domingo, 28 de novembro de 2010

O ESTADO DE DIREITO E POLÍTICA DE SEGURANÇA NO ENFRENTAMENTO DAS NARCOQUADRILHAS

Oscarino Arantes 

Sempre discordei do sociologismo militante e sua visão reducionista que equaliza o fenômeno da criminalidade ao problema social, quase que redimindo o criminoso de culpa. Por outro lado, existe uma visão elitista reacionária em nossa sociedade de criminalização da pobreza. Entre esses extremos ideológicos, temos a realidade sempre mais complexa do que nossa capacidade de apreensão. 

Sem dúvida há uma ligação fundamental entre pobreza e violência. A marginalização sócio-econômica de comunidades é campo aberto para o domínio da violência urbana, numa lógica compartilhada pelo próprio aparelho repressor de Estado. 

Apesar da propaganda do governo Sérgio Cabral, a verdade é que não houve mudança significativa na política de segurança do Estado, mas apenas a intensificação da mesma política reativa de confronto armado, que tornou a “pena de morte” uma realidade da atuação policial em nossas favelas e periferias. Quem não lembra do General Cerqueira e a gratificação “bang-bang” para os policiais que matassem bandidos em confrontos no governo Marcello Alencar?   

Mesmo a grande operação conjunta das forças de segurança pública com as forças armadas com uso de blindados, não é um fato inédito. Quem não lembra da Eco-92 ou da “Operação Rio” em 94/95? Até mesmo a tomada do Complexo do Alemão não é novidade, pois já foi realizada pela polícia em 2007. Todos os precedentes estão aí, mas então o que mudou?

É preciso ver que tráfico de drogas entrou em decadência na última década com a entrada das drogas sintéticas nas classes alta e média, obrigando a popularização do consumo de drogas baratas como o crak. Com isso, as próprias narcoquadrilhas passaram a sofrer as conseqüências do uso dessas drogas baratas, mudando a relação com as comunidades dominadas, passando a utilizar o terror como instrumento de poder.
Por isso o que mudou, a meu ver, foi a pronta adesão das próprias comunidades à ação das forças de segurança pública. Isso já tinha sido anunciado na eleição, quando muitos se surpreenderam com a votação acachapante que Sérgio Cabral teve nas comunidades “pacificadas”. 

Temos agora uma excelente oportunidade para mudar efetivamente a política de segurança, iniciando uma real presença do Estado nessas comunidades, se nossos governantes não caírem na tentação do populismo assistencialista para proveito eleitoral. Esse um grande risco que abortou no passado bons projetos.  Algumas lições também precisam ser, enfim, aprendidas. Não precisamos de novas leis “mais duras”, como sempre ouvimos nesses casos. Se há algo que não falta no Brasil são leis, que, aliás, temos em demasia. 

O programa das UPPs é bom, mas não é a panacéia vendida pela propaganda política do governo. É um programa materialmente insustentável: a média nas comunidades com UPP é 1 policial para cada 30 moradores, enquanto na Baixada Fluminense é de 1 policial para cada 10.000 habitantes.

O Bope, a celebrada “Tropa de Elite”, por melhor que seja sua capacitação especializada, é um instrumento útil, mas não pode ser tido como a solução para acabar com o crime organizado, nem com a violência urbana. É insustentável uma política de segurança pautada pela lógica da repressão policial, que reproduz a violência. Enquanto isso, dados demonstram que  hoje no Rio, apenas 1% dos crimes são investigados.

Por fim, não se pode esquecer que toda ação de repressão das forças públicas deve ser planejada e orientada por uma única premissa: temos um Estado Democrático de Direito que deve ser preservado e só deve atuar como tal. É a lei que pune o criminoso e não a morte. A arma do policial deve ser antes de tudo a lei e o direito, só em último caso o fuzil. 

terça-feira, 16 de novembro de 2010

SINAIS DA DECADÊNCIA: OS EUA E A GUERRA DE CLASSES

O empobrecimento geral da população dos EUA nos últimos 40 anos contrasta com o escandaloso aumento da renda e dos privilégios dos muito ricos, que estão ganhando a guerra de classes no país.

Por Bill Quigley, no “Counter Punch”

Os ricos e seus falsos profetas contratados estão fazendo um forte trabalho para enganar aos pobres e à classe média. Convenceram a muitos que um socialismo diabólico está florescendo no país, e rouba a todos. É um engano que não pode durar, como os fatos mostram.

Sim, há uma guerra de classes, a guerra dos ricos contra os pobres e a classe média, e os ricos estão vencendo. A guerra começou faz alguns anos. Olhemos para os fatos, os fatos que os ricos e os falsos profetas a seu serviço querem que ninguém conheça.

Deixemos Glenn Beck (um jornalista ultraconservador da Fox News) pontificar sobre os socialistas atacando Washington. Ou que Rush Limbaugh (outro jornalista ultraconservador) vocifere sobre a “guerra de classes de um programa esquerdista que destruirá nossa sociedade”. Estes dois são falsos profetas dos ricos muito bem remunerados.

A verdade é que há algumas décadas os ricos nos EUA estão se tornando mais ricos, e os pobres e a classe média mais miseráveis. Olhemos para os fatos e julguemos nós mesmos.

POBREZA CRESCENTE

-- Os números oficiais da pobreza nos EUA mostram que o país tem o maior número de pessoas pobres desde há 51 anos. A taxa de pobreza oficial nos EUA é de 14,3%, isto é, 43,6 milhões de pessoas pobres. Uma em cada cinco crianças é pobre; um em cada 10 cidadãos da terceira idade é pobre. Fonte: Escritório do Censo dos EUA.

-- Um em cada seis trabalhadores – isto é, 26,8 milhões de pessoas – está desempregado ou subempregado. Esta taxa “real” é superior a 17%. Há 14,8 milhões de pessoas catalogadas “oficialmente” pelo governo como desempregadas, uma taxa de 9,6%. O desemprego é pior paras os trabalhadores afro-americanos, dos quais estão sem emprego 16,1%. Outro 9,5 milhões de pessoas, que trabalham em tempo parcial enquanto buscam trabalho em tempo integral; elas tiveram suas jornadas de trabalho reduzidas ou até o momento só encontraram trabalho em tempo parcial, e não são contadas nos números oficiais de desemprego. Há também 2,5 milhões registrados como desempregados, mas não são contadas porque foram classificados como trabalhadores desanimados, em parte porque estão sem trabalho durante 12 meses. Fonte: Departamento do Trabalho dos EUA. Informe do Escritório de Estatísticas Trabalhistas, outubro de 2010.

-- Nos EUA, a renda média familiar dos brancos é de 51.861 dólares; para os asiáticos, de 65.469; para os afro-americanos, de 32.584; para os latinos, de 38.039. Fonte: Escritório do Censo de EUA.

-- Cinquenta milhões de pessoas nos EUA não têm seguro médico ou plano de saúde. Fonte: Escritório do Censo dos EUA.

-- Nos EUA, as mulheres enfrentam maior risco de morrer por doenças relacionadas com a gravidez do que as mulheres de 40 outros países. As mulheres afro-americanas têm quase quatro vezes mais possibilidades de morrer por doenças semelhantes do que as mulheres brancas. Fonte: Amnesty International Maternal Health Care Crisis in the USA.

-- Cerca de 3,5 milhões de pessoas nos EUA, um terço das quais são crianças, não têm moradia fixa em algum momento do ano. Fonte: National Law Center on Homelessness and Poverty.

-- Em Atlanta, 33.000 pessoas procuraram moradias subsidiadas de baixo custo em agosto de 2010. Quando Detroit ofereceu assistência de emergência para os despejados de suas residências, mais de 50 mil pessoas compareceram para tentar conseguir alguma das 3.000 ajudas disponíveis. Fonte: Informes da imprensa.

-- Nos EUA existem 49 milhões de pessoas que vivem em casas onde só há comida porque recebem vales-alimentação, freqüentam dispensas de comida ou restaurantes populares para obter ajuda; 16 milhões são tão pobres que não tiveram comida em algum momento do último ano. É o mais alto nível desde que as estatísticas são disponíveis. Fonte: US Department of Agriculture, Economic Research Service.

A CLASSE MÉDIA DECLINA

Em uma ou duas gerações anteriores era possível, para uma família de classe média, viver com uma única fonte de renda. Agora são necessárias as rendas de duas pessoas para manter a mesma qualidade de vida. Os salários não seguiram o ritmo dos preços e, ajustados a inflação, perderam terreno nos últimos dez anos. O custo da moradia, a educação e a assistência médica cresceram a uma taxa superior aos salários. Em 1967, 60% das casas, entre as 20% mais ricas e os 20% logo acima dos mais pobres, receberam 52% de todas as rendas. Em 1998, diminuiu 47%. A proporção que corresponde aos mais pobres também caiu, enquanto que os 20% mais ricos viu sua parte aumentar.

-- Um recorde de 2,8 milhões de famílias recebeu uma notificação de execução hipotecária em 2009, número maior que nos anos 2007 e 2008. Em 2010, se espera que o número chegue a três milhões de famílias. Fonte: Reuters and Realty Trac.

-- Onze milhões de proprietários de residências (quase um em cada quatro) estão com “água pelo pescoço” ou devem mais pelas hipotecas do que valem suas casas. Fonte: “Home truths”, The Economist, 23 /10/ 2010.

-- Pela primeira vez desde 1940 as rendas reais das famílias de classe média são menores no final do ciclo econômico da década de 2000 do que no início dele. Apesar da força de trabalho dos EUA estar trabalhando mais dura e habilmente do que nunca, cada vez está recebendo menos renda do que ela própria cria. Isto é verdade para as famílias brancas e ainda mais para as famílias afro-americanas cujas ganhos alcançados na 1990 foram em sua maioria eliminados. Fonte: Jared Bernstein and Heidi Shierholz, State of Working America.

OS RICOS, CADA VEZ MAIS RICOS

-- A riqueza das 400 pessoas mais ricas dos EUA cresceu 8% no último ano, atingindo 1,37 trilhões de dólares. Fonte: Forbes 400, “Os superricos se tornam mais ricos”, 22/09/2010. Money.com

-- David Tepper, que foi classificado como o melhor diretor de “hedge fund” de 2009, “ganhou” quatro bilhões de dólares no ano passado. Os demais melhor classificados receberam: 3,3 bilhões, 2,5 bilhões, 1,4 bilhões, 1,3 bilhões (empatados nos 6º e 7º lugares), 900 milhões (empatados nos 8º e 9º lugares) e, na última posição entre os dez melhores classificados, 825 milhões. Fonte: Business Insider. “Meet the top 10 earning hedge fund managers of 2009.”

-- A disparidade de renda nos EUA é hoje tão ruim como era antes da Grande Depressão, no final da década de 1920. Entre 1979 e 2006, a camada formada pelo 1% mais rico mais que dobrou sua porção no total das rendas, passando de 10% para 23%. Sua renda anual média foi superior a 1,3 milhões de dólares. Nos últimos 25 anos, mais de 90% do total de crescimento das rendas nos EUA foi para os 10% mais ricos, deixando apenas 9% para as outras faixas de renda que formam os demais 90% da população. Fonte: Jared Bernstein y Heidi Shierholz, State of Working America.

-- Em 1973, o salário médio dos presidentes de empresas nos EUA era de 27 dólares para cada dólar pago a um trabalhador; em 2007 a proporção subiu 275 por um. Fonte: Jared Bernstein and Heidi Shierholz, State of Working America.

-- Desde 1992 a taxa média de impostos dos 400 contribuintes mais ricos dos EUA caiu de 26,85 para 16,62%. Fonte: US Internal Revenue Service.

-- Os EUA tem a maior desigualdade entre os ricos e os pobres entre as nações industrializadas no Ocidente, e piorou nos últimos 40 anos. O World Factbook, publicado pela CIA, inclui um ranking de desigualdade entre as famílias dentro de cada país, mediante o índice Gini. Os EUA ocupavam a 45ª posição em 2007, igual à Argentina, Camarões e Costa do Marfim. A maior desigualdade se encontra em países como Namíbia, África do Sul, Haiti e Guatemala. O posto 45 dos EUA é muito baixo em relação ao Japão (38), Índia (36), Nova Zelândia e Reino Unido (34), Grécia (33), Espanha (32), Canadá (32), França (32), Coreia do Sul (31), Holanda (30), Irlanda (30), Austrália (30), Alemanha (27), Noruega (25) e Suécia (23). Fonte: CIA The World Factbook.

-- Os ricos vivem uma média de cinco anos mais que os pobres nos EUA. Naturalmente, as grandes desigualdades têm consequências em termos de saúde, exposição a condições de trabalho pouco saudáveis, nutrição e estilo de vida. Em 1980 os mais poderosos tinham uma esperança de vida de 2,8 anos sobre os não tão afortunados. À medida que a brecha da desigualdade cresce, também aumenta a brecha da esperança de vida. Em 1990, ela era um pouco inferior a quatro anos. Em 2000, os menos afortunados podiam esperar viver até os 74,7 anos enquanto os mais poderosos tinham uma esperança de vida de 79,2 anos. Fonte: Elise Gould, “Growing disparities in life expectancy,” Economic Policy Institute.

CONCLUSÃO

Esses são fatos extremamente preocupantes para qualquer pessoa interessada pela justiça econômica, pela igualdade de oportunidades e pela justiça. Thomas Jefferson observou em certa ocasião que a reestruturação sistemática da sociedade em benefício dos ricos contra os pobres e a classe média é uma tendência natural dos ricos. "A experiência nos diz que o homem é o único animal que devora sua própria espécie, e não posso encontrar palavras mais suaves para... a depreciação geral dos pobres pelos ricos”. Mas Jefferson também sabia que a justiça não pode se atrasar indefinidamente, e disse: ”Temo por meu país quando penso que Deus é justo, e que sua justiça não pode dormir para sempre.”

Os ricos falam da ascensão do socialismo para distrair a atenção sobre sua devoradora apropriação da subsistência básica dos pobres e de todos os demais. Muitos dos que clamam mais ruidosamente contra “o lobo” do socialismo o fazem para enriquecerem ainda mais ou concederem-se poderes a si próprios. Estão certos em uma coisa: há uma guerra de classes em marcha nos EUA. Os ricos estão ganhando essa guerra de classes, e é hora para todos os demais lutarem por justiça econômica.”

FONTE: escrito por Bill Quigley, diretor do “Centro Para os Direitos Constitucionais” e professor de direito na Universidade de Loyola de Nova Orleans-EUA. Publicado no “Counter Punch” e transcrito no portal “Vermelho” (http://www.vermelho.org.br/noticia.php?id_noticia=140964&id_secao=9).

Colônia, Monarquia, República: pactos de elite na história brasileira

Por Emir Sader

Tivemos a proclamação da República mais de seis décadas depois da independência, porque esta nos levou de Colônia à Monarquia pelas mãos do monarca português, que ainda nos ofendeu, com as palavras – que repetíamos burocraticamente na escola- “antes que algum aventureiro o faça”. Aventureiros éramos nós, algum outro Tiradentes, ou algum Bolívar, Artigas, Sucre, San Martin O´Higgins, que lideraram revoluções de independência nos seus países, expulsando os colonizadores em processos articulados dos países da região.

Foi o primeiro pacto de elite da nossa história, em que as elites mudam a forma da dominação, para imprimir continuidade a ela, sob outra forma política. Neste caso, impôs-se a monarquia. Tivemos dois monarcas descendentes da família imperial portuguesa, ao invés da República, construindo estados nacionais independentes, expulsando os colonizadores ao invés do “jeitinho” da conciliação.

Como sempre acontece com os pactos de elite, o povo é quem paga o seu preço. Enquanto nos outros países do continente, as guerras de independência terminaram imediatamente com a escravidão, esta se prolongou no Brasil, fazendo com que fossemos o último país a terminar com ela, prolongando-a por várias décadas mais. Nesse intervalo de tempo foi proclamada a Lei de Terras, de 1850, que legalizou – mediante a grilagem, aquela falcatrua em que o documento forjado é deixado na gaveta e o cocô do grilo faz parecer um documento antigo – todas as terras nas mãos dos latifundiários. Assim, quando finalmente terminou a escravidão, não havia terras para os escravos, que se tornaram livres, mas pobres, submetidos à exploração dos donos fajutos das terras.

Dessa forma, a questão colonial se articulou com a questão racial e com a questão agrária. Esse pacto de elite responde pelo prolongado poder do latifúndio e pela discriminação contra a primeira geração de trabalhadores no Brasil, os negros que, trazidos à força da África vieram para produzir riquezas para a nobreza européia como classe inferior. Desqualificava-se ao mesmo tempo o negro e o trabalho.

A República foi proclamada como um golpe militar, que a população assistiu “bestializada”, segundo um cronista da época, sem entender do que se tratava – o segundo grande pacto de elite, que marginalizou o povo das grandes transformações históricas.

Educação, caso de política ou de polícia?

FREI BETTO

O IBGE divulgou, a 17 de setembro, a Síntese de Indicadores Sociais 2010. O IBGE é um órgão do governo federal. Portanto, não está a serviço da oposição nem dos detratores do governo Lula. Felizmente, é sério e isento. Os dados concernentes à educação no Brasil são estarrecedores.

Em 2009, 14,8% dos jovens de 15 a 17 anos se encontravam fora da escola. E 32,8% daqueles que tinham entre 18 e 24 anos deixaram os estudos sem completar o ensino médio. (Haja mão de obra desqualificada e candidatos ao narcotráfico...).

Comparado aos demais países do Mercosul, o Brasil tinha a maior taxa de abandono do nível médio – 10% dos alunos. Na Argentina, 7%; no Uruguai, 6,8%; no Chile, 2,9%; no Paraguai, 2,3%; e na Venezuela, 1%.

Por que nossos jovens abandonam a escola? Os principais fatores são a falta de recursos para pagar os estudos e o reduzido número de escolas públicas; o desinteresse; a constante repetência, provocada por pedagogias ultrapassadas, desmotivação e freqüente ausência de professores; a dificuldade de transporte e a necessidade de ingressar precocemente no mercado de trabalho.

Para se ter um aluno empenhado em fazer um bom ensino médio é preciso que a motivação seja despertada na pré-escola e no ensino fundamental. Ora, como alcançar este objetivo se nossas crianças ficam, em geral, apenas quatro horas por dia na escola? A média latino-americana é de seis horas!

Apesar disso, houve avanços nos últimos dez anos, quando quase dobrou o número de jovens de 18 a 24 anos que concluíram o ensino médio ou ingressaram na universidade. Se em 1999 apenas 29,6% dos alunos terminaram o ensino médio, em 2009 o índice subiu para 55,9%. Em 1999, 21,7% tinham 11 anos de estudos (tempo suficiente para completar o ensino médio). Em 2009, 40,7% freqüentaram a escola durante 11 anos. Em 1999, 7,9% ingressaram na universidade; em 2009, 15,2%.

Em 2009, 30,8% dos jovens entre 18 e 24 anos concluíram algum curso de qualificação profissional. Em 2004, apenas 17,2%. Este avanço se deve ao empenho do governo em multiplicar o número de escolas técnicas, bem como o sistema S (Senai, Senac etc.), e as bolsas de estudos concedidas via ProUni.

Por trás dos dados positivos se escondem desigualdades gritantes. Em 2009, 81% dos jovens de 15 a 17 anos entre os 20% mais pobres estavam na escola. Entre os 20% mais ricos o índice subia para 93,9%. Graças ao sistema de cotas e ao ProUni, dobrou o número de universitários com mais de 25 anos que se declaram negros: 2,3% em 1999, e 4,7% em 2009. Já o índice dos que se declaram brancos é quatro vezes maior: 15%.

O Brasil conta com 3,6 milhões de crianças com menos de 4 anos de idade e é ínfimo o número de creches para elas. O que significa que estão sujeitas a graves desvios pedagógicos por longo tempo de exposição à TV, permanente convivência com adultos ou idosos, muitas vezes entregues a vizinhos enquanto os pais cumprem o horário de trabalho. A Constituição assegura, no Capítulo II – Dos Direitos Sociais, "assistência gratuita aos filhos e dependentes desde o nascimento até seis anos de idade em creches e pré-escolas". Quantas empresas cumprem?

Segundo o IBGE, entre 0 e 14 anos de idade há, no Brasil, uma população de pouco mais de 54 milhões de pessoas. Dessas, 5 milhões, ou 10,9% do total, vivem em situação de risco, em moradias sem água tratada, rede de esgoto e coleta de lixo. O Nordeste concentra a maior parte dessas crianças: 19,2%. E o Maranhão e o Piauí lideram essa estatística. A pesquisa apontou ainda que quase 39,4% dos alunos do ensino fundamental freqüentam escolas sem rede de esgoto e 10% delas não contam nem com água potável.

Falta muito a fazer. Enquanto a educação brasileira não alcançar o nível mínimo de qualidade, continuaremos a ser uma nação desigual, injusta, subdesenvolvida e dependente. Também pudera, embora a Constituição exija que sejam aplicados 8% do PIB na educação, o investimento do governo nesta área não chega a 5%. E o orçamento do Ministério da Cultura para 2011 é inferior a 1%.

Não é de estranhar o nepotismo na Casa Civil e os Tiriricas na corrida eleitoral. Além de educação, falta ao Brasil vergonha na cara. Desse jeito, o descaso da política para com a educação acaba virando caso de polícia, tamanho o crescimento da violência urbana.

Frei Betto é escritor, autor de "Alfabetto – autobiografia escolar" (Ática), entre outros livros.
Página do autor: http://www.freibetto.org/ –  twitter: @freibetto Fonte: Correio da Cidadania

Perigo de retrocesso no Brasil existe, diz Alain Touraine

Márcia Abos

SÃO PAULO - Um dos mais respeitados intelectuais franceses, o sociólogo Alain Touraine, de 85 anos, diretor da École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris, apresenta na terça-feira, em São Paulo, o seminário "Queda e renascimento das sociedades ocidentais".

Touraine chegou no domingo à capital paulista e, em entrevista ao GLOBO, falou sobre o temor de um retrocesso no Brasil, após a eleição de Dilma Rousseff. Apesar de elogiar os governos Fernando Henrique e Lula, frisou que o país tem um passado marcado pelo populismo e alertou para o autoritarismo de "segmentos do PT":

- A verdade é que não sabemos o que será o governo da nova presidente.

O intelectual também acredita que o tucano José Serra é peça fundamental para a oposição.

O GLOBO: Como o senhor vê as transformações da sociedade brasileira nos últimos 16 anos? Como avalia a vitória de Dilma Rousseff?

ALAIN TOURAINE: Uma coisa é clara. O Brasil tem um sistema político horrível, corrupto. Fernando Henrique Cardoso, em seus oito anos de governo, construiu as instituições. Fez uma transição perfeita para entregar a Presidência a seu sucessor, Luiz Inácio Lula da Silva. Lula, por sua vez, realizou transformações sociais, tirando dezenas de milhões de brasileiros da miséria e da exclusão. Graças aos dois, em igual importância, o Brasil tem os elementos básicos para desenvolver um novo tipo de sociedade. Mas não sou necessariamente otimista. Não sabemos o que acontecerá daqui para a frente. A nova presidente (Dilma) foi inventada por Lula.

O Brasil tem um longo passado de populismo e a ameaça persiste devido ao nível de desigualdade social extremamente elevado. Após 16 anos dos governos FHC e Lula, é impossível questionar o potencial do Brasil. Mas o perigo de um retrocesso existe, até porque o passado do PT está longe de ser perfeito. Lula não foi autoritário, mas segmentos do PT o são. A idéia de Dilma esquentar a cadeira por quatro anos para Lula também me desagrada. Em uma democracia, não pode haver presidente interino. A verdade é que não sabemos o que será o governo da nova presidente, porque ela não tem experiência política. Mas eu acredito que o Brasil tem tudo para ser o lugar em que uma nova sociedade surgirá. Não vejo muitos outros países no mundo que tenham chances tão boas quanto o Brasil.

José Serra, candidato derrotado do PSDB, deu a entender que fará com seu partido uma oposição mais dura ao governo Dilma, diferente da postura de seu partido frente a Lula. Como o senhor vê a polarização entre os dois maiores partidos brasileiros?

TOURAINE: Neste momento, Dilma é Lula. Ninguém sabe nada sobre ela. Ela pode ter tendências populistas ou fazer um fantástico governo, não sabemos. O fato é que, depois de Lula, era impossível para José Serra vencer. Ele é extremamente competente, honesto e sério. Na oposição, é um ativo valioso para o Brasil frente aos riscos de irresponsabilidade e populismo.

Para o senhor, como a globalização transformou a sociedade pós-moderna?

TOURAINE: Globalização significa muito mais que internacionalização. Significa que nenhuma instituição política, social ou religiosa é capaz de controlar um sistema econômico globalizado. Portanto, minha principal idéia é que a globalização significa o fim da sociedade. A diversidade dos atores é mais importante do que o sistema.

O que restou é o mercado puro. Vivemos agora em uma não sociedade, na qual as pessoas estão interessadas em coisas sem significado. Eliminar significados tem sido a aventura da Europa nos últimos 20 anos. Por exemplo, o desenvolvimento industrial sendo eliminado para dar lugar ao mercado financeiro: dinheiro pelo dinheiro.

Na vida privada, teorias românticas do século XIX deram lugar ao erotismo, à pornografia, ao sexo sem comunicação, emoção ou intenção. Interesse e desejo são a mesma coisa. Minha pergunta é se é possível reconstruir uma vida social a partir de nenhum elemento social, pois eles despareceram ao longo do caminho.

E é possível? Há esperança para a vida em sociedade?

TOURAINE: O único movimento político realmente forte hoje é a ecologia. Pela primeira vez na História abandonamos a velha filosofia de Descartes ou Bacon de que a cultura domina a natureza. Pela primeira vez estamos preocupados em salvar a natureza sem destruir a civilização e vice-versa. Outra força antropológica pela qual tenho grande interesse é o movimento feminista. Mulheres em geral têm uma visão de sociedade que é o contrário do modelo masculino de tensão extrema, polarização. Mulheres buscam a conciliação em vez da oposição.

No entanto, o feminismo ainda não existe como força política. O sexismo domina. Já avançamos, mas as mulheres continuam tratadas como vítimas. Ninguém as menciona como alguém que faz coisas. São mais criativas que os homens, mas, por enquanto, aparecem como vítimas, principalmente da violência doméstica. A terceira força do que seria esta nova sociedade está no indivíduo, no direito a ter direitos, como dizia Hannah Arendt.

Ninguém sabe o que democracia significa hoje, cada um tem sua definição. Para mim, democracia é ampliar o acesso de todos a serviços e bens básicos, como educação e saúde, entre outras coisas. É possível reconstruir uma sociedade baseada em termos não sociais universais, tais como a ecologia e os direitos individuais. Sou um grande defensor da idéia de universalização. É fundamental reconhecer e garantir valores universais como, por exemplo, a liberdade religiosa. Recriar formas de vida coletiva e privada baseadas em princípios universais. Se viver mais um ano, penso em escrever um livro com minhas idéias a respeito dessa nova sociedade possível.

Fonte: O Globo

terça-feira, 9 de novembro de 2010

Política é coisa de idiota?

Mario Sergio Cortella

“Política é coisa de idiota!”. Mas não pode ser! Essa sentença aparece em comentários indignados, cada vez mais frequentes no Brasil, e, em nome da verdade histórica, o que podemos constatar é que acabou se invertendo o conceito original de idiota, pois a expressão idiótes, em grego, significava aquele que só vive a vida privada, que recusa a política, que diz não à política. Em outros termos, os gregos antigos chamavam de idiota a pessoa que achava que a regra da vida é “cada um por si e Deus por todos”.

Os mesmos gregos davam um nome apropriado a quem cuidasse também da vida pública, da comunidade, e que acreditasse que a mais nobre regra é “um por todos e todos por um”: este era chamado de político. E se entendia que todas e todas éramos e deveríamos ser políticos, a partir da noção de que pólis é a comunidade, a cidade, a sociedade, e é nela, com ela e por ela que vivemos.

No cotidiano, o que se fez foi um sequestro semântico, uma inversão do que seria o sentido original de idiota, a ponto de muitas e muitos hoje pensarem que só deixa de ser idiota aquele que vive fechado dentro de si e só se interessa pela vida no âmbito pessoal. Sua expressão generalizada é: “Não me meto em política”.

Recusemos tal percepção negativa da política, pois afeta a convivência decente e saudável e, antes de mais nada, esquece que “os ausentes nunca tem razão”. De fato, muitos se sentem assim em relação a um determinado modo de fazer política, mas não corresponde à ideia mais abrangente de política, dado que ausentar-se em nome da liberdade e do interesse próprio esbarra novamente no mundo clássico, para o qual o idiota não é livre (porque toma conta só do próprio nariz), pois entendiam que só é livre aquele que se envolve na vida pública, na vida coletiva.

Assim, a política é vista aí como convivência coletiva, mesmo que moremos cada um em nossa própria, usando o latim, domus, ou seja, em casa, nosso domínio. Porém, na prática, porque vivemos juntos e só assim o conseguimos, a questão é que não temos domus, só temos con-domínios. Viver é conviver, seja na cidade, ainda que em casa ou prédio, seja no país, seja no planeta.

A vida humana é condomínio. E só existe política como capacidade de convivência exatamente em razão do condomínio.

*Mario Sergio Cortella é filósofo e professor-titular da PUC-SP, escreveu com o filósofo Renato Janine Ribeiro (USP) o livro Política: para não ser idiota

Fonte: Correio Popular online, 23/09/2010

sábado, 6 de novembro de 2010

EDUCAÇÃO DE QUALIDADE PARA TODOS É O CAMINHO PARA A ERRADICAÇÃO DA POBREZA

AVANÇO DA DILMA

Por Cristovam Buarque

Em sua primeira fala depois da eleição, a presidente Dilma Rousseff apresentou o compromisso com a erradicação da miséria. Foi um avanço no compromisso do presidente Lula, quando em seu primeiro pronunciamento anunciou o compromisso com a erradicação da fome.

O debate presidencial de 2010 evitou o tema da erradicação da pobreza.

Discutiu-se manter ou abolir o programa Bolsa Família, se o seu valor seria aumentado e se seus beneficiários teriam um mês adicional por ano. Nenhum jornalista perguntou e nenhum candidato prometeu fazer a bolsa ser desnecessária, graças à erradicação da pobreza.

Já eleita, Dilma assume este compromisso, mas sem dizer como fará. Se o caminho for apenas ampliar a transferência de renda, ela não conseguirá cumprir sua promessa. Além da falta de renda, pobreza é falta de segurança, de escola com qualidade, de habitação, de saúde. Comida é possível comprar com renda, habitação já precisa de apoio público, os demais itens somente serão atendidos diretamente pelo Estado. Nenhuma transferência de renda será suficiente para garantir que o pobre pague escola privada, hospital privado, água e saneamento em sua casa ou policiais para protegê-lo.

A presidente Dilma precisa explicitar como será seu programa para a erradicação da pobreza, sem ficar presa à renda, para não se perder, como Lula nos primeiros meses do complicado programa Fome Zero. Para acabar com a fome, Lula precisou descobrir a renda da Bolsa Escola transformada em Bolsa Família.

A inclusão social é, sobretudo, o resultado da “distribuição” de conhecimento.

A educação de qualidade para todos é o caminho para a erradicação da pobreza. A presidente Dilma mostrou vontade de avançar, da “luta contra a fome”, do Lula, para a “promoção da erradicação da miséria”, mas para isto terá que entender que o caminho é a educação.

Dilma precisa descobrir a educação e definir desde já seu programa de revolução na educação de base, fazendo-a igual para toda criança do Brasil, em um prazo que não será curto. Seu primeiro passo deverá ser substituir dois, três ou diversos dos Ministérios já existentes por um que se dedique exclusivamente à educação de base. Enquanto o Ministério da Educação cuidar do ensino superior, ele continuará impossibilitado de ser um instrumento da revolução na educação de base.

O segundo passo será enfrentar e definir o cronograma de federalização da educação de base, com uma carreira nacional do magistério e um programa federal de qualidade educacional em horário integral, com escolas bonitas, confortáveis e bem equipadas.

Este programa deve ser implantado por cidades, onde os prefeitos desejem aportar suas contribuições e onde todos os partidos locais se comprometam a manter a continuidade do programa, mesmo depois da conclusão dos atuais mandatos. A idéia do pacto nacional pela educação, já proposta por diversas pessoas, inclusive pelo candidato do PDT nas eleições presidenciais de 2006, que o Serra voltou a propor em 2010, pode ser iniciada por município, com o apoio do governo federal.

Isto foi feito em 2003, em 29 pequenas cidades, no começo do governo Lula, com o programa Escola Ideal, mas interrompido logo no começo de 2004, com a reorientação do governo Lula para concentrar o apoio federal no ensino superior.

Lula cumpriu seu compromisso de acabar com a fome, porque usou o instrumento certo, uma simples transferência de renda. O programa já existia e ele, com sensibilidade e firmeza, ampliou-o até os limites necessários.

Se ficar presa apenas a uma Bolsa maior, Dilma vai fracassar.

Terá ido além do Lula na ambição da meta, mas ficará aquém dele na realização dela.

A missão da Dilma de erradicar a pobreza identifica-se com a busca de ficar na história como a alfabetizadora do Brasil, a líder que iniciou a revolução educacional capaz de fazer com que os filhos dos patrões e dos políticos estudem nas mesmas escolas dos filhos dos mais humildes trabalhadores.

Caso contrário, ela pode até ir um pouco além do Lula, mas não realizará o que o Brasil precisa.

Teremos que esperar mais tempo por outro presidente que fará a revolução brasileira pela educação.

CRISTOVAM BUARQUE é senador (PDT-DF)
Artigo publicado no Jornal O Globo em 06/11/2010

O ESTADO LAICO E PLURALISTA E AS IGREJAS

Por Leonardo Boff

A descriminalização do aborto e a união civil de homosexuais, temas suscitados na campanha eleitoral, ensejam uma reflexão sobre a laicidade do Estado brasileiro, expressão do amadurecimento de nossa democracia. Laico é um Estado que não é confessional, como ocorre ainda em vários países que estabelecem uma religião, a majoritária, como oficial. Laico é o Estado que não impõe nenhuma religião mas que respeita a todas, mantendo-se imparcial diante de cada uma delas. Essa imparcialidade não significa desconhecer o valor espiritual e ético de uma confissão religiosa. Mas por causa do respeito à consciência, o Estado é o garante do pluralismo religioso. 

Por causa dessa imparcialidade não é permitido ao Estado laico impôr, em matéria controversa de ética, comportamentos derivados de ditames ou dogmas de uma religião, mesmo dominante. Ao entrar no campo político e ao assumir cargos no aparelho de Estado, não se pede aos cidadãos religiosos que renunciem a suas convicções religiosas. O único que se cobra deles é que não pretendam impôr a sua visão a todos os demais nem traduzir em leis gerais seus próprios pontos de vista particulares. A laicidade obriga a todos a exercer a razão comunicativa, a superar os dogmatismos em favor de uma convivência pacífica e diante dos conflitos buscar pontos de convergência comuns. Nesse sentido, a laicidade é um princípio da organização jurídica e social do Estado moderno.
Subjacente à laicidade há uma filosofia humanística, base da democracia sem fim: o respeito incondicional ao ser humano e o valor da consciência individual, independente de seus  condicionamentos. Trata-se de uma crença, não em Deus como nas religiões que melhor chamaríamos de fé, mas de crença no ser humano em si mesmo, como valor. Ela se expressa pelo reconhecimento do pluralismo e pela convivência entre todos.
Não será fácil. Quem está convencido da verdade de sua posição, será tentado a divulgá-la e ganhar adeptos para ela. Mas está impedido de usar meios massivos para fazer valê-la aos outros. Isso seria proselitismo e fundamentalismo.
Laicidade não se confunde com laicismo. Este configura  uma atitude que visa a erradicar da sociedade as religiões, como ocorreu com o socialismo de versão soviética ou por qualquer motivo que se aduza, para dar espaço apenas a valores seculares e racionais. Este comportamento é religioso ao avesso e desrespeita as pessoas religiosas.
Setores de Igreja ferem a laicidade quando, como ocorreu entre nós, aconselharam a seus membros a não votarem em certa candidata por apoiar a discriminalização do aborto por razões de saúde pública ou aceitar as uniões civis de homosexuais. Essa atitude é inaceitável dentro do regime laico e democrático que é o convívio legítimo das diferenças.
A ação política visa a realização do bem comum concretamente possível nos limites de uma determinada situação e de um certo estado de consciência coletivo. Pode ocorrer que, devido às muitas polêmicas, não se consiga alcançar o melhor bem comum concretamente possível. Neste caso é razoável, também para as Igrejas, acolher um bem menor ou tolerar um mal menor para evitar um mal maior.
A laicidade eleva a todos os cidadãos religiosos a um mesmo patamar de dignidade. Essa igualdade não invalida os particularismos próprios de cada religião, apenas cobra dela o reconhecimento desta mesma igualdade às outras religiões.
Mas não há apenas a laicidade jurídica. Há ainda uma laicidade cultural e política que, entre nós, é geralmente desrespeitada. A maioria das sociedades atuais laicas são hegemonizadas pela cultura do capital. Nesta prevalecem valores materiais questionáveis como o individualismo, a exaltação da propriedade privada, a laxidão dos costumes e a magnificação do erotismo. Utilizam-se os meios de comunicação de massa, a maioria deles propriedade privada de algumas famílias poderosas que impõem a sua visão das coisas.
Tal prática atenta contra o estatuto laico da sociedade. Esta deve manter distância e submeter à crítica os  "novos deuses". Estes são ídolos de uma "religião laica" montada sobre o culto do progresso ilimitado, da tecnificação de toda vida e do hedonismo, sabendo-se que este culto é política e ecologicamente falso porque implica a continuada exploração da natureza já degradada e a exclusão social de muita gente.
Mesmo assim não se invalida a laicidade como valor social.
Leonardo Boff é teólogo

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

ELEIÇÃO 2010: DAS CINZAS DE UMA DERROTA ANUNCIADA, QUE BRASIL SAI DAS URNAS?


Oscarino Arantes

A eleição de Dilma Roussef como a primeira mulher presidente do Brasil, não teve nem a sombra da mística que cercou a eleição do primeiro operário em 2002. A eleição de Lula, naquele momento, marcava um significativo avanço. A eleição de Dilma marca um lamentável retrocesso, não pela candidata em si, mas pelo esquema de poder, que lhe conduziu ao poder. Numa eleição marcada pela despolitização do meio político, desvelaram-se todas as mazelas e vícios que se acercam do poder, historicamente, em nosso país: dos currais eleitorais do antigo coronelismo ao clientelismo das políticas assistenciais; do patrimonialismo nas relações Estado-Elite ao fisiologismo das alianças partidárias; do golpismo descarado da mídia liberal ao patrulhismo do esquerdismo populista-demagógico. Tivemos um verdadeiro 3x4 de um circo de horrores. Ouso dizer que o pleito de 2010 deverá ser visto pela História, como a eleição perdida. Quando tudo enfim favorecia, perdemos a oportunidade de nossa democracia avançar e retrocedemos às práticas mais nefastas de nosso tumultuado processo político no século XX.

Na armadilha do continuísmo

Não houve confronto de idéias, somente de egos. Não havia divergência, mas apenas uma disputa pela precedência: quem criou o “bolsa isso”, quem privatizou o quê. O que muito contribuiu para essa letargia dialética, foi o decantado “continuísmo”, imposto e celebrado pela mídia liberal desde que Lula chegou ao poder. Tratava-se de um discurso ideológico de cerceamento do processo democrático, fechando o círculo de alternativas e debate na falsa polarização PT-PSDB, que ensaia um bipartidarismo de modelo americano em nosso país. Obviamente, o “tiro saiu pela culatra”, quando viram que Lula não tinha um candidato com perfil de interlocutor de classes, que tão bem soube desempenhar no seu governo. Desembarcaram em peso na candidatura Serra, mas já era tarde. Ambos os candidatos se apresentavam como representantes de um “continuísmo”, só que Dilma tinha ao seu lado Lula e o lumpesinato assistido.

Já disse que o pior legado do governo Lula é uma política despolitizada. O povo alienado no cotidiano não percebe o risco pra democracia de uma política despolitizada. Típico dessa despolitização, o continuísmo é um discurso ideológico de dominação, verdadeira metástase de uma democracia, que anula os sonhos, a inovação, a criatividade e a ousadia de uma sociedade pluralista. Em tempos de política despolitizada, o voto se define não pela opção, mas pela falta de opção. Apesar de Lula ostentar impressionantes 83% de aprovação, Dilma foi eleita com “apenas” 41% de votos do eleitorado brasileiro. Há algo que esses números indicam que precisará ser mais bem analisado no futuro. Mas a meu ver, a princípio, essa diferença assinala o esgotamento político do projeto Social-Democrata comandado pelo PSDB-PT. A falta de novos atores e reais alternativas políticas começa a ser sentida pela sociedade e as urnas deram claro sintoma: 21,50% de abstenção, 6,70% entre brancos e nulos nesse 2º turno.


Que PT surge das urnas sem-Lula?

O PT que sai das urnas de 2010, certamente não é o PT de 2002, ainda ensimesmado no seu ‘messianismo’ ideopolítico. Também não é o PT de 2006, livre das “amarras” ideológicas dos dissidentes, mas ressabiado com o rescaldo do “mensalão”. Em ambas as eleições, Lula se elegeu com os votos de seu próprio eleitorado e pouco devia ao partido, que tudo lhe devia. Mas Dilma não tem eleitorado próprio e se elegeu à conta de um grande esquema de poder, montado sob a aliança PT-PMDB. Além disso, ao contrário de Lula, Dilma não é uma líder capaz de mediar a sanha fisiológica do estranho emaranhado de interesses que lhe dá sustentação. Nesse mosaico movediço, que o governo Dilma caminhará, o PT emerge fortalecido como sua base sólida e saberá cobrar o preço por esse novo papel. Qual a capacidade de Dilma em não se tornar refém de um PT ‘anabolizado’ por oito anos de poder? Só o tempo dirá e muito vai depender do papel que Lula assumir em sua saída de cena. Lula servia às elites como um anteparo para conter os movimentos sociais, compensando o patrimonialismo com o assistencialismo e afiançando a estabilidade sócio-política do país. Sem Lula qual o campo de manobra do governo Dilma para mediar crises? Sem partidos políticos aptos a dar vazão às insatisfações de classe, como negociar um pacto de governabilidade com os movimentos sociais?

Reinvenção ou morte

E o que sobra do PSDB após a terceira derrota eleitoral seguida para a presidência da república? Durante os governos de lula, o PSDB não soube fazer o papel de oposição, demonstrando uma incapacidade nata para renovar sua perspectiva, diante da assunção do governo Lula de suas mais expressivas bandeiras. Os tucanos pareciam extasiados com o “continuismo” lulista, que não sabiam como construir um discurso para contrapô-lo. Isso afundou Alckmin em 2006 e agora Serra. É bem verdade que na última hora, Serra tentou clonar o discurso populista-assistencialista do governo Lula, mas não havia densidade para tanto. Em seu lastimável discurso após o resultado das urnas, Serra prematuramente se arvorou como “líder da oposição”, duas coisas que não sabe o que significa. Se não se prestar a fantoche do golpismo reacionário, sempre a espreita, se arrisca ao folclore como um novo Brancaleone. Apesar do PSDB sair dessa eleição com o cabedal de 10 Estados, a verdade é que, sem um projeto nacional renovado, que ultrapasse o provincianismo do tucanato paulista, caminhará a passos largos para a “peemedebetização” do partido, desmembrado no regionalismo oligárquico. Agora cabe à cúpula nacional do PSDB, dominada pelo tucanato paulista, reconhecer que não apostar em Aécio Neves, foi um erro grave, que, aliás, custou a própria eleição. A perda de Minas Gerais para Dilma na disputa presidencial foi o troco que os mineiros souberam dar. O grande dilema que o PSDB enfrenta é decidir se realmente quer se tornar um partido nacional ou se vai continuar sendo apenas um partido paulista.

Está claro também, que das cinzas dessa eleição, partidos como o DEM e PDT terão que se reinventar se quiserem sobreviver a irrelevância a que foram reduzidos nas últimas eleições. Definitivamente o adesismo irrefletido cobra seu amargo preço, seja no campo da direita ou da esquerda. Mas enquanto marca o ocaso de alguns partidos tradicionais, essa eleição anuncia a emergência de outros. Partidos como PR, PV e até o PSB, surgem como possíveis atores do novo cenário político que, de um modo geral, nesse momento, ainda não nos permite divisar um horizonte melhor no futuro pós-Lula. Enfim, o resumo dessa eleição é a crônica de uma derrota anunciada: a crise da democracia.