quarta-feira, 8 de maio de 2013

A simples coragem da decisão: um tributo esquerdista a Margaret Thatcher, por Slavoj Žižek


Por Slavoj Žižek

Nas últimas páginas de seu monumental Second World War, Winston Churchill reflete sobre o enigma de uma decisão militar: depois que os especialistas (analistas econômicos e militares, psicólogos, meteorologistas etc.) propõem sua análise múltipla, elaborada e refinada, alguém deve assumir a ação simples – e por isso a mais difícil – de transformar essa multiplicidade complexa, em que para cada pró há dois contras, em um simples “Sim” ou “Não” – devemos atacar, devemos continuar esperando… Esse gesto, que não pode nunca ser fundamentado em razões, é o gesto do Mestre. Cabe aos especialistas apresentarem a situação em sua complexidade, mas cabe ao Mestre simplificá-la em um ponto de decisão.

Essa figura do Mestre é necessária principalmente em situações de crise profunda. Aqui, a função do Mestre é representar a divisão autêntica – uma divisão entre os que querem se arrastar nos antigos parâmetros e os que têm consciência da mudança necessária. Essa divisão, e não as transigências oportunistas, é o único caminho para a verdadeira unidade. Tomemos um exemplo que certamente não é problemático: a França na década de 1940. Até mesmo Jacques Duclos, segundo homem do Partido Comunista Francês, admitiu em uma conversa privada que, se naquele momento, houvesse eleições livres na França, Marshal Petain teria ganhado com 90% dos votos. Quando De Gaulle, em um ato histórico, se recusou a reconhecer a capitulação ante os alemães e continuou resistindo, ele afirmou que apenas ele falava em nome da verdadeira França (em nome da verdadeira França como tal, não só em nome da “maioria dos franceses”!), e não o regime de Vichy; sua afirmação foi profundamente verdadeira ainda que “democraticamente” não tivesse legitimação nenhuma, mas fosse claramente oposta à opinião da maioria dos franceses…

E Margaret Thatcher, a “dama que não volta atrás”, foi um desses Mestres que se prende a uma decisão vista a princípio como louca, e gradualmente eleva sua loucura singular à norma aceita. Quando perguntaram a Margaret Thatcher sobre seu maior êxito, ela respondeu sem pestanejar: “O New Labour”. E ela estava certa: seu triunfo foi o fato de suas políticas econômicas básicas terem sido adotadas até mesmo por seus inimigos econômicos – o verdadeiro triunfo não é a vitória sobre o inimigo, ele ocorre quando o próprio inimigo começa a usar sua linguagem, de modo que suas ideias formem a base de todo o campo.

Então o que resta hoje do legado de Thatcher? A hegemonia neoliberal está claramente se desintegrando. Thatcher talvez tenha sido a única thatcherista verdadeira – ela acreditava nitidamente nas próprias ideias. O neoliberalismo atual, ao contrário, “imagina apenas acreditar em si mesmo e exige do mundo a mesma imaginação” (para citar Marx[1]). Em suma, o cinismo hoje está totalmente à mostra. Recordemos a piada cruel de Ser ou não ser (1942), de Ernst Lubitch: quando questionado sobre os campos de concentração alemães na Polônia ocupada, o oficial nazista responsável, apelidado de “Campo de Concentração Erhardt”, responde: “Nós concentramos, os poloneses acampam”. 

O mesmo não vale para a falência da Enrom em janeiro de 2002 (e para todos os colapsos financeiros que se seguiram), o que pode ser interpretado como um tipo de comentário irônico sobre a ideia de sociedade de risco? Milhares de trabalhadores que perderam seus empregos e economias certamente estavam expostos ao risco, mas sem terem uma escolha verdadeira – o risco apareceu como destino cego. Por outro lado, quem percebeu efetivamente os riscos e teve a possibilidade de intervir na situação (os altos executivos) conseguiu minimizar os riscos lucrando com suas ações e opções antes da falência – então é verdade que vivemos numa sociedade de escolhas arriscadas, mas uns fazem as escolhas (os executivos de Wall Street) enquanto outros (o povo que paga hipoteca) correm os riscos…

Uma das consequências estranhas do colapso financeiro e das medidas tomadas para neutralizá-lo (grandes quantias de dinheiro para ajudar os bancos) foi o reaparecimento da obra de Ayn Rand, o mais perto que se pode chegar da ideóloga do capitalismo radical do lema “a ganância é boa” – as vendas de A revolta de Atlas, sua magnum opus, explodiram de novo. Segundo alguns relatos, já existem sinais da representação do cenário descrito em A revolta de Atlas – os próprios capitalistas criativos entrando em greve. O congressista republicano John Campbell disse: “Os empreendedores estão entrando em greve. Vejo, em um nível baixo, um tipo de protesto vindo das pessoas que cria empregos [...], que estão abandonando suas ambições porque percebem como serão punidas por causa delas”. É ridículo que essa reação deturpe totalmente a situação: grande parte das gigantescas quantias de dinheiro injetado vai justamente para os “titãs” randianos desregulados, que fracassaram em seu esquema “criativo” e assim provocaram o colapso. Os grandes gênios criativos não estão ajudando o povo comum e preguiçoso: são os contribuintes comuns que estão ajudando os “gênios criativos” fracassados.

O outro aspecto do legado de Thatcher visado pelos críticos da esquerda era sua forma “autoritária” de liderança, sua falta de sensibilidade para a coordenação democrática. Nesse aspecto, contudo, as coisas são mais complicadas do que parecem. Os protestos populares que acontecem atualmente em toda a Europa convergem numa série de demandas que, por sua própria espontaneidade e obviedade, formam um tipo de “obstáculo epistemológico” ao próprio confronto com a crise atual de nosso sistema político. Parece que estamos diante de uma versão popularizada da política deleuziana: o povo sabe o que quer, é capaz de descobrir e formular o que quer, mas só por meio do engajamento e da atividade continuada – então precisamos fazer funcionar a democracia participativa, não só a democracia representativa com seu ritual eleitoral que, a cada quatro anos, interrompe a passividade dos eleitores; precisamos da auto-organização da multidão, e não de um partido leninista centralizado com o Líder etc. etc.

A coisa mais difícil de ser renunciada é esse mito da auto-organização direta não representativa – que é a armadilha final, ou seja, a mais profunda ilusão a ser desfeita. Sim, em cada processo revolucionário existem momentos extáticos de solidariedade grupal, em que centenas de milhares se juntam e ocupam um lugar público, como a praça Tahrir há dois anos; sim, há momentos de participações coletivas intensas, em que as comunidades locais debatem e decidem, em que as pessoas vivem um tipo de estado de emergência permanente, assumindo o controle de tudo, sem nenhum Líder para guiá-las… mas esses estados não duram, e a “fadiga” nesse caso não é um simples fato psicológico, mas sim uma categoria da ontologia social.

A grande maioria – inclusive eu – quer ser passiva e simplesmente confiar em um aparelho estatal eficaz que garanta o andamento harmonioso de todo o edifício social, de modo que cada um possa realizar em paz o próprio trabalho. Walter Lippmann escreveu em seu Public Opinion (1922) que o rebanho dos cidadãos deve ser governado por “uma classe especializada cujos interesses ultrapassam o que é local” – essa classe de elite vai agir como uma máquina de conhecimento que contorna o defeito básico da democracia, o ideal impossível do “cidadão onicompetente”. É assim que funcionam nossas democracias – com o nosso consentimento: não há mistério no que disse Lippmann, trata-se de um fato óbvio; o mistério é que, sabendo disso, jogamos o jogo. Agimos como se estivéssemos livres e decidindo livremente, não só aceitando, mas também exigindo, em silêncio, que uma injunção invisível (inscrita na própria forma da nossa liberdade de expressão) nos diga o que fazer e pensar. “O povo sabe o que quer” – não, não sabe e não quer saber, o povo precisa de uma boa elite, e é por isso que o político correto não só defende os interesses do povo: é através dele que o povo descobre o que “realmente quer”.

Quanto à multidão molecular auto-organizadora contra a ordem hierárquica sustentada pela referência a um líder carismático, note-se a ironia do fato de que a Venezuela, um país tão elogiado por causa de suas tentativas de desenvolver modalidades de democracia direta (conselhos locais, cooperativas, operários comandando fábricas), também é um país cujo presidente foi Hugo Chávez, um líder forte e carismático, se é que existe um. É como se a regra freudiana da transferência também estivesse em ação aqui: para que os indivíduos “ultrapassem a si próprios”, para que escapem da passividade da política representativa e se engajem como agentes políticos diretos, a referência a um líder é necessária, um líder que lhes permita sair do atoleiro do pântano como barão de Münchhausen, um líder “suposto saber” o que quer o povo. É nesse sentido que Alain Badiou mostrou recentemente como as redes horizontais destroem o Mestre clássico, mas simultaneamente propaga novas formas de dominação muito mais fortes que ele. A tese de Badiou é que o sujeito precisa de um Mestre para se elevar além do “animal humano” e pôr em prática a fidelidade a um Evento-Verdade:
“O mestre é aquele que ajuda o indivíduo a se tornar sujeito. Ou seja, se admitimos que o sujeito surge na tensão entre indivíduo e universalidade, então é óbvio que o indivíduo precisa de uma mediação, e portanto de uma autoridade, para progredir nesse caminho. É preciso renovar a posição do mestre – não é verdade que se consiga sem ele, mesmo e especialmente na perspectiva da emancipação.” [2]

E Badiou não teme contrapor o papel necessário do Mestre à nossa sensibilidade “democrática”: 

“Estou convencido de que é preciso reestabelecer a função capital dos líderes no processo comunista, qualquer que seja seu estágio. Dois episódios cruciais em que a liderança não bastou foram a Comuna de Paris (que não tinha um líder digno, exceto Dombrowski no domínio estritamente militar) e a Revolução Cultural Chinesa (Mao estava cansado e velho demais, e o “grupo da RCC” foi infectado pela ultraesquerda). Essa foi uma lição severa.

Essa função capital dos líderes não é compatível com a atmosfera “democrática” predominante, motivo que me faz estar engajado em uma luta feroz contra essa atmosfera (afinal, é preciso começar com a ideologia). Quando me dirijo a pessoas cujo jargão é lacaniano, digo “a figura do mestre”. Quando são militantes, digo “ditadura” (no sentido de Carl Schmitt). Quando são trabalhadores, digo “líder de um grupo” etc. É desse modo que sou rapidamente compreendido.” [3]

Devemos seguir sem medo sua sugestão: para efetivamente despertar os indivíduos de seu “sono democrático”, de sua confiança cega nas formas institucionalizadas da democracia representativa, não bastam os apelos à auto-organização direta: é preciso uma nova figura do Mestre. Recordemos os famosos versos de “A une raison” (A uma razão), de Arthur Rimbaud:

Um toque de teu dedo no tambor liberta todos os sons e começa a nova harmonia.
Um passo teu é a mobilização dos novos homens que se põem em marcha.
Se viras o rosto: o novo amor!
Se desviras o rosto, – o novo amor! [4]

Não há absolutamente nada “fascista” nesses versos – o paradoxo supremo da dinâmica política é que é preciso um Mestre para empurrar os indivíduos para fora do atoleiro de sua inércia e motivá-los para a luta autotranscendente emancipatória pela liberdade.

Precisamos hoje, nessa situação, de uma Thatcher da Esquerda: um Líder que repetiria o gesto de Thatcher na direção oposta, transformando todo o campo de pressupostos compartilhados hoje pela elite política de todas as principais orientações.


[1] Crítica da filosofia do direito de Hegel, 1843 (tradução de Rubens Enderle e Leonardo de Deus, São Paulo, Boitempo, 2010), p. 148
[2] Alain Badiou e Elisabeth Roudinesco, “Appel aux psychanalystes. Entretien avec Eric Aeschimann”, Le Nouvel Observateur, 19 de abril de 2012.
[3] Comunicação pessoal, abril de 2013.
[4] Arthur Rimbaud, Prosa poética (trad. Ivo Barroso, Rio de Janeiro, Topbooks, 1998), p. 229.

Slavoj Žižek esteve no Brasil para lançar seu maior e mais importante livro teórico: Menos que nada: Hegel e a sombra do materialismo dialético.

Artigo traduzido por Rogério Bettoni

Fonte: Blog da Boitempo

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