplia suas colônias em terra roubada – “fatos em campo”: nunca mais EUA e Israel estalarão os dedos e verão árabes bater continência perfilados. Os EUA perderam a aposta que fizeram para o Oriente Médio. Acabou: fim do “processo de paz”, do “mapa do caminho”, do “acordo de Oslo”. Esse fandango já é história.

Pessoalmente, acho que “Palestina” é estado-fantasia, já impossível, agora que Israel já roubou quase toda a terra dos árabes, para os projetos coloniais israelenses. Quem duvidar, que dê uma olhada na Cisjordânia. Colônias em massa, exclusivas para judeus, as daninhas restrições que impedem palestinos de construírem casas de mais de um piso, e a destruição, como castigo, do sistema de esgotos urbanos, os “cordões sanitários” ao lado da fronteira com a Jordânia, as estradas exclusivas para colonos israelenses, tudo isso converteu o mapa da Cisjordânia em pára-brisa esfacelado de carro detonado. Às vezes, suspeito que a única força que impede que haja ali a “Grande Israel” é a obstinação daqueles palestinos incansáveis.

Mas, agora, se fala afinal de temas maiores. Essa votação na ONU – na Assembléia Geral e no Conselho de Segurança; em certo sentido, nem faz diferença – dividirá o ocidente: EUA de um lado; árabes, de outro. Abrirá em fendas as divisões que há dentro da União Européia, entre europeus do leste e europeus do oeste; entre Alemanha e França (Alemanha apoiando Israel pelas razões históricas de sempre; a França atormentada pelo sofrimento dos palestinos). E, claro, será como cunha cravada entre Israel e a União Européia.

Décadas de poder, brutalidade e colonização, pelos militares israelenses; milhões de europeus, já conscientes da responsabilidade histórica que pesa sobre eles pelo holocausto de judeus e conhecedores da violência das nações muçulmanas, já não se deixam acovardar na crítica, por medo de serem ofendidos, acusados de antissemitismo. Há racismo no ocidente – e temo que sempre haverá – contra muçulmanos e africanos e judeus. Mas as colônias israelenses na Cisjordânia nas quais não podem viver árabes palestinos muçulmanos são o quê, além de expressão de racismo?

Israel sofre parte dessa tragédia, é claro. O insano governo israelense levou os israelenses por esse caminho de perdição, que se viu adequadamente sintetizado no medo que lhes causou a democracia na Tunísia e no Egito. O principal aliado de Israel é hoje a Arábia Saudita, o que é caso exemplar de toda essa insensatez. E a cruel recusa, por Israel, a desculpar-se pela matança de nove turcos, ano passado, em ataque contra a Flotilha da Paz em Gaza, e de cinco policiais egípcios durante incursão de palestinos em Israel.

Por tudo isso, adeus aos únicos aliados que Israel ainda tinha na região, Turquia e Egito, no curto espaço de 12 meses. No governo de Israel há hoje gente inteligente, potencialmente equilibrados, como Ehud Barak, e loucos, como o ministro dos Negócios Exteriores Avigdor Lieberman (…). Sarcasmos à parte, os israelenses merecem coisa melhor.

O estado de Israel talvez tenha sido criado por ato injusto – a Diáspora Palestina é prova disso – mas foi criado por ato legal. Os fundadores foram perfeitamente capazes de construir acordo com o rei Abdullah da Jordânia depois da guerra 1948-49 para dividir a Palestina entre judeus e árabes. Mas foi a ONU, que se reuniu para decidir o destino da Palestina dia 29/11/1947, quem deu a Israel sua legitimidade, com EUA como primeira nação a votar a favor de criar-se o estado de Israel. E agora – por uma suprema ironia da história –, Israel quer impedir que a ONU garanta legitimidade aos árabes palestinos e os EUA serão a primeira nação a votar contra essa legitimidade justa.

Israel não tem direito de existir? É a velha armadilha, estupidamente repetida pelos assim ditos “apoiadores de Israel”, também para mim, pessoalmente, muitas vezes repetida, embora, ultimamente, cada vez menos freqüentemente. Cabe aos estados – que não são seres humanos – assegurar a outros estados o direito de existir. Para que indivíduos façam a mesma coisa, é indispensável que considerem um mapa. Porque, afinal, onde, exatamente, geograficamente, fica Israel?

Israel é a única nação do planeta que não sabe e não diz onde está sua fronteira leste. Acompanha a velha linha do armistício da ONU, a fronteira de 1967, que Abbas tanto ama e Netanyahu tanto odeia? Exclui toda a Cisjordânia palestina menos as colônias exclusivas para israelenses… Ou exclui toda a Cisjordânia?

Mostrem-me mapa do Reino Unido que inclua Inglaterra, País de Gales, Escócia e Irlanda do Norte, e o Reino Unido tem direito de existir. Mas mostrem-me mapa do RU que pretenda incluir no RU os 26 condados da Irlanda independente e mostre que Dublin seria cidade britânica, não cidade irlandesa, e direi não: essa nação não tem direito de existir nessas fronteiras inchadas. No caso de Israel, aí está a razão pela qual quase todas as embaixadas ocidentais, inclusive as embaixadas dos EUA e da Grã-Bretanha, estão instaladas em Tell Aviv, não em Jerusalém.

No novo Oriente Médio, com o Despertar Árabe e a revolta de povos livres que exigem dignidade e liberdade, esse voto da ONU – aprovado pela Assembléia Geral, vetado pelos EUA se for para o Conselho de Segurança – constitui uma espécie de pino que faz girar tudo que a ele esteja ligado: vira-se aí uma página, e marca-se também o fracasso do império.

A política externa dos EUA tornou-se de tal modo presa a Israel, tão temerosos, tão assustadiços ante Israel tornaram-se quase todos os deputados, deputadas, senadores e senadoras dos EUA – a ponto de amarem mais Israel que os EUA –, que os EUA, essa semana, deixarão de ser a nação que gerou Woodrow Wilson e seus 14 princípios de autodeterminação, não o país que combateu o nazismo e o fascismo e o militarismo japonês, não o farol da liberdade que, como nos dizem, os seus Pais Fundadores representaram –, e se revelarão ao mundo como estado autista, intratável, acovardado, cujo presidente, depois de prometer novo afeto ao mundo muçulmano, é forçado a apoiar uma potência ocupante contra um povo que nada pede além do reconhecimento do estado independente ao qual tem perfeito direito.

Será o caso de dizer “pobre velho Obama”, como eu disse em outros tempos? Acho que não. Bom de retórica, vão, superficial, distribuindo fingido respeito em Istambul e no Cairo poucos meses depois de eleito, essa semana o mesmo Obama comprovará que a reeleição parece-lhe mais importante que o futuro do Oriente Médio; que sua ambição pessoal de continuar no poder supera, em importância, os sofrimentos de um povo que sobrevive sob ocupação. Nesse específico contexto, chega a ser bizarro que alguém que se apresenta como homem de tão altos princípios aja tão covardemente. Para o novo Oriente Médio, onde árabes exigem para eles os mesmos direitos e liberdades dos quais Israel e EUA dizem-se campeões, é tragédia profunda.

Na fonte de tudo estão os fracassos dos EUA, que não se ergueram para enfrentar Israel e que não insistiram em obter acordo de paz justo na “Palestina”, atrelados ao herói da guerra do Iraque, Blair. Os árabes também são responsáveis, por terem permitido que as ditaduras durassem tanto tempo, tentando conter dunas de areia com falsas fronteiras, velhos dogmas e petróleo (e que ninguém acredite que alguma “nova” “Palestina” seria um paraíso para seu próprio povo).

E Israel também é responsável, porque é dever de Israel acolher respeitosamente o pedido dos palestinos que requerem à ONU que reconheça o estado palestino e que cumpra todas as suas obrigações de garantir, com o reconhecimento, como de tantos outros estados-membros, segurança e paz também aos palestinos.

Mas nada disso acontecerá. O jogo está perdido. O poder político dos EUA no Oriente Médio essa semana será sacrificado aos pés de Israel. Servicinho vagabundo, esse, dos EUA, em nome da liberdade…

Fonte: Diário da Liberdade

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

A CRISE DO CAPITALISMO

É conjuntural, estrutural ou terminal?
Por Ronald Barata


Não há mais dúvida de que a crise econômico-financeira de 2007/8, não foi superada. Ela abrandou, com os vastos recursos que os governos dos países ricos socorreram instituições em risco. Reduziram as taxas de juros a quase zero, transferiram fábulas de dinheiros para bancos falidos e concederam isenções fiscais. Os Estados assumiram os títulos podres dos bancos privados e as dívidas privadas. Assim, a crise arrefeceu, mas agora entrou em fase de aceleração, enquanto a economia mundial desacelera, principalmente nos EUA e nos países europeus, que são o epicentro da crise. A causa principal é a transferência das riquezas para o setor financeiro e outros mega capitalistas, em detrimento dos setores produtivos. Mas o Brasil não está imune.

O mundo, além da crise econômico-financeira, sofre a crise da natureza, provocada pelos crimes ambientais.

É importante saber como está a situação da maior economia do mundo, os EUA, e dos demais países ricos.

A maior potência econômica e militar enfrenta graves problemas econômicos e políticos. O Império Ianque entrou em fase declinante, embora vá continuar sendo a nação mais poderosa, não se sabe por quanto tempo. Suas bases de poder estão sendo minadas, corroídas. Nos últimos quatro anos, o PIB dos EUA não cresceu, apenas voltou ao nível do primeiro trimestre/2007. Mas a população cresceu, significando que o PIB per capta diminuiu. As empresas não financeiras têm cerca de DOIS TRILHÕES DE DÓLARES aplicados em títulos do Tesouro americano, em vez de investirem, por não confiarem na superação da crise em curto ou médio prazo. O endividamento, que avolumou no governo Bush devido à redução de impostos para os ricos e às despesas com guerras, hoje atinge a R$ TREZE TRILHÕES DE DÓLARES e continua aumentando. As receitas caíram e o desemprego aumentou. Acentuam-se as desigualdades na distribuição de renda, a queda do consumo e nos investimentos. Tiram dinheiro dos projetos sociais para pagar “obrigações” com os ricos.

Obviamente, aumenta o descontentamento das populações prejudicadas.

A crise já atingiu, em cheio, toda a Europa, principalmente os dezessete países da Zona do Euro. E não apenas os mais pobres: Portugal, Irlanda e Grécia. Até a poderosa Alemanha enfrenta graves problemas sociais. Todos os países desenvolvidos também aumentaram brutalmente seus endividamentos para socorrerem os bancos e as grandes empresas em 2008. Chegaram ao esgotamento e agora não poderão prestar o mesmo grau de ajuda. Além do que, uma nova transferência de recursos para os bancos, acirrará a indignação popular.

A globalização tem permitido a desenfreada transferência das riquezas dos países emergentes ou pobres para as grandes potencias que manipulam os preços das mercadorias primárias, as chamadas commodities; exploração amenizada pelas pesadas compras da China, que incentivou o seu consumo interno.

O economista naturalizado estadunidense, Noriel Doubini, apelidado de “Senhor Catástrofe” quando previa, com alguns anos de antecedência, a crise de 2008, é hoje considerado um sábio; acertou até nos detalhes. Ele não é socialista; é adepto do capitalismo. Em artigo denominado “O capitalismo está condenado?”, ele afirma: “Marx estava certo quando disse que a globalização, a desenfreada intermediação financeira e a transferência da riqueza do trabalho para o capital podem levar o capitalismo à destruição”. A isso, deve-se agregar o esgotamento da Terra. O economista prevê recessão duradoura, com grande crise bancária sistêmica que levará os EUA a uma perda de créditos de mais de Us$ 2 trilhões. Uma situação sem saída. Entretanto, no final do artigo, indica providências que devem ser adotadas para superação, embora admitindo que serão muito difíceis de implementar.

O Prêmio Nobel de Economia em 2001, Joseph Stiglitz, estadunidense, afirma que a situação é tão grave que “uma estagnação prolongada é cenário otimista”. Diz que não sabe qual a pior, se a situação dos Estados Unidos ou da Europa, todos com taxa de crescimento de 1%. Afirma que o projeto de recuperação é confuso e quaisquer que sejam as medidas adotadas, as coisas vão piorar.

Edgard Dosman, economista canadense, diz que os países desenvolvidos terão que conviver com alto índice de desemprego durante muito tempo, pois será a maior estagnação desde a Depressão de 1929.

David Harvey, geógrafo e marxista, considerado um sábio, em seu trabalho “The Crises of Capitalism”, de 2010, mostra porque o capitalismo entrará em fase terminal.

Portanto, a crise já é uma realidade. Entre os economistas, há uma quase unanimidade: os países emergentes sofrerão menos. Explicam que isso se dará devido aos preços das commodities. Mas, embora o maior comprador do Brasil seja a China, os demais compradores são importantes. E, estando em recessão, reduzirão as compras. Mesmo porque, com tantos desempregados, o consumo interno se reduzirá.

As mobilizações populares em vários países evoluíram e já são verdadeiras insurreições. As causas das insatisfações são as mesmas entre os países árabes, a Espanha, o Reino Unido, Israel e outros: o desemprego e o trabalho precarizado, principalmente entre os jovens, e o aumento da desigualdade. Sem esquecer o Chile.

Para o capitalismo sobreviver, terá que superar gravíssimos problemas como estagnação, depressão, crises financeiras, insolvência de bancos e de governos, guerras comerciais e disputas cambiais. Tudo que leva à instabilidade social e política.

Mas é óbvio que os países capitalistas vão reagir. As medidas de caráter fiscal que vêm sendo adotadas para a redução de déficit, a contenção de gastos pelos governos e aperto para créditos, levam ao aumento do desemprego. Então...

Vão procurar uma saída, que tradicionalmente os EUA encontram promovendo guerras. Guerras para garantir acesso aos recursos naturais dos países periféricos. Há casos de guerras não declaradas: Vietnã e Rodesia. Mas sempre inventam motivos, como as armas químicas do Iraque, que não foram encontradas. Todavia, não basta ganhar a guerra, o que para as grandes potências é relativamente fácil; é preciso, principalmente, ocupar, o que não tem sido fácil. Após o Afeganistão, agora a Líbia, por ter ousado sair do sistema financeiro internacional e articulava a criação de moeda africana, que sobreporia, na região, ao dólar. Depois virá a Síria. Mas sabemos que o objetivo principal é o Iran. E, provavelmente, uma guerra generalizada na África e em parte da Ásia. Pretendem controlar todo o petróleo da região e acabar com as aspirações de soberania das nações.

Desde o governo Nixon (1971), os EUA deixaram de adotar o padrão ouro. Sua moeda não mais tem lastro. E, sendo o único país que pode emitir dólares, que não passam de simples papel pintado, com o qual paga suas compras, os outros países pagam a conta.

Mas há casos em que dispensam a guerra, que é melhor para eles. Exercem a cooptação. O Conselho de Relações Exteriores (Council on Foreign Relations), com sede em Nova York, dominado por banqueiros, tem agentes (“observadores”) infiltrados em quase todos os governos do mundo. Quase todos os presidentes dos EUA, republicanos ou democratas, eram quadros desse CFR.

NOSSO QUINTAL

O CFR elaborou relatório para o governo norte americano, com diretrizes para o Brasil, optando por cooptação. Manda apoiar a aspiração de membro permanente do Conselho de Segurança da ONU, pois o Brasil já se mostrou dócil, atendendo os EUA, ao enviar tropas para o Haiti; assinou um Acordo Militar em 12/4/2010, não desenvolve suas forças armadas etc. Cita que somos estratégicos pela abundancia em recursos naturais, especialmente minérios (energia) e alimentos. E nos quer como aliados, em caso de guerra. Fala em barganhar vantagens em troca de recursos naturais. Já estão carregando o nosso nióbio e estão de olho no Pré-Sal. Têm interesse que nossas forças armadas sejam sucateadas, prometendo nos dar proteção em troca das mercadorias que precisam.

O Brasil está se tornando cada vez mais dependente dos capitais financeiros e das transnacionais. Para especulação, desfrutam de juros boníssimos, enquanto outras empresas preferem associar-se, em condições de comando, com supermercados, empreiteiras, órgãos da mídia, bancos e grandes propriedades de terra. No chamado agronegócio, pontificam as empresas transnacionais Bayer, Cargill, Monsanto, Bunge, Coca-Cola, Syngenta, Nestlé, ADM, Dreyfuss etc. E não produzem alimentos saudáveis

O agronegócio prioriza a produção em escala e acumula grandes extensões de terra, promovendo a monocultura por fazenda, isto é, um só produto por fazenda e ocupam cerca de 70% das terras cultivadas com soja, milho, gado e cana. Quase tudo para exportação. Grandemente automatizado, dispensa mão-de-obra, que migra para as cidades. Utiliza pesadas doses de agrotóxicos, que vão para nossos organismos. Cerca de 80% das exportações brasileiras, são de matérias primas agrícolas e de minerais, que superaram os produtos industrializados. Os movimentos de trabalhadores do campo, reunidos na Via Campesina, promovem campanhas para mudar o modelo agrícola, tentando sensibilizar governantes e a sociedade para exigir a produção de alimentos saudáveis, sem agrotóxicos, e diversidade de culturas.

Desde que Collor começou a nos inserir na globalização, nossos princípios de nacionalidade vêm se enfraquecendo. Até as esquerdas, ao chegarem ao poder, encantaram-se com as políticas neoliberais.

Tanto o governo passado, quanto o atual, têm como solução para a crise ajuste fiscal, cortes nos gastos públicos, desoneração da Folha de Pagamento, redução de salários e aposentadorias, mais privatização na saúde e educação, reformas trabalhista e previdenciária. Tudo que leva à estagnação econômica, com drásticas conseqüências.

O governo Lula, utilizou o discurso da governabilidade para formar uma base de apoio que não leva em conta princípios. Nem políticos, nem éticos. Criou uma coalizão baseada no clientelismo, no fisiologismo e na cooptação dos movimentos sociais. Nem os políticos nem os partidos da base, discutem políticas públicas. Funciona tudo na base de arrancar vantagens. Os partidos de esquerda, PT, PDT, PSB e PCdoB, ao juntarem-se aos tradicionais oligarcas, decepcionaram os militantes. O governo é decepcionante, tanto política como eticamente, mas não se pode esperar nada da oposição, defensora de interesses dos grupos internacionais.

Os partidos, tão desmoralizados quanto o movimento sindical e estudantil, atuam em função de alcançar posições que rendam vantagens para seu grupo.

Mas ainda há alguns nichos de esquerda que não se entregaram e resistem heroicamente. Entretanto, estão dispersos e desorganizados. E enfrentam a avassaladora atuação criminosa dos órgãos da mídia tradicional. Urge que se entendam. Que coloquem acima de divergências pontuais os interesses da nação, dos trabalhadores, das populações das periferias. E que resgatem nossa soberania.

Em setembro de 2011

RONALD BARATA

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

A matemática macabra do 11 de setembro

Por Marco Aurélio Weisheimer

O mundo se tornou um lugar mais seguro, dez anos depois dos atentados de 11 de setembro e da “guerra ao terror” promovida pelos Estados Unidos para se vingar do ataque? A resposta de Washington ao ataque contra o World Trade Center e o Pentágono engendrou duas novas guerras – no Iraque e no Afeganistão – e uma contabilidade macabra. Para vingar as mais de 2.900 vítimas do ataque, mais de 900 mil pessoas já teriam perdido suas vidas até hoje. Os números são do site Unknown News, que fornece uma estatística detalhada do número de mortos nas guerras nos dois países, distinguindo vítimas civis de militares. A organização Iraq Body Count, que usa uma metodologia diferente, tem uma estatística mais conservadora em relação ao Iraque: 111.937 civis mortos somente no Iraque.

Seja como for, a matemática da vingança é assustadora: para cada vítima do 11 de setembro, algumas dezenas (na estatística mais conservadora) ou centenas de pessoas perderam suas vidas. Em qualquer um dos casos, a reação aos atentados supera de longe a prática adotada pelo exército nazista nos territórios ocupados durante a Segunda Guerra Mundial: executar dez civis para cada soldado alemão morto. Na madrugada do dia 2 de maio, quando anunciou oficialmente que Osama Bin Laden tinha sido morto, no Paquistão, por um comando especial dos Estados Unidos, o presidente Barack Obama afirmou que a justiça tinha sido feita. O conceito de justiça aplicado aqui torna a Lei do Talião um instrumento conservadora. As palavras do presidente Obama foram as seguintes:

"Foi feita justiça. Nesta noite, tenho condições de dizer aos americanos e ao mundo que os Estados Unidos conduziram uma operação que matou Osama Bin Laden, o líder da Al Qaeda e terrorista responsável pelo assassinato de milhares de homens, mulheres e crianças."
O conceito de justiça usado por Obama autoriza, portanto, a que iraquianos e afegãos lancem ataques contra os responsáveis pelo assassinato de milhares de homens, mulheres e crianças. E provoquem outras milhares de mortes. E assim por diante até que não haja mais ninguém para ser morto. A superação da Lei do Talião, cabe lembrar, foi considerada um avanço civilizatório justamente por colocar um fim neste ciclo perpétuo de morte e vingança. A idéia é que a justiça tem que ser um pouco mais do que isso.

Mas a história dos dez anos do 11 de setembro não se resume a mortes, dores e sofrimentos. Há a história dos lucros também. Gordos lucros. Uma ótima crônica dessa história é o documentário “Iraque à venda. Os lucros da guerra”, de Robert Greenwald (2006), que mostra como a invasão do Iraque deu lugar à guerra mais privatizada da história: serviços de alimentação, escritório, lavanderia, transporte, segurança privada, engenharia, construção, logística, treinamento policial, vigilância aérea...a lista é longa. O segundo maior contingente de soldados, após as tropas do exército dos EUA, foi formado por 20 mil militares privados. Greenwald baseia-se nas investigações realizadas pelo deputado Henry Waxman que dirigiu uma Comissão de Investigação sobre o gasto público no Iraque.

Parte dessa história é bem conhecida. A Halliburton, ligada ao então vice-presidente Dick Cheney, recebeu cerca de US$ 13,6 bilhões para “trabalhos de reconstrução e apoio às tropas. A Parsons ganhou US$ 5,3 bilhões em sérvios de engenharia e construção. A Dyn Corp. faturou US$ 1,9 bilhões com o treinamento de policias. A Blackwater abocanhou US$ 21 milhões, somente com o serviço de segurança privada do então “pró-Cônsul” dos EUA no Iraque, Paul Bremer. Essa lista também é extensa e os números reais envolvidos nestes negócios até hoje não são bem conhecidos. A indústria da “reconstrução” do Iraque foi alimentada com muito sangue, de várias nacionalidades. Os soldados norte-americanos entraram com sua quota. Até 1° de setembro deste ano, o número de vítimas fatais entre os militares dos EUA é quase o dobro do de vítimas do 11 de setembro: 4.474. Somando os soldados mortos no Afeganistão, esse número chega a 6.200.

A matemática macabra envolvendo o 11 de setembro e os Estados Unidos manifesta-se mais uma vez quando voltamos a 1973, quando Washington apoiou ativamente o golpe militar que derrubou e assassinou o presidente do Chile, Salvador Allende. Em agosto deste ano, o governo chileno anunciou uma nova estatística de vítimas da ditadura do general Augusto Pinochet (1973-1990): entre vítimas de tortura, desaparecidos e mortos, 40 mil pessoas, 14 vezes mais do que o número de vítimas dos atentados de 11 de setembro de 2001. Relembrando as palavras do presidente Obama e seu peculiar conceito de justiça, os chilenos estariam autorizados a caçar e matar os responsáveis pelo assassinato de milhares de homens, mulheres e crianças.

Assim como no Iraque, nem tudo foi morte, dor e sofrimento na ditadura chilena. Com a chancela da Casa Branca e a inspiração do economista Milton Friedman e seus Chicago Boy’s, Pinochet garantiu gordos lucros para seus aliados e para si mesmo também. Investigadores internacionais revelaram, em 2004, que Pinochet movimentava, desde 1994, contas secretas em bancos do exterior no valor de até US$ 27 milhões. Segundo um relatório de uma comissão do Senado dos EUA, divulgado em 2005, Pinochet manteve elos profundos com organismos financeiros norte-americanos, como o Riggs Bank, uma instituição de Washington, além de outras oito que operavam nos EUA e em outros países. Segundo o mesmo relatório, o Riggs Bank e o Citigroup mantiveram laços com o ditador chileno durante duas décadas pelo menos. Pinochet, amigos e familiares mantiveram pelo menos US$ 9 milhões em contas secretas nestes bancos.

Em 2006, o general Manuel Contreras, que chefiou a Dina, polícia secreta chilena, durante a ditadura, acusou Pinochet e o filho deste, Marco Antonio, de envolvimento na produção clandestina de armas químicas e biológicas e no tráfico de cocaína. Segundo Contreras, boa parte da fortuna de Pinochet veio daí.

Liberdade, Justiça, Segurança: essas foram algumas das principais palavras que justificaram essas políticas. O modelo imposto por Pinochet no Chile era apontado como modelo para a América Latina. Os Estados Unidos seguem se apresentando como guardiões da liberdade e da democracia. E pessoas seguem sendo mortas diariamente no Iraque e no Afeganistão para saciar uma sede que há muito tempo deixou de ser de vingança.

*Artigo originalmente publicado na Carta Maior.

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

11 de Setembro: Allende, nós também temos nossos heróis!

Por João Vicente Goulart


È bom que se recorde também neste 11 de setembro, a vergonhosa derrubada do governo democrático do Presidente Salvador Allende.

Hoje com os documentos desclassificados pelo Departamento de Estado Americano, vemos através do trabalho de Peter Kornbluh do National Security Archives, a enorme participação do governo americano, através da CIA e seus agentes operadores das “ações encobertas” (cover actions) na preparação clandestina para derrubar a democracia socialista, eleita de forma constitucional e só pertencente ao povo chileno que queria construir a justiça social, no destino imposto pelas urnas e que só aquele país pertencia.

Os relatórios, Ação Encoberta no Chile 1963-1973, da Comissão Designada para Estudar as Operações Governamentais Relativas a Atividades de Inteligência, do Senado dos Estados Unidos, conhecido como Relatório Church, de 1975; o Relatório Hinchey sobre as Atividades da CIA no Chile, de Setembro de 2000, são alguns que mostram a eficácia clandestina e a intromissão dos EEUU em golpear democracias no mundo ao bel prazer de seus interesses.

O processo sempre tem semelhanças com outras intervenções de golpes em outros países latinos americanos como Brasil e Argentina.

A metodologia segue passos dirigidos, hoje sabemos disso pelo comitê dos 40 capitaneados pelo vergonhoso Henry Kissinger.

Campanha de desestabilização através da mídia, difamação, mentiras produzidas, financiamento a opositores militares e civis, organizações sociais, e até assassinatos dirigidos a quem entendem ser contra interesses americanos, tudo é valido e clandestino.

Assim o fizeram assassinando o Gral. René Schneider, comandante chefe do Exército de Allende.

O financiamento da CIA aos projetos de Manuel Contreras desembocou na Operação Condor que levou inúmeras vidas á morte e ao desaparecimento forçado em toda a América Latina.

Existe nesses anais do NSA o documento secreto 890 de março de 1986, que mostra o financiamento da CIA ao AID (Agencia Internacional para El desarrollo) em mais de 11 milhões de dólares para fim específico da derrubada de Allende.

Allende no palácio La Moneda resiste
ao golpe militar de 11/09/1973.
O Golpe de Estado foi planeado pela CIA com colaboração da ITT desde 1971.

Já haviam dado o golpe militar no Brasil e contavam com o apoio maciço do General Médici para fazê-lo no Chile, no Uruguai e na Bolívia.

Existem sim atos terroristas no mundo e também temos a lamentar as vítimas inocentes do ataque ao World Trade Center nos EUA em 2001.

Mas temos que recordar que estas ações encobertas são produtos do terrorismo de Estado Norte Americano realizado contra muitas democracias legítimas em nosso continente.

Mas nós também temos nossos heróis!

Neste 11 de setembro nossa homenagem a eles, a Allende e aos anônimos chilenos que tombaram no caminho, pois suas lutas e suas mortes não serão esquecidas.

João Vicente Goulart
Diretor Presidente do Instituto João Goulart