quinta-feira, 25 de agosto de 2011

50 Anos da Campanha da Legalidade

Por Léo de Almeida Neves

Dia 25 de agosto de 2011 faz meio século que Jânio Quadros aos 44 anos de idade renunciou à presidência da República, sete meses depois de assumir o cargo, após meteórica trajetória política de vereador e Prefeito da Capital paulista, até governador de São Paulo e deputado federal pelo Paraná. Era o Dia do Soldado sexta-feira, e Jânio presidiu o Desfile Militar, avisou os Ministros das três armas que estava renunciando ao mais alto posto da Nação, deixou a curta Carta de Renúncia “Por este instrumento, renuncio à presidência da República” com o Ministro Pedroso Horta, da Justiça, e seguiu para a Base Aérea de Cumbica, em São Paulo. Havia poucos parlamentares em Brasília (último dia útil da semana), e Pedroso Horta compareceu ao Senado e entregou a carta ao presidente da Casa, Auro Moura Andrade, às 15 horas.

Na condição de um dos vice-presidentes do PTB Nacional eu estava em Brasília acompanhando os acontecimentos no gabinete do líder do PTB, Almino Afonso, uma vez que o governador Carlos Lacerda dois dias antes denunciou pela televisão que fora convidado pelo Ministro da Justiça para apoiar um golpe de Estado de Jânio Quadros, que desejava plenos poderes. Auro abriu a Sessão do Congresso Nacional, leu a carta de Jânio Quadros, disse que era “ato unilateral de vontade que dispensa discussão”, e marcou para as 17 horas a posse do presidente da Câmara dos Deputados, Ranieri Mazzilli, na Presidência da República, porquanto o vice-presidente João Goulart estava em Pequim, na China, em missão oficial. No dia seguinte, os ministros militares Odylio Denys da Guerra, Grun Moss da Aeronáutica e Sílvio Heck da Marinha lançaram documento contrário à posse de João Goulart, “que seria preso se regressasse ao Brasil”, alegando ser ele comunista.

Jânio imaginava que sua renúncia seria discutida, que o povo brasileiro reclamaria seu retorno e que ele voltaria consagradoramente ao poder. Nada disso aconteceu, e três dias depois ele viajou de navio para a Inglaterra. O governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, requisitou a Rádio Guaíba dia 17 de agosto instalando-a no porão do Palácio Piratini, e deu início à Campanha da Legalidade para exigir o cumprimento da Constituição e a posse do Vice-Presidente João Goulart. Chamou o povo ao Palácio Piratini e convocou o voluntariado para os civis que quisessem pegar em armas pela democracia. Teve o total respaldo da Brigada Militar, que se localizou em partes estratégicas da cidade. Mais de 150 emissoras de rádio do Brasil e da América Latina entraram na Rede da Legalidade, que convocava o povo à resistência. A afluência popular ao Palácio Piratini foi imediata, reunindo de 10.000 a 100.000 pessoas, que aplaudiam entusiasticamente Leonel Brizola empunhando metralhadora quando pronunciava seus inflamados discursos.

Alguns fatos foram relevantes para o êxito da pregação democrática. O Marechal Teixeira Lott que tinha sido candidato à presidência da República, perdendo para Jânio Quadros, e que em 1955 liderou o movimento pela posse de Juscelino e Jango, eleitos para a Presidência e Vice, soltou manifesto em prol da posse de João Goulart, e foi preso pelos ministros golpistas, mas seu gesto aglutinou simpatia de muitos civis e militares. Os ministros golpistas deram ordem para os aviões da Força Aérea Brasileira na Base Aérea de Canoas sobrevoarem o Palácio Piratini, o que não aconteceu porque os sargentos e o capitão Alfredo Ribeiro Daudt esvaziaram os pneus dos aviões e desativaram os dispositivos de bombardeio, impossibilitando assim que as aeronaves levantassem vôo. Outro dado marcante foi a adesão à Campanha da Legalidade do coronel do Exército Mauro Borges, governador de Goiás, vizinho de Brasília, que arregimentou populares e a polícia estadual na defesa da posse de Jango.

O episódio que selou o sucesso da jornada cívica liderada por Leonel Brizola foi a adesão do Comandante do 3º Exército General Machado Lopes, que no dia 28 de agosto dirigiu-se de jeep com alguns oficiais ao Palácio Piratini. Quando desceram da viatura e caminhavam para o Palácio a multidão entoou o Hino Nacional e o general e seus oficiais perfilaram-se e cantaram junto com o povo. O general Machado Lopes comunicou ao Governador Leonel Brizola que o 3º Exército estava a favor da posse constitucional de João Goulart. Enquanto esperava o Comandante do 3º Exército sem saber de sua decisão, Brizola falou à multidão: “não nos submeteremos a nenhum golpe. Resistiremos até o fim. A morte é melhor do que a vida sem honra, sem dignidade e sem glória. Que decolem os jatos. Que atirem em nós. Estaremos aqui para morrer se necessário”. Na ocasião, Brizola passou o comando da Brigada Militar ao General Machado Lopes, e ambos saudaram o povo e foram fervorosamente ovacionados.

Entrementes, João Goulart retornava em longa viagem ao Brasil para dar tempo que se encontrasse uma solução política para o impasse: de Pequim para Singapura, Zurique, Paris, Nova York, Lima, Buenos Aires e Montevidéu. O Congresso aprovou o parlamentarismo para reduzir os poderes de João Goulart, fórmula aceita pelos militares golpistas. Tancredo Neves dirigiu-se para Montevidéu a fim de apresentar a Jango a emenda constitucional, que salvaguardava o presidente com muitos poderes: indicar o 1º Ministro, nomear o gabinete, comandar as Forças Armadas. Jango aceitou porque conforme declarou “não queria derramar o sangue dos brasileiros, numa luta fratricida”. Jango voou para Porto Alegre dia 01 de setembro e não discursou às massas, que não queriam o parlamentarismo. Leonel Brizola insistiu em repetir 1930 e marchar do Rio Grande do Sul ao centro do Poder, agora em Brasília.

Houve uma última tentativa frustrada dos golpistas de impedir que Jango chegasse a Brasília. Era a “Operação Mosquito” que consistia em derrubar o avião que o estava conduzindo dia 05 de setembro. Finalmente, João Goulart aos 43 anos investiu-se na Presidência da República no dia 7 de setembro de 1961, aniversário da Independência, com Tancredo de Almeida Neves como 1º Ministro. Ele recuperou todos seus poderes presidencialistas por esmagadora maioria no plebiscito de 06 de janeiro de 1963, 9.457.448 contra 2.073.582 votos. Em 31 de março/1º de abril de 1964, foi deposto por um golpe de Estado. Novamente, João Goulart não quis resistir para evitar guerra civil. Agiu como estadista e patriota, que a história reconhecerá. O triunfo da campanha da Legalidade se deve à coragem e ao prestígio do governador Leonel Brizola, no vigor dos seus 39 anos, que já tinha sido deputado estadual aos 25 anos em 1947, reeleito em 1950, Secretário de Obras do Estado em 1951, deputado federal em 1954, Prefeito de Porto Alegre em 1955 e Governador em 1958. Pela primeira vez no Brasil, o poder civil derrotou a força militar.

Fonte: Rede PDT

Há 50 anos, cadeia da legalidade barrava ensaio golpista dos generais

Por Fausto Arruda


No dia 28 de agosto de 1961, Leonel de Moura Brizola requisitou os transmissores da rádio Guaíba de Porto Alegre. Com uma metralhadora na mão direita e o microfone na esquerda, passou a fazer pronunciamentos a todo país, conclamando o povo a defender a legalidade. Usando as ondas curtas e médias da Rádio, as demais emissoras de Porto Alegre, do interior do Rio Grande do Sul e de todo o Brasil uniram-se, compondo a grande resistência nacional à ação dos generais golpistas. Estava formada a Cadeia da Legalidade.

A corajosa, firme e decidida iniciativa de Brizola é um marco na História do Brasil, se inserindo no quadro de resistência de nosso povo e constituindo-se numa prova inequívoca de que o povo sempre está disposto a lutar desde que surja uma direção que aponte o caminho e indique a forma de luta.

No dia 25 de agosto, o então presidente Jânio Quadros despertara os brasileiros com uma carta na qual apresentava sua renúncia da chefia da República, declarando-se vencido pela reação e reconhecendo o seu fracasso em "conduzir esta Nação pelo caminho de sua verdadeira libertação política e econômica, a única que possibilitaria o progresso efetivo e a justiça social a que tem direito seu generoso povo". Jânio denominou genericamente de "forças ocultas" a combinação de maquinações de grupos e indivíduos nacionais e estrangeiros aos quais teve que enfrentar sem sucesso.

O itinerário golpista

Como o vice-presidente João Goulart se encontrava em viagem oficial à China, o Congresso Nacional empossou o presidente da Câmara dos Deputados, Ranieri Mazzili, no cargo de Presidente da República. Mazzili, entretanto, cumpria apenas um papel decorativo, pois o poder de fato já estava sendo exercido pelos três ministros militares, Sílvio Heck, da Marinha, Odílio Dênis, do Exército, e Gabriel Grum Moss, da Aeronáutica. Odílio Denis, exercendo as funções de Ministro da Guerra, logo colocou a público o veto dos militares ao retorno de Jango ao Brasil e, consequentemente, a sua posse na presidência da República.

Jango era um burguês-latifundiário esclarecido, formado na escola getulista e seu herdeiro político com o trabalhismo, tendo, portanto, criado profundas raízes no movimento sindical pelego, sendo eleito, em 1955, vice-presidente da república na chapa de Juscelino, comprovando sua popularidade e o prestígio que granjeara principalmente junto às massas urbanas. Para manter o seu vínculo com os trabalhadores e com a herança getulista, Jango procura se diferenciar de JK, apoiando greves e até mesmo elencando um conjunto de propostas já apresentadas ao Congresso Nacional e pressionando por sua aprovação. Estas proposições giravam em torno das relações de propriedade, controle do capital externo, relações trabalhistas e distribuição de renda, sendo que Jango as complementaria com duas propostas de alteração na Constituição para a realização da reforma agrária e para redistribuição dos recursos da União com estados e municípios.

Sendo a Escola Superior de Guerra do Brasil uma sucursal do Pentágono, a oficialidade brasileira, em tempos de guerra fria, rezava totalmente pela cartilha do anticomunismo e, como se dizia na época, "dormia em pé para não sonhar com o comunismo". O comportamento de Jango há muito que incomodava à embaixada do USA que, por sua vez, enxergava em qualquer movimento por justiça social a possibilidade de perda de controle das classes dominantes criando, assim, a possibilidade de "uma nova Cuba". 

Em 30 de agosto, o manifesto golpista dos generais, em sua sanha anticomunista, afirmava que  "No cargo de Vice-Presidente, sabido é que usou sempre de sua influência em animar e apoiar, mesmo ostensivamente, movimentações grevistas promovidas por conhecidos agitadores. E ainda há pouco, como representante oficial, em viagem à URSS e à China comunista, tornou clara e patente sua incontida admiração ao regime desses países, exaltando o êxito das comunas populares". Tornada pública a sua manifestação golpista, os generais trataram de debelar qualquer forma de resistência. E era no Rio Grande do Sul que estava o epicentro da resistência, sob o comando de Brizola. O comando golpista encarrega então o general Orlando Geisel de liquidá-la.

Geisel transmite ao general Machado Lopes, comandante do III Exército, a seguinte ordem do ministro da guerra: "O III Exército deve compelir imediatamente o Sr. Leonel Brizola a pôr termo à ação subversiva que vem desenvolvendo e que se traduz pelo deslocamento e concentração de tropas e outras medidas que competem exclusivamente às Forças Armadas". Determinava ainda que fossem lançadas todas as tropas do III Exército contra Porto Alegre e que a aviação bombardeasse o Palácio do Governo do Rio Grande do Sul, onde Brizola montara o QG da Resistência.

Resistir até a morte

Tomando conhecimento das ordens do ministro da guerra e ainda sem saber que o III Exército aderira à legalidade, rejeitando o manifesto golpista, Brizola, após uma série de articulações com Jango, ainda no exterior, com governadores e lideranças militares, civis e eclesiásticas, manda distribuir armas ao povo que se dispusesse a enfrentar as forças golpistas e, num emocionante e comovente discurso, feito de improviso, conclama os brasileiros a resistir até a morte.  

"Povo de Porto Alegre, meus amigos do Rio Grande do Sul! Não desejo sacrificar ninguém, mas venham para a frente deste Palácio, numa demonstração de protesto contra essa loucura e esse desatino. Venham, e se eles quiserem cometer essa chacina, retirem-se, mas eu não me retirarei e aqui ficarei até o fim. Poderei ser esmagado. Poderei ser destruído. Poderei ser morto. Eu, a minha esposa e muitos amigos civis e militares do Rio Grande do Sul. Não importa. Ficará o nosso protesto, lavando a honra desta Nação. Aqui resistiremos até o fim. A morte é melhor do que vida sem honra, sem dignidade e sem glória. Aqui ficaremos até o fim. Podem atirar. Que decolem os jatos! Que atirem os armamentos que tiverem comprado à custa da fome e do sacrifício do povo! Joguem essas armas contra este povo. Já fomos dominados pelos trustes e monopólios norte-americanos. Estaremos aqui para morrer, se necessário. Um dia, nossos filhos e irmãos farão a independência do nosso povo! Um abraço, meu povo querido! Se não puder falar mais, será porque não me foi possível! Todos sabem o que estou fazendo! Adeus, meu Rio Grande querido! Pode ser este, realmente, o nosso adeus! Mas aqui estaremos para cumprir o nosso dever".

Coma adesão do III Exército à causa da legalidade e o crescimento da resistência em todo o país, inclusive dentro dos quartéis, principalmente entre cabos e sargentos, não sobrou alternativa ao imperialismo, aos reacionários locais e seus generais que não fosse adiar o projeto golpista. É aí que surge uma solução que não agradou a Brizola, mas veio de encontro ao espírito conciliador de Jango. A adoção do parlamentarismo foi, segundo Brizola, um meio golpe, mas garantiu a posse de Jango no dia 7 de setembro daquele ano de 1961. No ano seguinte Jango convoca um plebiscito nacional com o qual se restabelece o presidencialismo, que exercerá em busca das reformas de base até ser derrubado pela mesma chusma reacionária em 1º de abril de 1964.

Fonte: A Nova Democracia






quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Lula e Dilma X Corrupção: Um podia, não quis; a outra quer, não pode...

Por Carlos Chagas

Lula podia evitar a corrupção, e não quis, e Dilma quer, mas não pode. Os oito anos de leniência praticada pelo ex-presidente rendem agora frutos no governo Dilma. Querer, ela quer, mas não está podendo, ao menos como desejaria. Insurgem-se os partidos da base parlamentar oficial, com o PMDB à frente, chantageando o palácio do Planalto com greves na Câmara e ameaças à governabilidade.

Quem abriu as portas para o partido que outrora derrubou a ditadura e agora derruba a ética? Com todo o respeito, foi o próprio Lula. Aceitou, ou melhor, estabeleceu as regras do jogo, permitindo que os partidos que o apoiavam ocupassem fatias da administração federal como se fossem capitanias hereditárias. Por isso, em vez de dispensar Wagner Rossi do ministério da Agricultura, a presidente da República obriga-se a renovar-lhe confiança e prestígio. Com o ministro do Turismo é só um pouquinho diferente: a lambança agigantou-se quando a pasta era administrada pelo PT e estendeu-se ainda mais ao ser entregue ao PMDB. Pedro Novais tem atrás dele José Sarney, como Wagner Rossi dispõe do vice-presidente Michel Temer.

Fazer o quê, no caso de Dilma Rousseff? Afinal, o ministério foi-lhe em grande parte imposto, pelo Lula ou pelos partidos que respaldam seu mandato. Resta-lhe assistir a imprensa investigando e denunciando, em paralelo aos órgãos de denúncia e investigação, como a Policia Federal, o Ministério Público e a CGU. Entre eles e a presidente existe um contrato não escrito mais ou menos na base do “vocês vão em frente e eu assisto”, mas não parece a solução mais eficaz. Para fazer tremer os corruptos e limpar a máquina pública seria vital que Dilma se encontrasse à frente das tropas, jamais na retaguarda, como se encontra.

Fonte: Tribuna da Imprensa

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

O contra-ataque da direita frente à maior tributação dos ricos nos EUA

Por Sam Pizzigati*, do Too Much

O debate fiscal no Congresso dos Estados Unidos segue girando quase exclusivamente em torno da questão dos cortes no orçamento, sem que se dê atenção às enormes fortunas dos super-ricos que seguem com uma baixa tributação. Mas então, por que os porta-vozes das grandes fortunas dos Estados Unidos começaram a suar? Porque se deram conta do novo clamor – por parte dos sindicatos e da sociedade civil em todo o país – pedindo maiores impostos para os “multimilionários”. E porque deram também uma olhada nas pesquisas: quase 80% dos estadunidenses querem que o imposto dos nossos ricos aumente.

O crescente clamor público para que se aumente os impostos para os ricos nos Estados Unidos tem deixado os conservadores cada vez mais preocupados. E com razão. Os dados não estão do seu lado… e tampouco a História.

Ao longo de todo o país, começa-se a ouvir uma consigna simples, mas poderosa, contra os cortes selvagens do gasto público. “Como acabar com o déficit?” – proclamam os manifestantes. “Aumentar, aumentar, aumentar os impostos dos ricos!”.

Essa ideia, infelizmente, ainda não se materializou nas propostas dos legisladores. Uma exceção: na semana passada, em Washington, o republicano Jan Schakowsky, de Illinois, lançou uma proposta para aumentar os impostos das rendas superiores a US$ 1 milhão, passando dos atuais 35% para um leque que variaria entre 45% e 49%.

Mas o debate fiscal no Congresso segue girando quase exclusivamente em torno da questão dos cortes, sem que se dê atenção alguma às enormes fortunas dos super-ricos que seguem com uma baixa tributação. E nos parlamentos estaduais é quase sempre a mesma história.

Então, por que os porta-vozes das grandes fortunas dos Estados Unidos começaram a suar? Porque se deram conta do novo clamor – por parte dos sindicatos e da sociedade civil em todo o país – pedindo maiores impostos para os “multimilionários”. E porque deram também uma olhada nas pesquisas: quase 80% dos estadunidenses, assinalam os últimos levantamentos, querem que o imposto de nossos ricos aumente.
Os apologistas da classe ultra-acomodada, diante do avanço desta onda que grota “mais impostos para os ricos”, começaram a organizar seu contra-ataque preventivo. Subir os impostos dos ricos, reza seu novo argumento, dificilmente servirá para enxugar o déficit porque, como sustenta o editor da National Review, Kevin Williamson, “não há número suficiente de ricos” para isso.

A National Review, publicação mais reverenciada da direita, lançou duas bombas de profundidade na semana passada, que iam nesta linha. Williamson, editor adjunto da revista, terminou seu artigo voltando de novo aos velhos mitos e tópicos fiscais da direita. Os ricos, diz, ou bem vão se livrar do aumento de impostos mediante artifícios legais ou vão marchar a jurisdições com menor pressão fiscal.

Seu colega na National Review, Robert VerBruggen, tratou de abordar a questão em números a partir das declarações de imposto de renda de 2008, para sustentar sua afirmação de que “se não pudermos subir também os impostos para todas as pessoas que não são ricas, o imposto sobre a renda não será de muita ajuda para aumentar a arrecadação”. Mas os dados, se analisados no detalhe, não apoiam essa conclusão.

Em 2008, o ano mais recente com registros completos do IRS (a agência tributária dos Estados Unidos), os contribuintes que ganhavam mais de US$ 200 mil anuais pagaram ao governo federal, depois de explorar todos os vazios legais que puderam encontrar, somente 21,8% do total de suas receitas. Isso é consideravelmente menos do que pagavam os mais opulentos – também depois de buscar toda evasão possível – há 50 anos. Em 1961, os contribuintes que ganhavam mais de US$ 27 mil – o equivalente a uns US$ 200 mil atuais – pagavam em média impostos de 31,3% sobre seus rendimentos totais.

Mesmo os contribuintes que ganhavam ainda mais, há 50 anos, pagavam também mais do que agora ao Tio Sam. Em 1961, as rendas anuais acima de US$ 400 mil – cerca de US$ 3 milhões hoje – enfrentavam uma carga tributária de 91%. Hoje, em troca, as rendas superiores a US$ 3 milhões pagam cerca de 35% de impostos.

Esse índice de 91%, cabe lembrar, só era aplicado em 1961 às rendas que superassem os US$ 400 mil. As rendas abaixo desse limite pagavam taxas mais baixas. E alguns tipos de receitas acima dos US$ 400 mil, as taxas de capital, por exemplo, também enfrentavam tributações menores. Assim, sobre que parte de sua renda total pagavam impostos de verdade os autênticos ricos de 1961? Os contribuintes com uma renda acima dos US$ 135 mil anuais – o equivalente a US$ 1 milhão hoje – acabavam pagando uma média de 43,1% de sua renda em impostos federais.

Em 2008, aqueles que ganharam mais de US$ 1 milhão deram ao Tio Sam somente 23,1% de sua renda. Em outras palavras, os autênticos ricos pagavam há 50 anos quase o dobro de impostos ao governo federal do que pagam os ricos de agora.

Quanto o governo poderia arrecadar a mais se nossos ricos contemporâneos pagassem como impostos a mesma proporção de sua renda que pagavam os ricos de 1961?

O Comitê Conjunto sobre Impostos, do Congresso, fez uma previsão no ano passado estimando que os contribuintes que ganham mais de US$ 1 milhão declarariam à Receita um total de mais de US$ 1,1 bilhão. E as declarações daqueles que ganham entre US$ 200 mil e US$ 1 milhão somariam outros US$ 1,9 bilhão.

Toda essa gente poderia pagar uns alucinantes US$ 382 bilhões a mais em impostos se tivessem que tributar segundo as taxas efetivas de 1961 que, de fato, afrontavam os ricos de 50 anos atrás depois de aproveitarem toda brecha legal possível.

Isto é quase quatro vezes mais que os US$ 100 bilhões que os conservadores no Congresso tratam de cortar do orçamento deste ano, afetando um amplo conjunto de políticas, como o programa Head Start (para atender a saúde e a educação infantil de crianças de famílias de baixa renda), os auxílios para estudantes universitários e a própria televisão pública.

Os defensores dos cortes no orçamento vão também atrás do IRS. Querem eliminar outros US$ 285 milhões dos fundos que a Agência dispõe para controles fiscais, no momento em que, após os obscuros anos de Bush, o IRS finalmente começou a ser algo mais sério nas auditorias das declarações de impostos das classes abastadas dos Estados Unidos. No ano passado, as auditorias de declarações acima dos US$ 10 milhões quase duplicaram, registrando um aumento de 18,4%.

Por que precisamos de mais controles na parte superior da distribuição de renda? O último informe do IRS sobre a evasão fiscal (IRS Oversight Board Report) estima que perdemos algo na ordem de US$ 290 bilhões ao ano em impostos não pagos. Segundo um estudo de 2008, os contribuintes de maiores rendimentos escondem três vezes mais renda do que um cidadão médio.

Assim, a conclusão é a seguinte: taxar os ricos com os índices que existiam há meio século – esforçando-se mais para garantir que paguem o que devem pagar – faria com que, este ano, se arrecadasse em nível federal aproximadamente meio trilhão de dólares a mais.

Aumentar, aumentar, aumentar os impostos dos ricos, portanto!

* Sam Pizzigati é editor do Too Much, um semanário eletrônico sobre abusos e desigualdades, publicado pelo Instituto de Estudos Políticos, sediado em Washington.
** Publicado originalmente no Too Much, traduzido por Katarina Peixoto e retirado do site da Carta Maior.

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Um contágio de ideias ruins por Joseph Stiglitz

"Os descaminhos dos EUA jogaram um importante papel no desencadeamento dos problemas europeus"

Por Joseph Stiglitz

A Grande Recessão de 2008 se transformou na recessão do Atlântico Norte. São principalmente a Europa e os Estados Unidos que ficaram atolados em crescimento lento e alto desemprego. E são a Europa e os Estados Unidos que estão marchando para o desenlace de uma grande débâcle. Uma bolha estourada acarretou um grande estímulo keynesiano que evitou uma recessão muito mais profunda, mas que também alimentou déficits orçamentários substanciais. A resposta - cortes maciços de gastos - assegura que níveis inaceitavelmente altos de desemprego continuarão por anos.

A União Europeia se comprometeu a ajudar seus membros financeiramente abalados. Ela não tinha escolha. Com o turbilhão financeiro ameaçando se espalhar de pequenos países - como Grécia e Irlanda - para grandes - como Itália e Espanha -, a sobrevivência do euro estava cada vez mais ameaçada. Os líderes da Europa reconheceram que as dívidas dos países encrencados se tornariam intratáveis a menos que suas economias pudessem crescer.

Mas, ao mesmo tempo em que os líderes europeus prometiam que essa ajuda estava a caminho, eles insistiam na crença de que os países que não estavam em crise precisavam cortar gastos. A austeridade resultante obstruirá o crescimento da Europa, e com isso o das economias abaladas.

As discussões antes da crise ilustraram o quão pouco foi feito para corrigir fundamentais econômicos. A veemente oposição do Banco Central Europeu (BCE) ao que é essencial a todas as economias capitalistas é a evidência da fragilidade do sistema bancário ocidental.

O BCE argumentou que os contribuintes deviam pagar a conta toda da dívida soberana ruim da Grécia, temendo que algum envolvimento do setor privado (PSI, na sigla em inglês) desencadearia um "evento de crédito", que obrigaria grandes pagamentos de credit default swaps (CDSs), possivelmente alimentando um novo turbilhão financeiro. Mas, se esse é um medo real para o BCE, ele devia pedir que os bancos tenham mais capital. Da mesma forma, o BCE devia ter barrado os bancos do arriscado mercado de CDS, no qual eles ficam reféns das decisões de agências de classificação de crédito.

E as coisas estão pouco melhores no outro lado do Atlântico. Aqui, a extrema direita ameaçou fechar o governo americano, confirmando o que a teoria dos jogos sugere: quando os que estão irracionalmente comprometidos com a destruição não se confrontarem em seu caminho com indivíduos racionais, os primeiros prevalecem. Por conseguinte, o presidente Barack Obama aquiesceu numa estratégia desequilibrada de redução da dívida, sem nenhum aumento de impostos.

Os otimistas dizem que no curto prazo o impacto do acordo para aumentar o teto da dívida americana e impedir o default será limitado. Mas a redução dos impostos retidos na fonte (que colocará mais de US$ 100 bilhões nos bolsos dos americanos comuns) não foi renovada, e com certeza as empresas, antecipando os efeitos contrativos futuros, ficarão ainda mais relutantes em emprestar.

O fim do estímulo em si é contrativo. E com os preços dos imóveis ainda em queda, o crescimento do Produto Interno Bruto vacilando, e o desemprego permanecendo teimosamente alto, é preciso mais estímulo, e não austeridade. O motor isolado mais importante do aumento do déficit é a arrecadação fiscal fraca em virtude do fraco desempenho da economia; o melhor remédio isolado seria colocar a América para trabalhar de novo. O recente acordo da dívida vai na direção errada.

Os descaminhos financeiros dos Estados Unidos jogaram um importante papel no desencadeamento dos problemas europeus, e o tumulto financeiro na Europa não seria bom para os Estados Unidos. Mas o problema real deriva de outra forma de contágio: ideias ruins cruzam facilmente as fronteiras, e noções econômicas equivocadas em ambos os lados do Atlântico vêm se reforçando mutuamente.

* Joseph E. Stiglitz, prêmio Nobel de Economia, em artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo, em 06-08-2011.

sábado, 6 de agosto de 2011

Crise nos EUA: As preocupações erradas por Paul Krugman

Por Paul Krugman 

O mercado não se preocupa com a solvência nem com a inflação dos EUA, e sim com a falta de crescimento

Caso você tivesse alguma dúvida, o mergulho de mais de 500 pontos na Bolsa e a queda dos juros para níveis baixos quase recordes confirmaram: a economia não está se recuperando, e Washington vem se preocupando com as coisas erradas.

Não é apenas a ameaça de uma recessão em W (recessão, retomada e nova recessão), hoje muito real. É impossível negar o óbvio: não estamos agora no caminho da recuperação nem nunca estivemos.

Sim, oficialmente a recessão terminou dois anos atrás, e a economia saiu de um mergulho assustador no pânico. Mas em nenhum momento o crescimento pareceu ser remotamente suficiente.

Considere uma medida crucial: a razão entre emprego e população. Em junho de 2007, cerca de 63% dos adultos estavam empregados. Em junho de 2009, quando a recessão oficialmente chegou ao fim, eram 59,4%. Em junho de 2011, dois anos depois de iniciada a alegada recuperação, o número era 58,2%.

Pela primeira vez desde a Grande Depressão, muitos trabalhadores americanos enfrentam a perspectiva de desemprego de muito longo prazo -talvez permanente.

E por que deveríamos nos surpreender com essa catástrofe? De onde se imaginava que o crescimento viria? Consumidores, ainda endividados, não estão preparados para gastar. Empresas não veem razões para expansão. E, graças à obsessão com o deficit, o governo, que deveria apoiar a economia na hora da necessidade, vem se retraindo.

Parece que tudo está prestes a piorar ainda mais. Qual é a reação?

Para inverter esse desastre, muitas pessoas vão precisar admitir, pelo menos para si mesmas, que estavam equivocadas e precisam mudar suas prioridades imediatamente.

É claro que alguns atores não vão mudar. Os republicanos não vão parar de gritar sobre o deficit, porque não estavam sendo sinceros para começar: sua posição de linha dura foi um bastão com o qual bater em adversários políticos, e só.

Mas o desastre de políticas públicas dos últimos dois anos não foi só fruto do obstrucionismo dos republicanos, que não teria sido tão eficaz se a elite política não tivesse concordado em priorizar o deficit. Nem devemos deixar Ben Bernanke e colegas saírem ilesos: o Fed está longe de ter feito o que poderia.

Está na hora de tudo isso parar. Juros e Bolsas em queda livre revelam que os mercados não estão preocupados com a solvência dos EUA nem com a inflação. Estão preocupados com a falta de crescimento.

No início da semana, dizia-se que Obama voltaria sua atenção ao emprego, agora que o teto da dívida foi elevado. Mas, pelo que posso vislumbrar, o que isso significa é propor medidas de pouca monta, mais simbólicas do que substantivas. Esse tipo de proposta apenas faria o presidente parecer ridículo.

Já passou da hora de encarar com seriedade a crise da economia. O Fed precisa parar de inventar desculpas, e o presidente precisa anunciar planos reais de criação de vagas. E, se os republicanos bloquearem as propostas, Obama precisa lançar uma campanha contra eles.

Pode ou não funcionar. Mas já sabemos o que não funciona: a política econômica dos últimos dois anos e os milhões de americanos que deveriam ter empregos e não têm.

Tradução de Clara Allain

Fonte: Folha de S. Paulo

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

A Campanha da Legalidade por Leonel Brizola


Texto de Leonel Brizola, extraído do livro “Legalidade, 25 anos - A Resistência que levou Jango ao Poder”, Ed. Rafael Guimarães, A. Porto, Ricardo Stricher e Sérgio Quintana. Porto Alegre, 1986.
“Encontrava-me numa solenidade militar que se realizava no Parque Farroupilha. Chovia muito. Num dado momento, observei que um oficial se aproximou do General Machado Lopes, comandante do III Exército, e lhe fez uma comunicação no ouvido. Notei que a fisionomia do General carregou-se.

Dali a instantes o General me informou que, devido às chuvas, iria abreviar a solenidade. Poucos minutos depois, o jornalista Hamilton Chaves, meu assessor de imprensa, transmitiu-me que a “France Press” difundia a notícia da renúncia do Presidente Jânio Quadros. Achei que era mais um boato entre os muitos que nos últimos dias circulavam sobre o governo do ex-Presidente.

Nada comentei com os militares. Retirei-me dali e fui-me instalar no gabinete do presidente da Caixa Econômica Estadual, na esquina da rua Dr. Flores com a Rua da Praia. Foi uma decisão inconsciente e instintiva. Talvez uma influência longínqua do velho guerreiro gaúcho Leonel Rocha, que sempre se localizava a uma distância prudente do acampamento geral.

Poucos minutos depois, o nosso inconfundível Carlos Contursi me oferecia, por telefone, um conjunto de outras informações que circulavam pelos jornais e agências de notícias, confirmando a renúncia.

As comunicações telefônicas com Brasília e o Rio de Janeiro eram, na época, muito precárias e demoradas. Tratei de colocar a Brigada Militar e a Polícia Civil de sobreaviso. Logo a seguir, em face de novas notícias, sempre no sentido da confirmação da renúncia, coloquei a Brigada Militar de prontidão rigorosa e dei ordem para que passasse a ocupar e controlar alguns pontos importantes. Preocupava-me àquela altura com a ordem pública e com o clima de incertezas que envolvia o País e, muito especialmente, com potenciais ameaças sobre o Governo do Rio Grande Sul.

A eventualidade de um golpe de Estado já era comentada naqueles dias, inclusive com muitas pessoas e notícias na imprensa atribuindo essa intenção ao Presidente e alguns círculos políticos e militares.

Foi após essas providências que tratei de comunicar, por telefone, com o General Machado Lopes. Ele me confirmou que o Presidente realmente havia renunciado. Fez até um comentário, dizendo que se ele desembarcasse no aeroporto seria, agora, um cidadão comum e não mais o Presidente (o Presidente Jânio Quadros, justamente naquele dia, deveria vir a Porto Alegre, para instalar simbolicamente o seu governo na capital gaúcha, como era uma de suas práticas administrativas).

Expliquei ao General que tomara as providências que me competiam, visando a resguardar a ordem pública. E mais ainda: afirmei-lhe que, se ocorresse a necessidade, voltaria a me comunicar com ele, para solicitar a colaboração de forças federais, nos termos da Constituição, caso os serviços do Estado viessem a se mostrar insuficientes. Combinamos de nos manter em contato.

Conversas ao telefone

A convicção de todos nós - àquela altura já realizáramos uma intensa troca de impressões entre os quadros do Governo e do partido - era a de que poderia ter ocorrido um golpe contra o Presidente Jânio Quadros. Não se conseguia comunicação com Brasília, a não ser através de um sistema de rádio, também muito precário. A renúncia era um fato. O Presidente já havia se deslocado para São Paulo. Encontrava-se na Base Aérea de Cumbica. As notícias vindas de Brasília já nos davam as primeiras informações sobre um possível veto do Marechal Denys, Ministro da Guerra, ao Vice-Presidente João Goualrt. Nossa primeira atitude pública foi no sentido da preservação da ordem constitucional.

E como partíamos daquela suposição de um golpe contra o Vice-Presidente João Goulart. Nossa primeira atitude pública foi no sentido da preservação da ordem constitucional. E como partíamos daquela suposição de um golpe contra o Presidente Jânio Quadros, passamos a nos definir em defesa de seu mandato constitucional. A muito custo consegui me comunicar com a Base de Cumbica, em São Paulo, onde se encontrava o avião presidencial. Jânio Quadros não veio ao telefone. Falou comigo, em seu nome, o jornalista Carlos Castello Branco, Secretário de Imprensa da Presidência da República. Primeiro perguntei se o Presidente havia renunciado mesmo, ou se estávamos diante de um golpe contra ele. Castello respondeu-me que o Presidente havia renunciado.

Disse-lhe, então, que mesmo tendo ocorrido a renúncia, desconfiávamos de que o Presdiente avia sido constrangido a esse gesto e que, nesse caso, tratar-se-ia de um golpe. E mais: que nós, do Rio Grande do Sul convidávamos Jânio Quadros para vir ao nosso Estado e, daqui, dirigir-se à Nação em defesa do seu mandato legítimo. O jornalista Castello Branco, depois de consultar o Presidente, transmitiu-me os agradecimentos, informando finalmente que não havia mais nada a fazer.

Como é natural e lógico, os rumos para a defesa da legalidade constitucional apontavam numa só direção, consumada a renúncia do Presidente: a posse do Vice-Presidente da República, seu substituto legal e constitucional, devia ser o procedimento legítimo. Ao nos deparar, naqueles instantes, com a circunstância de que o nosso conterrâneo e chefe de nosso partido, João Goulart, era o Vice-Presidente eleito, sentimos uma espécie de vibração cívica impossível de descrever.

Naqueles momentos tomei a iniciativa de telefonar ao General Machado Lopes, Comandante do III Exército. Relatei-lhe o meu diálogo com o jornalista Castello Branco. E na minha simplicidade referi ao General, também, as notícias, que nos pareciam inconcebíveis, de que o Marechal Denys havia divulgado uma nota opondo “restrições”à investidura do Vice-Presidente João Goulart. Adiantei àquele chefe militar que era para nós inacreditável aquela atitude do Ministro da Guerra. Solicitei, então, ao General Machado Lopes informações a respeito e indaguei qual era o seu pensamento sobre aquele quadro que já se configurava numa verdadeira crise.

Respondeu-me o General: “Bom, bom, Governador, eu não posso me definir assim. Sou soldado e fico com o Exército”. O diálogo, para mim, estava encerrado. Apenas cumpri, ainda, o dever de lealdade de dizer ao General Machado Lopes que, se aquelas notícias se confirmassem, de minha parte e do Governo do Rio Grande do Sul, ficaríamos com a Constituição. Em termos respeitosos, mas com escassas palavras, nós nos despedimos, encerrando aquela breve conferência telefônica. Desde então senti-me impedido de fazer novos contatos pelo telefone com o Comandante do III Exército. Daí por diante, passamos a atuar cada um para seu lado. Suas palavras foram suficientemente claras e peremptórias.

O início da resistência

Ao fim da tarde do dia 25 de agosto de 1961, encontrava-me no Palácio Piratini, que fervilhava de gente. Surgiram as primeiras manifestações nas ruas. Algumas protestando contra o golpe, outras em favor de Jânio Quadros e a maioria delas em defesa da legalidade da posse do Vice-Presidente. Foram aparecendo os primeiros oradores, inclusive na frente do Palácio.

Lembro-me que dirigimos, das janelas térreas do Piratini, nossas primeiras declarações aos manifestantes e aos jornalistas que, sequiosos por informações, perseguiam os acontecimentos. Passamos a noite em vigília. As notícias de Brasília e do Rio eram escassas, mas vinham chegando. Fizemos alguns contatos.

Os inesquecíveis deputados Ruy Ramos e Vítor Issler passaram a nos enviar informações, sistematicamente, via rádio, do escritório do Governo do Estado, na Capital Federal. Pela madrugada, já havíamos definido as nossas posições através de uma ampla troca de idéias com todos os nossos quadros do Governo e dirigentes do partido: defesa intransigente da ordem constitucional e investidura, na Presidência da República, de João Goulart, que deveria retornar imediatamente de sua viagem à China; resistência a todo custo contra qualquer tentativa de golpe de Estado; influir, por todos os modos ao nosso alcance, junto ao III Exército e aos seus altos comandos para que viessem a assumir uma posição em defesa da legalidade constitucional; fazer o máximo de contatos possíveis, com o mesmo propósito a nível nacional, junto aos demais governadores, chefes militares e todas as instituições e líderes políticos e populares.

Com base nestas posições, passamos a fazer declarações, pela imprensa e pelo rádio, e a lançar nossos primeiros manifestos ao povo rio-grandense e, até aonde podíamos chegar, à opinião pública do País.

O dia seguinte amanheceu com o País, virtualmente, sob o estado de sítio. O Deputado Mazzilli, Presidente da Câmara dos Deputados, havia “assumido” a Presidência da República. Teria sido uma iniciativa tomada no âmbito do Congresso, com intenções até pouco esclarecidas. Pois, se de um lado era o mecanismo constitucional, isto é, ausente do País o Vice-Presidente, era o presidente da Câmara dos Deputados quem devia assumir interinamente a Presidência da República, como o segundo na ordem de substituição; por outro lado, corria também - como se verificou depois - um certo oportunismo de políticos conservadores que, naquele instante, jogavam maliciosamente e, sobretudo, nada faziam em oposição ao veto que se levantava contra a investidura do Vice-Presidente constitucional.

Em verdade, o que se verificou mesmo foi o estabelecimento de um governo de fato, uma espécie de junta dos três ministros militares, sob a chefia do Marechal Odílio Denys, que ditava ordens e assumia todas as decisões. O Governador Carlos Lacerda, do Rio de Janeiro, desencadeou a repressão, com prisões e censura à imprensa.

Durante todo o dia procuramos fazer contatos telefônicos fora do Estado. Conseguimos falar com o Governador Carvalho Pinto, de São Paulo. Encontrei-o frio e desinteressado, nenhuma resistência ao golpe. Falei com o Comandante do II Exército, em São Paulo, o qual declarou-me que tudo faria para que a crise não se agravasse. Consegui localizar o General Osvino Ferreira Alves, que se encontrava sem comando de tropa no Rio, e sem condições de se expressar ao telefone.

Com muita dificuldade consegui um contato telefônico com o General Costa e Silva, que comandava o IV Exército, no Recife. Nosso diálogo foi duro e violento. Respondi com a mesma moeda às suas grosserias e agressividade. Localizei no Rio o General Kruel, também sem comando, e convidei-o para vir, de qualquer forma, para o Rio Grande do Sul. Dois ou três dias depois estava chegando e permaneceu incógnito no Palácio Piratini. Era nossa intenção atribuir-lhe o comando militar da resistência, caso o General Machado Lopes não se decidisse a apoiar a Legalidade.

O Manifesto de Lott

Na boca da noite, o querido deputado Ruy Ramos colocou-nos em contato com o Marechal Henrique Teixeira Lott, transmitindo-nos o manifesto que aquele prestigioso chefe militar havia lançado em defesa da ordem e da Constituição. O texto do documento foi recebido e taquigrafado pelo companheiro Hélio Fontoura. Passamos a difundir o manifesto do Marechal Lott pela rádio. As emissoras que fizeram a transmissão eram silenciadas pelas autoridades do III Exército, mediante o confisco dos cristais de seus transmissores.

Permaneceu no ar somente a Rádio Guaíba, porque os seus proprietários declararam que não podiam transmitir o manifesto. Sábado e domingo foram dias de muitas tensões e expectativas. Havia uma multidão em frente ao Palácio do Governo e na Praça da Matriz. Concentramos em Porto Alegre, no curso desses dias, todos os contingentes possíveis da Brigada Militar que se encontravam destacados nos municípios vizinhos. Fomos assumindo, desde logo, todas as posições que o Estado Maior da Brigada entendia conveniente. O Palácio e as áreas adjacentes foram se transformando numa verdadeira cidadela. As torres da Catedral foram ocupadas com ninhos de metralhadoras, pilhas de sacos de areia onde se fizessem necessários. Eram as tarefas do Regimento Bento Gonçalves, reforçados com outros contingentes daq Brigada Militar, sob o comando do Coronel Átila Escobar.

A conselho do Marechal Lott, enviamos, num aviãozinho monomotor, um professor e coronel do Exército para um contato com o General Oromar Osório, comandante de uma divisão sediada em Santiago de Boqueirão.

Mandou-nos dizer que já se encontrava sob rodas e que precisava urgente de 11 trens e 200 caminhões, recomendando que procurássemos entendimento com o General Machado Lopes. Também contatamos, a conselho do Marechal Lott, o General Pery Bevilácqua, em Santa Maria, que se deslocava a Porto Alegre para uma reunião convocada pelo Comandante do III Exército. Os trens e os caminhões foram fornecidos ao General Oromar Osório que, como todos sabem, atingiu nos dias seguintes o Estado do Paraná. Atuou com a mobilidade do General Patton na II Guerra Mundial.

A mobilização popular

A mobilização do povo gaúcho atingia um nível surpreendente. Em Porto Alegre e em todas as cidades, grandes e pequenas, já se formavam comitês de resistência e voluntariado. O espírito cívico do povo gaúcho impregnava todos os espaços e ia atingindo e envolvendo a tudo e a todos. Em frente ao palácio, era permanente uma multidão de dezenas de milhares de homens e mulheres de todas as idades e categorias sociais.

Constituiu-se, nessas horas, uma unidade impressionante do povo rio-grandense, seus quadros e lideranças de todas as atividades. Dos políticos daquela época e que ainda hoje estão em evidência, recordo-me que o senhor Paulo Brossard foi o único que agiu contra o Movimento da Legalidade, discretamente na Cúria Metropolitana.

Havia uma preocupação profunda na alma de todos sobre a posição do III Exército. Nossa resistência poderia heróica, mas não tínhamos condições de enfrentar as forças federais, na hipótese delas decidirem investir contra nós. A nossa deliberação, porém, já era irreversível. Estávamos ao lado da ordem, da lei da Constituição e da moral, dos direitos mais sagrados de nosso povo e da dignidade da própria Nação. O Rio Grande encontrava-se, já então, completamente bloqueado, sem nenhuma comunicação com o País.

O Vice-Presidente João Goulart em viagem de retorno, mas sem nenhum contato conosco. Chegavam muitos correspondentes estrangeiros, via Uruguai. Inúmeras pessoas conseguiam atingir o Rio Grande do Sul procedentes de outros estados para apresentar-se como voluntários.

Nessa noite de domingo para segunda-feira, tivemos os primeiros indícios de que se preparavam operações militares contra o Governo do Rio Grande do Sul. Mas foi nas primeiras horas do dia 28 de agosto, segunda-feira, que um radioamador nos transmitiu o que havia escutado de uma comunicação do General Orlando Geisel com III Exército, por ordem do Marechal Denys, determinando que fosse o Governo do Rio Grande do Sul compelido ao silêncio, com o emprego da força e do bombardeio pela Aviação, se necessário. A princípio, pensei que se tratasse de alguma brincadeira de mau gosto. Mas, logo em seguida, outra comunicação.

Vários rádio-amadores e o companheiro João Carlos Guaragna, dos Correios e Telégrafos, colocavam-nos diante de uma situação que até há poucos momentos parecia inconcebível, Novas mensagens foram captadas retirando e exigindo o imediato cumprimento daquelas ordens.

Pedi, ato contínuo, ao Doutor João Caruso, meu Secretário de Justiça, que redigisse um ato, portaria, decreto, fosse o que fosse, requisitando a Rádio Guaíba - única emissora que se encontrava no ar - sob o fundamento que necessitávamos, de emergência, daquele meio de comunicação para manter a ordem pública.

Determinei à Brigada Militar que ocupasse imediatamente, com o máximo de forças, as torres da rádio e que as lanchas do Corpo de Bombeiros fossem armadas e ajudassem a guarnecer a ilha onde as torres se localizavam. O engenheiro Homero Simon, antigo técnico daquela rádio, foi incumbido de trazer os seus microfones paras os porões do Palácio Piratini. Ocupamos também os estúdios da emissora.

Em pouco mais de uma hora já estávamos irradiando do Palácio Piratini e pedi que, de imediato, anunciassem que o Governador tinha uma importante e urgente comunicação a fazer ao povo gaúcho e à opinião pública do País. As ondas curtas foram direcionadas para o território. Nacional.

Neste momento, o Palácio recebeu um telefonema do Quartel-General do III Exército, pelo qual o General Machado Lopes solicitava ser recebido pelo Governador, com a máxima urgência. Deviam ser 10h30min da manhã. Marquei audiência para às 12h. Minha primeira impressão era a de que o General vinha me apresentar uma espécie de ultimato. Lembrei-me do golpe de 45, quando se procedeu dessa forma com o General Ernesto Dornelles, embora em circunstâncias diferentes. Marquei a audiência para as 12h, porque desejava informar à população o que se passava e, principalmente tendo em conta a nossa decisão de resistir, definitiva e irrevogável.

A Rede da Legalidade

Quando me dirigi para os porões do Palácio, acompanhado do Subchefe da Casa Militar, o então Major Emílio Neme, que permanecia ao meu lado em todos os momentos, onde já se encontravam os microfones e instalações de rádio, alguns jornalistas já me davam conta, embora em observações confusas, de que possivelmente o comando do III Exército se pronunciaria em favor da legalidade. Quando me preparava para falar, o engenheiro Homero Simon mostrou-me uma pequena luz vermelha, com a observação de que enquanto quela luz estivesse acesa, estaríamos no ar.

Falei de improviso e sob grande tensão, medindo, tanto quanto possível, as minhas palavras. Era muito delicada a situação. Precisávamos mobilizar ao máximo. Somar tudo o que pudéssemos, porém, sem criar nenhum tipo de problema ou constrangimento que viesse dificultar a integração do III Exército na defesa da legalidade. Pensamos em definir a nossa posição de resistência.

Denunciamos e levamos ao conhecimento da população as ordens que vinham de Brasília: “Deve o Comando do III Exército impedir a ação que vem desenvolvendo o governador Leonel Brizola. O III Exército deve agir com a máxima urgência e presteza, fazendo convergir contra Porto Alegre toda a tropa do Rio Grande do Sul que julgar conveniente. A Aeronáutica deve realizar o bombardeio, se for necessário. Está a caminho do Rio Grande uma força-tarefa da Marinha de Guerra, e mande dizer qual o reforço de que precisa. Insisto que a gravidade da situação nacional decorre, ainda, da situação do Rio Grande do Sul”.

Demonstramos, perante a população os destinos em que estavam incorrendo as autoridades de Brasília. Fizemos um último apelo ao General Machado Lopes e aos Generais comandantes do III Exército. Recomendamos à população que se afastasse daquela área, especialmente que retirasse dali todas as crianças/ Juntamente com Neusa, minha mulher, lá estavam milhares de mulheres dentro e fora do Palácio, que se recusaram a se afastar. As crianças foram retiradas, mas o povo lá permaneceu. E a cada momento crescia a multidão.

Devia ser mais de cem mil pessoas, naqueles momentos. A nossa sorte estava lançada. Afirmamos que resistiríamos até o fim e, se tivéssemos de sucumbir, ali haveria de permanecer o nosso protesto, lavando a honra e a dignidade do povo brasileiro.

A partir desse momento, começou a funcionar a Rede da Legalidade, com a integração de uma quantidade crescente de pequenas emissoras às transmissões da Rádio Guaíba. Centenas de jornalistas, nacionais e estrangeiros, sob a coordenação de Hamilton Chaves, desenvolveram um admirável trabalho que sensibilizou o povo brasileiro, civis e militares, por dos os quadrantes da Nação.

Nunca tive oportunidade de ouvir uma gravação deste pronunciamento. Não sei mesmo se existe, ou se alguma pessoa possui esta gravação. Gostaria de ouvi-la. Somente agora, depois de 25 anos, é que consegui ler uma transcrição da imprensa da época.

A definição do III Exército

Na hora aprazada recebi, em meu gabinete no andar superior do Palácio Piratini, o General Machado Lopes, que se fazia acompanhar de algumas altas patentes do Exército. O General, ao meu lado, na extremidade de uma mesa de reuniões, de imediato tomou a palavra, comunicando-me que o Comando e todos os Generais do III Exército haviam decidido não aceitar nenhuma solução para a crise, fora da Constituição. Levantei-me e apertei a mão do General, dizendo-lhe que daquele momento em diante passava a Brigada Militar ao seu comando. Achavam-se presentes, além do Doutor João Caruso, o professor Francisco Brochado da Rocha e o Coronel Moojen, Comandante da Brigada Militar. Terminada a reunião, fiz questão de acompanhar o General Machado Lopes até à porta do Quartel-General do III Exército.

A partir do momento em que o III Exército assumiu aquela definição, começou a pender a balança em favor da Constituição e da Legalidade. Criou-se uma situação de resistência em todo o País. As mensagens da Rede de Legalidade atingiram as consciências em toda a parte4. Todos procuravam sintonizar as ondas curtas da Rádio Guaíba. Estabeleceram-se novas correlações de força. Criou-se um ambiente de apoio e solidariedade generalizada de parte da população de todo o País. Foi nesse momento que começou a prevalecer a nova investida de ufanismo, envolvendo o próprio Vice-Presidente João Goulart, já então na Europa, a caminho do Brasil, que resultou na adoção de um mal-ajeitado regime parlamentarista, de tão funestas conseqüências. Sempre achei que se deveria evitar o confronto que se apresentava iminente.

Era necessário encontrar soluções para a crise, mas de nenhuma forma violando a Constituição, como fez o próprio Congresso, numa madrugada, ao instituir aquele regime, retirando poderes legítimos do Presidente. Esse episódio contém, sem nenhuma dúvida, lições e ensinamentos de grande valor e da maior profundidade. Não sou eu, porém, o mais indicado para trazê-los à tona. Tenho feito as minhas reflexões. É possível que mais adiante ainda venha a escrever um texto expondo as minhas observações”.