terça-feira, 28 de junho de 2011

Crise terminal do capitalismo?

Por Leonardo Boff

Tenho sustentado que a crise atual do capitalismo é mais que conjuntural e estrutural. É terminal. Chegou ao fim o gênio do capitalismo de sempre adaptar-se a qualquer circunstância. Estou consciente de que são poucos que representam esta tese. No entanto, duas razões me levam a esta interpretação.

A primeira é a seguinte: a crise é terminal porque todos nós, mas particularmente, o capitalismo, encostamos nos limites da Terra. Ocupamos, depredando, todo o planeta, desfazendo seu sutil equilíbrio e exaurindo excessivamente seus bens e serviços a ponto de ele não conseguir, sozinho, repor o que lhes foi sequestrado. Já nos meados do século XIX, Karl Marx escreveu profeticamente que a tendência do capital ia na direção de destruir as duas fontes de sua riqueza e reprodução: a natureza e o trabalho. É o que está ocorrendo.

A natureza, efetivamente, se encontra sob grave estresse, como nunca esteve antes, pelo menos no último século, abstraindo das 15 grandes dizimações que conheceu em sua história de mais de quatro bilhões de anos. Os eventos extremos verificáveis em todas as regiões e as mudanças climáticas tendendo a um crescente aquecimento global falam em favor da tese de Marx. Como o capitalismo vai se reproduzir sem a natureza? Deu com a cara num limite intransponível.

O trabalho está sendo por ele precarizado ou prescindido. Há grande desenvolvimento sem trabalho. O aparelho produtivo informatizado e robotizado produz mais e melhor, com quase nenhum trabalho. A consequência direta é o desemprego estrutural.

Milhões nunca mais vão ingressar no mundo do trabalho, sequer no exército de reserva. O trabalho, da dependência do capital, passou à prescindência. Na Espanha o desemprego atinge 20% no geral e 40% e entre os jovens. Em Portugal, 12% no pais, e 30% entre os jovens. Isso significa grave crise social, assolando neste momento a Grécia. Sacrifica-se toda uma sociedade em nome de uma economia, feita não para atender as demandas humanas mas para pagar a dívida com bancos e com o sistema financeiro. Marx tem razão: o trabalho explorado já não é mais fonte de riqueza. É a máquina.

A segunda razão está ligada à crise humanitária que o capitalismo está gerando. Antes se restringia aos países periféricos. Hoje é global e atingiu os países centrais. Não se pode resolver a questão econômica desmontando a sociedade. As vítimas, entrelaças por novas avenidas de comunicação, resistem, se rebelam e ameaçam a ordem vigente. Mais e mais pessoas, especialmente jovens, não estão aceitando a lógica perversa da economia política capitalista: a ditadura das finanças que via mercado submete os Estados aos seus interesses e o rentitentismo dos capitais especulativos que circulam de bolsas em bolsas, auferindo ganhos sem produzir absolutamente nada a não ser mais dinheiro para seus rentistas.

Mas foi o próprio sistema do capital que criou o veneno que o pode matar: ao exigir dos trabalhadores uma formação técnica cada vez mais aprimorada para estar à altura do crescimento acelerado e de maior competitividade, involuntariamente criou pessoas que pensam. Estas, lentamente, vão descobrindo a perversidade do sistema que esfola as pessoas em nome da acumulação meramente material, que se mostra sem coração ao exigir mais e mais eficiência a ponto de levar os trabalhadores ao estresse profundo, ao desespero e, não raro, ao suicídio, como ocorre em vários países e também no Brasil.

As ruas de vários países europeus e árabes, os "indignados" que enchem as praças de Espanha e da Grécia são manifestação de revolta contra o sistema político vigente a reboque do mercado e da lógica do capital. Os jovens espanhois gritam: "não é crise, é ladroagem". Os ladrões estão refestelados em Wall Street, no FMI e no Banco Central Europeu, quer dizer, são os sumo-sacerdotes do capital globalizado e explorador.

Ao agravar-se a crise, crescerão as multidões, pelo mundo afora, que não aguentam mais as consequências da super-exploracão de suas vidas e da vida da Terra e se rebelam contra este sistema econômico que faz o que bem entende e que agora agoniza, não por envelhecimento, mas por força do veneno e das contradições que criou, castigando a Mãe Terra e penalizando a vida de seus filhos e filhas.

Leonardo Boff é teólogo e escritor, autor do livro "Proteger a Terra – cuidar da vida: como evitar o fim do mundo" (Record 2010).

sexta-feira, 24 de junho de 2011

O "Verão" de Vivaldi pelo magnífico violino de Joshua Bell

Começar do começo de novo

Por Slavoj Žižek

Traduzido do inglês por Fernando Marcelino e Chrysantho Sholl.

Existe uma anedota (apócrifa, é verdade) sobre a troca de telegramas entre quartéis generais alemães e austríacos durante a Primeira Guerra Mundial: os alemães mandam uma mensagem: “aqui, de nosso lado do front, a situação é séria, mas não catastrófica”, a que respondem os austríacos: “aqui, a situação é catastrófica, mas não séria”. Não seria esta a maneira como nós, cada vez mais, ao menos no mundo desenvolvido, nos relacionamos com nossa situação global? Todos nós sabemos sobre a catástrofe iminente – ecológica, social –, mas de alguma forma não podemos levá-la a sério. Em psicanálise chamamos esta atitude de virada fetichista: Eu sei muito bem, mas… (eu não acredito realmente), e tal virada é a clara indicação da força material da ideologia, que nos faz recusar aquilo que vemos e que sabemos. Como chegamos até aqui?

Quando, em 1922, depois de vencer a Guerra Civil contra todos os adversários, os bolcheviques tiveram de retroceder para a NEP (a “Nova Política Econômica” que permitiu uma interferência muito maior da economia de mercado e da propriedade privada), Lenin escreveu um pequeno texto “On Ascending a High mountain” [Escalando uma montanha]. Ele usa o símile de um escalador que tem de recuar ao pé da montanha para empreender uma nova tentativa de atingir o pico, para descrever o que um retrocesso significa num processo revolucionário, i.e., como alguém pode retroceder sem oportunisticamente trair sua fidelidade à Causa. Depois de enumerar os sucessos e fracassos do estado Soviético, Lenin conclui: “Comunistas que não têm ilusões, que não se rendem ao desânimo, e que preservam a força e a flexibilidade ‘para começar desde o começo’ de novo e de novo, frente a uma tarefa extremamente difícil, não estão fadados ao erro (e muito provavelmente não perecerão).” Este é Lenin em seu melhor estilo Beckettiano, ecoando o sentido de Worstward Ho: “Tente novamente. Fracasse novamente. Fracasse melhor” [Try again. Fail again. Fail better]. Sua conclusão – começar do começo de novo e de novo – deixa claro que ele não está falando de desacelerar o progresso e fortalecer o que já se conquistou, mas precisamente descer novamente ao ponto inicial: devemos “começar do começo” e não de onde conseguimos chegar no primeiro esforço da escalada. Em termos kierkegaardianos, um processo revolucionário não é um progresso gradual, mas um movimento repetitivo, o movimento de repetir o começo de novo e de novo… e aqui é exatamente onde estamos hoje, depois do “desastre obscuro” de 1989, o fim definitivo da época que começou com a Revolução de Outubro. Devemos, portanto, rejeitar a continuidade com aquilo que a Esquerda significou nos últimos dois séculos. Embora momentos sublimes como o clímax jacobino da Revolução Francesa e a Revolução de Outubro permanecerão para sempre um momento chave de nossas memórias, essas histórias chegaram ao fim, tudo deve ser re-pensado, devemos começar do ponto-zero.

Alain Badiou descreveu três formas distintas de fracasso para um movimento revolucionário. Primeiro, existe, é claro, a derrota direta: alguém é simplesmente esmagado pelas forças inimigas. Depois existe a derrota na própria vitória: alguém vence o inimigo (temporariamente, pelo menos) pela incorporação da principal agenda política do inimigo (o objetivo é tomar o poder estatal, na forma democrático-parlamentar ou numa direta identificação do Partido com o Estado). Acima destas duas versões existe, talvez, a mais autêntica, mas também mais aterrorizadora forma de fracasso: guiado pelo instinto correto que diz que qualquer consolidação da revolução num novo poder estatal é igual à sua traição, porém incapaz de inventar e impor sobre a realidade social uma verdadeira ordem alternativa, o movimento revolucionário se engaja numa estratégia desesperada de proteger sua pureza pelo recurso “ultra-esquerdista” de terror destrutivo. Badiou habilmente chama esta última versão de “tentação sacrificial do vazio” [sacrificial temptation of the void].

Um dos maiores slogans maoístas dos anos vermelhos era: “ouse lutar, ouse vencer”. Mas sabemos que, se não é fácil seguir este slogan, se a subjetividade tem medo não tanto de lutar, mas de vencer, é porque lutar a expõe ao simples fracasso (o ataque não foi bem sucedido), enquanto vencer a expõe ao mais temível dos fracassos: a consciência de que se venceu em vão, que a vitória prepara repetição, restauração. Que uma revolução nunca é algo além de um “entre-dois-Estados”. É daqui que a tentação sacrificial do vazio aparece. O inimigo mais temível das políticas de emancipação não é a repressão pela ordem estabelecida. É a interioridade do niilismo, e a crueldade sem limites que pode acompanhar este vazio.”

O que Badiou diz efetivamente aqui é o exato oposto do “Ouse vencer!” de Mao – deve-se ter medo de vencer (de tomar o poder, estabelecer uma nova realidade sóciopolítica), porque a lição do século XX é que ou a vitória termina em restauração (retorno à lógica de poder do Estado) ou é capturada pelo ciclo auto-destrutivo da purificação. É por isso que Badiou propõe substituir purificação por subtração: em vez de “vencer” (tomar o poder) devemos criar espaços subtraídos do Estado. Ele não está sozinho. Um medo ronda a (o que quer que reste da) esquerda radical de hoje: o medo de confrontar-se diretamente com o Poder de Estado. Aqueles que ainda insistem em lutar contra o Poder estatal, deixado sozinho no comando, são imediatamente acusados de ainda estarem presos ao “velho paradigma”: a tarefa de hoje é resistir ao Poder estatal recuando de sua esfera de atuação, subtraindo-se dele, criando novos espaços fora de seu controle. Este dogma da esquerda contemporânea é melhor capturado pelo título do novo livro-entrevista de Tony Negri: Adeus, Senhor Socialismo!. A idéia é que a época da velha esquerda em suas duas versões, reformista e revolucionária, ambas as quais pretendiam tomar o poder do Estado e proteger os direitos coorporativos da classe trabalhadora, acabou.

Mas esta análise se sustenta? A primeira coisa a fazer é empreender uma fórmula mais complexa do Partido-Estado como a figura que definiu o Comunismo do século XX: sempre houve uma lacuna entre os dois, o Partido permaneceu a semi-escondida sombra obscena que remontava à estrutura do Estado. Não há necessidade de demandar uma nova distância políticaem relação ao Estado: o Partido É esta distância, sua organização dá corpo a uma forma fundamental de desconfiança do Estado, dos seus órgãos e mecanismos, como se precisassem ser controlados, mantidos sob vigilância a todo tempo. Um verdadeiro Comunista do século XX jamais aceitou completamente o Estado: sempre teve de haver uma agência vigilante fora do controle das leis (do Estado) e com poder de intervir no Estado.

Segundo ponto. 1989 representou não apenas a derrota conjuntural do socialismo de estado e das sociais-democracias ocidentais – a derrota vai muito mais fundo. O raciocínio da Esquerda após 1989 era: a estratégia de tomar o poder falhou miseravelmente em seus objetivos, de modo que a Esquerda deveria adotar uma estratégia diferente, a primeira vista mais modesta, mas, de fato, muito mais radical: recuar do poder estatal e concentrar-se em transformar diretamente a própria textura da vida social, as práticas cotidianas que sustentam todo o edifício social. Esta posição teve a forma mais elaborada com John Holloway: “como fazer uma revolução sem tomar o poder?”. A principal forma de democracia direta de multidões “expressivas” no século XX foram os chamados conselhos (“sovietes”) – (quase) todo mundo no Ocidente os amava, até mesmo liberais como Hannah Arendt que percebia neles um eco da velha vida grega na pólis. Ao longo da era do Socialismo Realmente Existente, a esperança secreta dos “socialistas democráticos” era a democracia direta dos “sovietes”, os conselhos locais como formas de auto-organização do povo; e é profundamente sintomático como, com o declínio do Socialismo Realmente Existente, essa sombra emancipatória que rondava a todo o momento também desapareceu – não será esta a maior confirmação do fato que a versão-conselho do “socialismo democrático” era apenas um duplo espectral do “burocrático” Socialismo Realmente Existente, a transgressão inerente sem substancial conteúdo positivo propriamente seu, i.e., incapaz de servir como o princípio organizador e permanente de uma sociedade? O que tanto Socialismo Realmente Existente como a democracia-de-conselhos tem em comum é a crença na possibilidade de uma organização auto-transparente da sociedade que superasse a “alienação” política (aparelhos estatais, regras institucionalizadas da vida política, ordem jurídica, polícia etc.) – e não seria a experiência básica do fim do Socialismo Realmente Existente precisamente a rejeição desta característica comum, a resignada aceitação pós-moderna do fato de que a sociedade é uma rede complexa de “subsistemas”, razão pela qual um certo nível de “alienação” é constitutivo da vida social, de forma que uma sociedade totalmente autotransparente é a utopia com potenciais totalitários. Não a toa que o mesmo vale para as práticas contemporâneas de “democracia direta”, das favelas a cultura digital “pós-industrial” (as descrições das novas comunidades “tribais” de hackers não evocam freqüentemente a lógica da democracia-de-conselhos?): todas tem de apoiar num aparelho de estado, i.e, por razões estruturais, elas não podem dominar todo o espaço. A máxima de Negri “não há governo sem movimentos” deve ser contestada com “não há movimentos sem governo”, sem o poder estatal que sustente o espaço para os movimentos. É esta tensão entre democracia representativa e direta expressão dos “movimentos” que nos permite formular a diferença entre um partido político democrático comum e o Partido “mais forte” (como o Partido Comunista): um partido político comum assume plenamente sua função representativa, toda sua legitimação é dada pelas eleições, enquanto o Partido considera secundário o procedimento formal das eleições democráticas em relação à dinâmica propriamente política dos movimentos que “expressam” sua força.

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Slavoj Žižek nasceu na cidade de Liubliana, Eslovênia, em 1949. É filósofo, psicanalista e um dos principais teóricos contemporâneos. Transita por diversas áreas do conhecimento e, sob influência principalmente de Karl Marx e Jacques Lacan, efetua uma inovadora crítica cultural e política da pós-modernidade. Professor da European Graduate School e do Instituto de Sociologia da Universidade de Liubliana, Žižek preside a Society for Theoretical Psychoanalysis, de Liubliana, e é um dos diretores do centro de humanidades da University of London.

terça-feira, 21 de junho de 2011

Nossa homenagem ao velho caudilho: Brizola - Tempos de Luta



Tempos de Luta relata a trajetória política de Leonel Brizola e a sua participação como protagonista dos acontecimentos que marcaram a História Contemporânea do Brasil. Resgata a história da sua vida desde a infância pobre no interior do Rio Grande do Sul e dos tempos de adolescente em Porto Alegre. Um documentário que elucida e dimensiona o processo de formação da perspectiva política do líder trabalhista brasileiro, nascida e continuada sob a inspiração de Getúlio Vargas. As imagens históricas são pontuadas por depoimentos de familiares, de pessoas que conviveram com Brizola e de lideranças nacionais e internacionais, como Luis Inácio Lula da Silva, Fernando Henrique Cardoso e Mario Soares, entre outros. O fio da história é formado pelos acontecimentos e personagens que marcaram a vida pública de Brizola, desde a Revolução de 30 até 21 de junho de 2004, quando sua morte surpreendeu o Brasil.

OS ERROS DE BRIZOLA

Oscarino Arantes
(texto publicado no Jornal do Brasil do dia 22 de junho de 2004 e transcrito nos anais da ALERJ)

Pode parecer impróprio para o momento, mas escolhi falar de Brizola justamente pelo ângulo mais improvável nesta hora, talvez até inconveniente, diante de seu recente falecimento. Agora, como era de se esperar, Brizola é alvo de uma verdadeira redenção por parte da mídia, praticamente unânime, que une em depoimentos de pesar, aliados e adversários. Os mais exaltados seguidores do grande líder trabalhista, provavelmente nem chegarão a ler esta frase, revoltados com o título que escolhi. Seus adversários, estes não se darão ao trabalho de ler sobre um tema recorrente em seus ataques ao “velho caudilho”. Considero assim, que escrevo uma carta que coloco numa garrafa, arremessada no tempo.

A meu ver, soa totalmente falso a aura de perfeição e unanimidade, que após a morte, os meios de comunicação recobrem um líder político popular. Talvez com sincero peso na consciência, mas com certeza mitificando o papel do líder na luta popular, como forma de distanciá-la do homem comum. Foi assim com Prestes, que após falecer virou mito e mereceu até editorial do Sr. Roberto Marinho no Globo. Felizmente a providência nos poupou deste inusitado quadro.

Mas o que quero, é tratar do Brizola vivo, não do Brizola morto, mito, ídolo, pop, lenda. A última coisa que Brizola procurou ser em vida, foi uma unanimidade. Brizola nunca temeu a polêmica, o confronto, a contestação, a exposição, o desgaste. E aí encontramos o seu primeiro grande erro: Leonel era sem dúvida um apaixonado. Um apaixonado pelo Brasil, por suas idéias, capaz de vivenciar por inteiro um conflito, movimentando mentes e corações. Sim, Brizola errou. Errou porque em sua paixão, tão ardentemente vivida, nunca houve lugar para o casuísmo político da moderação, da acomodação de interesses tão comum em nosso país. A paixão de sua vida, foi sua glória e sua perdição. Houvesse aprendido o discurso de “paz e amor”, e teria sido presidente. Mas Brizola era assim: passional até a última veia. Diziam seus detratores, que ele “venderia a mãe para ser presidente”. Não emprestou nem mesmo seu discurso, aos modernos recursos dos badalados marketeiros. Foi-se a presidência. A memória de D. Oniva ficou incólume.

O que nos leva ao segundo erro de Brizola, que foi ser coerente. A coerência marcou Brizola na mesma medida que Brizola foi um marco de coerência em nosso país. A coerência matou Brizola, tanto quanto seu coração apaixonado. Foi ela que pautou sua dialógica, como a faceta mais conhecida do grande líder trabalhista. Brizola era capaz de se fazer quase atemporal, ao defender suas idéias. Acreditava-se legatário de Getúlio, sem perceber que já o havia transcendido. Enfrentou com a mesma verve o imperialismo norte-americano e o poder econômico. Um texto de Brizola de 1962 e um de 2002: entre eles apenas as rugas e os cabelos brancos. Beirava às vezes a teimosia; não se curvava às circunstâncias. Brizola era intransigente. Para ele, a menor distância entre dois pontos, continuava a ser uma linha reta e nunca o caminho mais fácil. Apontava o problema e a solução com a mesma convicção e firmeza. Popularizou “as perdas internacionais” e fez da educação popular mais do que uma bandeira política, transformando-a em dogma programático. Mas sua irresistível retórica porém, não suportou o peso avassalador da “Era da Informação”, com seus difusos e requintados meios midiáticos, high-tech. A tecnologia elegeu o pastor pop-star, venceu o caudilho, mas não o derrotou. Continuava o coerente Brizola: Getúlio, 1962, perdas internacionais, educação, suas rugas e seus cabelos brancos.

Brizola fez História. Esse seu terceiro grande erro. Um pobre menino, saído do interior do Rio Grande do Sul, provavelmente cansado do infindável desfile de patronos e heróis da pátria, aprisionados nos livros, recusou-se a ser espectador passivo e decidiu protagonizar a História do Brasil. Ousou demais. Nossas elites jamais perdoariam tamanha ousadia: Brizola fez escolas para os filhos dos trabalhadores, estatizou multinacionais, dividiu a terra e distribuiu arma ao povo nas ruas para enfrentar o golpismo do poder dominante. Contra todos os tipos de críticas, desenvolveu com Darcy Ribeiro, o maior programa educacional de nosso país, criando os CIEPs. Foram mais de meio século de história, se confundindo com ela, mas sempre aquela história que não é contada, nem escrita nos livros das escolas que tanto defendia. Brizola era um tipo de líder político raro em nosso tempo, que se distinguia nos grandes episódios da vida pública, que exigiam personalidade, mas era arredio ao cotidiano burocrático. Foi um comandante de uma história de libertação, com a coragem de um leão, um Leonel, mas não foi como libertador que entrou nela. Perde a História mais uma vez para a realidade.

Estes a meu ver, os três grandes erros de Brizola, que também o distinguem de qualquer outro político de nossa geração: a paixão, a coerência e a ousadia. É certo que ele cometeu vários outros em sua trajetória. Mas são os grandes erros que nos dão uma dimensão real e humana de um grande líder, nosso eterno Itagiba. Em vida, soube defender seus erros com a mesma convicção de suas virtudes. Aliás, erros e virtudes se confundiram em Brizola. De Carazinho para o panteão dos mitos, é um passo muito pequeno e falseado, para um homem como Brizola. A maior homenagem que podemos lhe render, é não mitificá-lo, não desumanizá-lo, não elitiza-lo. É preciso manter viva, nos corações e mentes, a verve polêmica, a coragem e a luta que marcaram sua vida. Leonel Brizola errou. Errou porque foi Brizola, viveu intensamente o que acreditava. E porque viveu, hoje está morto. Brizola não temeu errar, não temeu viver. Deixa a vida, mas não precisa entrar na História. Ele a construiu à sua volta, no seu tempo, com a sua maneira única de ver o mundo. Prefiro acreditar que foi se reunir numa grande estância de verdes pastos, com Getúlio, Jango, Prestes e Darcy. A conversa vai ser longa, mas pra ele isso não será problema. Adeus, Velho Caudilho!

Sete anos sem Brizola, quanta falta ele faz

Uns dizem que ele vive. Onde? Como? Quem lhe segue os passos e preserva seu legado?


Por Pedro Porfírio

Nesta terça-feira, dia 21 de junho, o calendário registra o sétimo ano da morte de Leonel de Moura Brizola. Nesse dia, a igreja católica lembra São Luís Gonzaga, o jovem que recusou o fausto de uma vida aristocrática para dedicar-se à evangelização, tendo morrido com pouco mais de 20 anos. Daí ser o "Patrono da Juventude". Já a literatura lembra o nascimento de Machado de Assis, em 1839.

O 21 de junho é também o Dia da Mídia, que coincidência, e, mais emblemático ainda, é o dia em que começa o inverno em nosso país, quando o frio deita e rola, como pode? Mas para este escriba inconformado, essa data é um marco dramático: depois da morte do caudilho, em circunstâncias surpreendentes, a história do Brasil sofreu um colapso fatal. Parou no tempo e no espaço. E o povo perdeu aquele que mais ousou, que fez da coragem o exemplo infelizmente abandonado.

Como Leonel de Moura Brizola não existirá mais ninguém. Ele não chegou à Presidência da República, como sua ex-pupila Dilma Rousseff, mas e daí?

Fosse o triunfo a qualquer preço o elemento de avaliação não existiria nem o cristianismo. O enviado do Deus todo poderoso foi sacrificado na cruz porque incomodava os "sábios do templo". E, segundo a Bíblia, quando os sacerdotes judeus pediram sua cabeça a Pilatos, Jesus Cristo foi abandonado por seu povo, que preferiu Barrabás, o zelota que atacava os dominadores romanos, em ações de "guerrilha".

E não existirá mais ninguém porque o mundo hoje é dos ambíguos e dos transgênicos. É o mundo em que a biruta é a referência única dos profissionais da vida pública, todos, sem exceção: os indignados rabugentos ou estão a sete palmos ou são tratados como loucos desvairados, inconvenientes e jurássicos.

Ninguém nestas terras ousaria mais o embate desigual contra a potência imperial, muito menos contra a mais poderosa rede midiática do mundo, inflada no auge do obscurantismo e feita guardiã implacável da lavagem cerebral massiva e da imbecilidade compulsiva, graças às quais o charme da meninada que ainda podia espernear esmaece no gáudio das prebendas, ou se esvai no delírio ensimesmado ou na fuga dos alucinógenos hodiernos.

O trágico na lembrança de Leonel de Moura Brizola foi o corte epistemológico que sua morte encerrou, como se a tirania das elites houvesse ordenado a estigmatização de seu dístico. Uma corte inquisitorial oculta vedou as portas do destino a tudo o que lhe dizia respeito: suas idéias, seu modo de ser, seus compromissos, seus sentimentos combatentes.

Lembrar Leonel de Moura Brizola hoje é apenas mandar rezar uma missa. Suas barricadas foram desmontadas, pelo menos nestes dias arrivistas. Seus "continuadores" trocaram as armas da eloquência varonil pelo pires na mão.

Em seu nome, servem a Deus e ao diabo, bastando que se lhes saciem a gula anã. Já não ousam o despojado sonho de um porvir soberano e justo. Cuidam, tão somente, de encherem suas burras com as sobras dos podres poderes.

Não acreditam mais, ou talvez nunca acreditaram, na virtude das idéias. Não diferem dos outros, todos esses empostados que lavam as mãos com alcool depois de cumprimentarem os maltrapilhos. Que se dizem em pú blico vestais dos bons modos, mas que, protegidos pela penumbra dos conluios, se jogam de cabeça na roleta das negociatas em causa própria.

Uns aindam dizem no devaneio ou na má fé que Brizola vive. Onde? Como? Quem lhe segue os passos nos confrontos com os senhores do mundo? Hoje, lamento constatar, o brizolismo que se declara como tal, de propriedade lavrada em cartório, não passa de uma troça eleitoreira destinada tão somente a catapultar os mais espertos de seus restos mortais?

Não pense que falo de um ser sobrenatural. Longe disso. Alma camponesa, ele próprio se enredou em erros elementares, frutos de um modo de ser desconfiado. Tinha mais olhos para os oportunistas subservientes do que para os divergentes leais. Nem sempre preservou a coerência em seus atos, e olha que a coerência ainda era uma de suas virtudes.

Sua sensibilidade epidérmica o levava a reações passionais. Não era um político, n a acepção da palavra. Não gostava de ser questionado em público e falava muito mais do que ouvia. Ouvir, aliás, não era seu forte, a não ser o canto dos bajuladores. Faltava-lhe inclusive visão estratégica na compreensão do processo histórico.

Mas esse ser político tão despreparado para o jogo do poder, era, porém, até por isso, a dignidade em pessoa. O patriotismo que o moldou ainda nos pampas era mais relevante do que tudo o mais. A identificação natural com os oprimidos o fazia mais legítimo defensor das causas sociais do que qualquer teórico do mundo novo ou mesmo qualquer ativista classista.

Leonel de Moura Brizola, enfim, é alguém cujos 82 anos de lutas ainda vão ser lembrados no futuro com o relevo que seus contemporâneos negam. Será uma lembrança rica pelo caráter singular de sua personalidade, por sua combatividade insone e pelo contexto infame desses anos terríveis que a tantos emporcalham.

Será o inventário do mais injustiçado dos brasileiros, cujo destemor contará no resgate de valores incorporados à sua história e enterrados em seu sepulcro.

Nesse então, palavras como patriotismo, justiça social, soberania nacional, educação decente e respeito à dignidade humana se fundirão numa única legenda: Leonel de Moura Brizola.

segunda-feira, 20 de junho de 2011

sexta-feira, 17 de junho de 2011

O poder da ciência

Por Cristovam Buarque e Jorge Werthein

Uma autoridade de elevada patente se prepara para deixar o poder. Aproveita a oportunidade para fazer um mea culpa. Deveria ter investido mais em educação científica. Permitiu que outros países, com ciência e tecnologia mais avançadas, se tornassem superiores. Agora é tarde. Seu governo fracassou. Amarga derrota irreversível. Ele deposita, então, nos jovens a esperança de elevar ao nível máximo o "poder científico e o poder espiritual" da nação.

No dia seguinte, os jornais trombeteiam que seu sucessor dará ênfase à ciência básica no sistema escolar. Recém-empossado, ele anuncia a criação de uma secretaria voltada exclusivamente para a educação em Ciências. Reconhece publicamente a extrema relevância do "cultivo da capacidade de pensar cientificamente" para a construção de uma cultura nacional. Milhões em recursos financeiros se destinam agora a um fundo para a promoção da ciência no cotidiano da população. O novo governo se mostra decidido a corrigir os erros do passado e a apostar no futuro do país por meio do conhecimento científico.

Esse episódio ocorreu de fato e é narrado no livro Embracing Defeat – Japan in the Wake of World War II, de John W. Dower, lançado em 1999. O cenário era o Japão, imediatamente após o fim da Segunda Guerra Mundial, quando os Aliados – Estados Unidos à frente – derrotaram as forças do Eixo, entre elas o Japão, alinhadas com o nazi-fascismo. Nesse momento histórico, o governo japonês se rendia diante da superioridade bélica norte-americana, expressa com a explosão das bombas atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki.

As autoridades nipônicas, tanto as que deixavam o poder quanto as que nele ingressavam – entre elas o derrotado ministro da Educação do relato do livro – assumiram que a maior deficiência dos japoneses tinha sido a ciência e a tecnologia. Artigo publicado no Asahi Shimbun, maior jornal do Japão, em 20 de agosto de 1945, chegava a afirmar: "Perdemos para a ciência do inimigo."

Evidentemente, ninguém, em sã consciência, ousaria defender o emprego da ciência e da tecnologia para fins não pacíficos. Mas o episódio e seus desdobramentos ajudam a compreender o impressionante avanço japonês nessas áreas. O Japão só despertou realmente para a relevância do investimento nesses setores ao perder uma guerra. Hoje, décadas após o Plano Marshall, os japoneses se mantêm na dianteira em termos científico-tecnológicos. O país se tornou referência mundial em ciência e tecnologia, a despeito da crise econômica que enfrentam, sobre a qual, aliás, afirma o Relatório Mundial de Ciências da Unesco, lançado em 2010: "Neste período de incerteza, entretanto, há um firme consenso entre políticos, administradores públicos e industriais japoneses sobre a importância crucial da ciência e da tecnologia e sobre a necessidade de estimular a inovação."

Em parte também por motivos de segurança nacional, a igualmente asiática Coreia do Sul tem avançado consideravelmente nas áreas de ciência, tecnologia e inovação. Os sul-coreanos, que têm como maior ameaça à paz seus vizinhos norte-coreanos, atingiram, ao lado da Finlândia, o topo do ranking no mais recente Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa, na sigla em inglês). A Coreia do Sul figura, no exame, como um dos cinco países com melhor desempenho em ciências entre os 65 avaliados. Vem logo abaixo do Japão.

Japão e Coreia do Sul têm aparentemente pouca semelhança com países como o Brasil. No entanto, observados mais de perto, apresentam alguns traços em comum, tais como períodos de ditadura política e de atraso econômico em passado não muito distante. Da segunda metade do século 20 para cá, os dois "tigres asiáticos" alcançaram elevados patamares em termos de educação, enquanto o Brasil avançou muito lentamente. Somente agora, em pleno século 21, o "gigante adormecido" parece começar a despertar para a relevância da escola no desenvolvimento do País e vem avançando mais celeremente nesse campo.

País que há muito já se destaca internacionalmente nas artes – especialmente na música – e nos esportes – notadamente no futebol -, o Brasil precisa dar-se conta de que pode e deve avançar mais em ciência e tecnologia e converter-se também em referência nessas áreas, ingressando, assim, de forma definitiva na chamada sociedade do conhecimento. Deve perceber que alfabetizar não basta, assim como não basta universalizar o ensino fundamental. É preciso conferir-lhe qualidade e garantir que os estudantes efetivamente aprendam. Ao mesmo tempo, precisa desenvolver o potencial científico que há latente nos cérebros das nossas crianças desde os primeiros anos de escola.

Deverá, para isso, destinar mais recursos para a educação científica e para pesquisa e desenvolvimento, a chamada P&D. Para ter uma ideia, no Brasil a relação entre Produto Interno Bruto (PIB) e gasto interno bruto em P&D tem-se mantido estável nos últimos anos, enquanto na China teve aumento de 50% entre 2002 e 2008, segundo o mais recente Relatório de Ciências da Unesco.

Em seu discurso de posse, o novo ministro da Ciência e Tecnologia, Aloizio Mercadante, muito oportunamente narrou episódio que atribui a Stephen Jay Gould, um dos grandes biólogos e teóricos da evolução do século passado: "Fizeram uma sondagem nas escolas de segundo grau americanas para aferir quem os adolescentes admiravam mais. O primeiro nome da lista foi Michael Jordan. Fizeram sondagem semelhante na Coreia do Sul e lá o primeiro nome da lista foi do emérito físico britânico Stephen Hawking." Sinal dos tempos.

(Artigo publicado no jornal O ESTADO DE S. PAULO em 9/3/2011)

terça-feira, 14 de junho de 2011

Noam Chomsky: O ataque contra a força de trabalho

Na maior parte do mundo, o dia 1º de Maio é um dia feriado dos trabalhadores internacionais, ligado à amarga luta dos trabalhadores americanos do século 19 pela jornada de trabalho de oito horas. O 1º de Maio passado leva-nos a uma sombria reflexão.

Por Noam Chomsky

Há uma década, foi cunhada pelos ativistas laborais italianos em honra do 1º de Maio uma palavra útil: “precariedade”. Referia-se inicialmente à cada vez mais precária existência da gente trabalhadora “à margem” – mulheres, jovens e imigrantes.

Logo de seguida, ela foi alargada e aplicada ao crescente “precariado” no núcleo da força laboral, o “proletariado precário” que sofria os programas de “dessindicalização”, flexibilização e desregulação, que formam parte do ataque contra a força de trabalho em todo o mundo.

Nessa altura, inclusive na Europa, havia uma preocupação crescente sobre aquilo a que o historiador do trabalho Ronaldo Munck, citando Ulrich Beck, chama a “brasileirização do Ocidente” “(… )a proliferação do emprego temporário e sem segurança, a descontinuidade e relaxamento das normas nas sociedades ocidentalizadas, que até então tinham sido bastiões do pleno emprego”.

A guerra do Estado e das corporações contra os sindicatos estendeu-se recentemente ao setor público, com legislação proibindo acordos coletivos e outros direitos elementares.

Mesmo no Massachusetts, a Câmara de Representantes favorável aos trabalhadores votou, pouco antes do 1º de Maio, uma acentuada restrição aos direitos dos polícias, dos professores e de outros empregados municipais quanto à negociação sobre a assistência à saúde - assunto crucial nos Estados Unidos, com o seu disfuncional e altamente ineficiente sistema privatizado de cuidados de saúde.

O resto do mundo pode associar o 1º de Maio com a luta dos trabalhadores americanos pelos seus direitos básicos, mas nos Estados Unidos essa solidariedade encontra-se suprimida a favor de um dia feriado reacionário.

O dia 1º de Maio é o “Dia da Lealdade”, assim designado pelo Congresso em 1958 para a “reafirmação da lealdade aos Estados Unidos e pelo reconhecimento do legado americano de liberdade”.

O presidente Eisenhower proclamou, além disso, que o Dia da Lealdade seja também o Dia da Lei, anualmente reafirmado com o içar da bandeira e a dedicação à “Justiça para Todos”, às “Fundações da Liberdade” e à “Luta pela Justiça”.

O calendário dos Estados Unidos tem o Dia do Trabalho em setembro, em celebração do regresso ao trabalho depois de férias que são mais curtas que noutros países industrializados.

A ferocidade do ataque contra as forças laborais pela classe dos negócios dos EUA está ilustrada pelo fato de Washington se ter abstido durante 60 anos de ratificar o princípio central da lei internacional do trabalho que garante a liberdade de associação.

O analista de leis Steve Charnovitz chama a isso de “tratado intocável da política dos Estados Unidos” e observa que nunca houve um debate sobre este assunto.

A indiferença de Washington em relação a algumas convenções apoiadas pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) contrasta marcadamente com a sua preocupação em fazer respeitar os direitos das corporações aos preços de monopólio, ocultos sob o manto do “livre comércio”, um dos orwellismos contemporâneos.


Em 2004, a OIT informou que “as inseguranças econômica e social multiplicam-se com a globalização e as políticas com ela associadas, à medida que o sistema econômico global se tornou mais instável e os trabalhadores suportam uma carga cada vez maior por exemplo através das reformas das pensões e da assistência na saúde”.

É este o que os economistas chamam o período da Grande Moderação, proclamado como “uma das grandes transformações da história moderna”, encabeçada pelos EUA e baseada na “libertação dos mercados” e, em particular, na “desregulação dos mercados financeiros”.

Este elogio ao estilo americano dos mercados livres foi pronunciado pelo editor do Wall Street Journal, Gerard Baker, em janeiro de 2007, dois meses apenas antes do sistema desmoronar e com ele o edifício inteiro da teologia econômica sobre o qual estava assente, levando a economia mundial à beira do desastre.

O descalabro deixou os Estados Unidos com níveis de desemprego real comparáveis aos da Grande Depressão e sob muitos aspectos piores ainda, porque debaixo das atuais políticas de quem manda esses empregos não regressarão, como aconteceu com os estímulos governamentais massivos durante a Segunda Guerra Mundial e nas décadas seguintes da “era dourada” do capitalismo estatal.

Durante a Grande Moderação, os trabalhadores americanos habituaram-se a uma existência precária. O aumento do precariado americano foi orgulhosamente proclamado como um fator primário da Grande Moderação que produziu um crescimento mais lento, virtual estancamento do rendimento real para a maioria da população e riqueza para além das ambições da avareza para um setor diminuto, uma fração de um por cento, na maior parte diretores executivos, gestores de fundos de cobertura e outros nessa categoria.

O sumo-sacerdote desta economia magnífica foi Alan Greenspan, descrito na imprensa empresarial como “santo” pela sua brilhante condução. Orgulhando-se dos seus êxitos, testemunhou perante o Congresso que eles dependiam de “uma moderação atípica dos aumentos das compensações (que) parece principalmente consequência de uma maior insegurança dos trabalhadores”.

O desastre da Grande Moderação foi resgatado por esforços heroicos do governo para recompensar os seus autores. Neil Barosky, ao renunciar em 30 de março como inspetor-geral do programa de resgate, escreveu um artigo revelador na seção de Op-Ed (colunas de opinião – N.T.) do New York Times acerca de como funcionava o resgate.

Em teoria, o ato legislativo que autorizou o resgate foi um compromisso: as instituições financeiras seriam salvas pelos contribuintes e as vítimas dos seus maus atos seriam compensadas de certa forma através de medidas que protegeriam o valor das casas e preservariam a propriedade das mesmas.

Parte do compromisso foi cumprido: as instituições financeiras foram recompensadas com enorme generosidade por terem causado a crise e perdoadas dos crimes descarados. Mas o resto do programa desapareceu.

Conforme Barosky escreve: “as execuções hipotecárias continuam a aumentar, com entre 8 e 13 milhões de julgamentos previstos durante a existência do programa”, enquanto “os maiores bancos são 20% maiores do que antes da crise e controlam uma parte maior da nossa economia, como nunca antes. Assumem, logicamente, que o governo os resgatará de novo, se necessário. De fato, as agências de classificação do crédito incorporam futuros resgates do governo nas suas avaliações dos maiores bancos, exagerando as distorções do mercado que lhes proporcionam uma vantagem injusta sobre as instituições mais pequenas que continuam lutando por sobreviver”.

Em poucas palavras, o programa do presidente Obama foi “uma prenda para os executivos da Wall Street” e um golpe no plexo solar para as suas indefesas vítimas.

O resultado apenas surpreende os que insistem com inalterável ingenuidade no projeto e aplicação da mesma política, particularmente quando o poder econômico está altamente concentrado e o capitalismo de Estado entrou numa nova etapa de “destruição criativa”, para usar a famosa frase de Joseph Schumpeter, mas agora com uma diferença: criativa quanto às maneiras de enriquecer e dar mais poder aos ricos e poderosos, deixando o resto livre de sobreviver como puder, enquanto vai celebrando o Dia da Lealdade e da Lei.

segunda-feira, 13 de junho de 2011

Nossa homenagem a Fernando Pessoa

Autopsicografia

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,

Esse comboio de corda
Que se chama coração.
 
(Fernando Pessoa)

Um momento para a eternidade: Tom Jobim, João Carlos Martins e Arthur Moreira Lima



Fragmento de vídeo raro que registra um encontro de imortais: os maestros Tom Jobim, João Carlos Martins e Arthur Moreira Lima reverenciando a Ave Maria de Bach-Gonoud. Simplesmente fantástico!

sexta-feira, 10 de junho de 2011

István Mészáros: Europa virou sistema de partido único


“A última crise financeira enterrou os resquícios de diferença entre social-democratas e conservadores na Europa e vale para o continente a frase que o escritor Gore Vidal cunhou para caracterizar os EUA: é um sistema de um só partido com duas alas direitistas.”



A afirmação é do filósofo húngaro István Mészáros, professor emérito da Universidade de Sussex (Reino Unido), que chega ao Brasil nesta semana para lançar livros e fazer palestras em quatro capitais. "É irônico que na Grécia e na Espanha a tarefa de impor uma dureza cada vez maior aos trabalhadores tenha sido passada a governos ditos socialistas e assumida por eles. Se quisermos superar a paralisia imposta pelo 'sistema de partido único', é preciso mudar o processo de tomada de decisões políticas", disse ele em entrevista à Folha.

Considerado um dos principais teóricos marxistas vivos, Mészáros, 81, deixou a Hungria após a invasão soviética de 1956. Se notabilizou pelas críticas à gestão opressiva no antigo bloco socialista, contidas em seu livro "Para Além do Capital" (Boitempo). Para ele, a crise que se manifesta hoje nos países ricos é estrutural e não parte dos movimentos cíclicos tradicionais do capitalismo. Portanto, diz, não está no horizonte uma "longa onda ascendente" de recuperação econômica.

Mészáros participa neste mês no Brasil de eventos de lançamento de um livro de ensaios em sua homenagem ("István Mészáros e os Desafios do Tempo Histórico") e do segundo volume de sua obra "Estrutura Social e Formas de Consciência", ambos da editora Boitempo. As apresentações ocorrerão no dia 8 em São Paulo e em seguida em Salvador (dia 13), Fortaleza (dia 16) e Rio de Janeiro (dia 20).

Leia abaixo a íntegra da entrevista, feita por e-mail.

FOLHA - A resposta dos social-democratas à crise foi voltar às ideias de John Maynard Keynes sobre intervenção estatal, enquanto governos de esquerda na América Latina reforçaram o papel do Estado no desenvolvimento. Eles estão certos?

ISTVÁN MÉSZÁROS - Governos social-democratas sempre tentam voltar a Keynes para solucionar o que acreditam ser crises financeiras. Isso pode trazer alívio temporário, mas não uma solução real. Isso porque as chamadas crises financeiras são também sociais, com extensas ramificações, especialmente sob as atuais condições de desenvolvimento socioeconômico global.

Nas últimas décadas nós assistimos a uma significativa --e também perigosa-- virada em favor do domínio econômico-financeiro, como uma alternativa em última instância inalcançável ao desenvolvimento produtivo, muitas vezes com conseqüências incontroláveis ou até mesmo fraudulentas, mesmo quando sancionadas pelo Estado. Em muitos países o resultado foi e continua sendo a falência maciça, seguida de resgates feitos pelo Estado, que mergulha mais e mais no chamado "endividamento soberano".

Na Europa três países estão obviamente falidos --Grécia, Irlanda e Portugal--, enquanto vários outros, incluindo economias maiores como a Itália e o Reino Unido, não estão muito longe disso. É verdade que "Estados soberanos" podem intervir para se proteger, por meio do agravamento de seu próprio endividamento. Mas também há um limite para isso, e ir além pode gerar problemas ainda piores. A dura verdade é que agora nós ultrapassamos as mais otimistas recomendações keynesianas: em vários países o volume de dívida insustentável chegou aos trilhões de dólares.


FOLHA - Como o sr. interpreta o predomínio de governos de direita hoje na Europa, incluindo uma forma bem extremada na Hungria?

MÉSZÁROS - Esses problemas são em grande medida cíclicos, e no próximo ciclo os governos podem ir para a outra direção. Mas o aspecto mais importante dessa questão é o tipo de desenvolvimento político-institucional a que estamos assistindo nas últimas duas décadas ou mais. O escritor americano Gore Vidal o caracterizou bem quando disse que nos Estados Unidos temos "um sistema de partido único com duas alas direitistas". O mesmo é verdade na maioria dos países europeus. É suficiente lembrar que tanto na França quanto na Itália os antigos partidos comunistas se transformaram em forças políticas muito difíceis de distinguir de seus oponentes neoliberais.

Claro que na Hungria a mudança no Parlamento assumiu uma forma chocante [dois terços das cadeiras estão na mão do ultraconservador Fidesz]. No entanto, é necessário lembrar que o partido que o antecedeu por oito longos anos no governo [nominalmente social-democrata] esteve muito longe de ser um partido de esquerda, com sua devoção a impor aos trabalhadores as políticas neoliberais mais dolorosas, disseminando o ressentimento e a alienação.

Se quisermos superar a paralisia do "sistema de partido único com duas alas direitistas", é preciso mudar o processo de tomada de decisões políticas. Na Grécia e na Espanha, por exemplo, temos supostamente governos "socialistas", mas nada que devamos comemorar. E na Inglaterra, na próxima eleição, devemos ver o retorno de outro governo "socialista". À luz da experiência passada, quem seria corajoso o suficiente para sustentar que um governo do "Novo Trabalhismo" representaria mais do que uma mudança cosmética?

FOLHA - O sr. está otimista com as últimas manifestações populares na Espanha e na Grécia?

MÉSZÁROS - A palavra otimista não cabe muito bem. Não penso nesses termos porque sei que muita coisa pode dar errado e, como resultado, muitas vezes os mais vulneráveis e fracos têm que arcar com o maior peso. No entanto, estou certamente esperançoso, e reconheço que é preciso encontrar esperança, do contrário seria apenas um "pensamento positivo" que se extinguiria numa ilusão derrotista.

De fato, há uma boa base para estar convencido de que nem a Grécia nem a Espanha podem se conformar com os requerimentos prescritos a elas pelo sistema bancário internacional. Também nesse aspecto há um limite. É de fato muito irônico que nesses dois países a tarefa de impor um arrocho cada vez maior aos trabalhadores tenha sido passada a um governo "socialista" e assumida por ele.

Inevitavelmente, essa circunstância carrega com ela um processo de aprendizado penoso e o necessário reexame das respostas institucionais tradicionais dadas à pergunta "o que fazer?". Seria ingênuo pensar que esse aprendizado pudesse trazer resultados rápidos. No entanto, a dimensão positiva de tudo isso é que grupos cada vez maiores de trabalhadores se veem diante do desafio inevitável de reavaliar tantos as formas de tomada de decisão com que se acostumaram no passado quanto as respostas a ela. Seria arrogante presumir que nada de significativo possa emergir desse processo.

FOLHA - Qual será sua principal mensagem aos universitários que o ouvirão no Brasil?

MÉSZÁROS - Em certo sentido é muito simples. Quero chamar sua atenção para a natureza da crise de nosso tempo e a necessidade de lidar com ela o mais rápido possível. Porque o que devemos encarar não é a crise cíclica tradicional do capitalismo, que vai e vem em intervalos regulares, mas algo radicalmente diferente. É a crise estrutural global do sistema do capital em sua integralidade, que não pode ser conceituada nos termos habituais da "longa onda descendente" (downturn) seguida da confortadora "longa onda ascendente" (upturn), dentro de um período de mais ou menos cinco décadas. Há muito tempo essa caracterização perdeu credibilidade e não há nenhum sinal da fictícia "longa onda ascendente".

A razão pela qual é importante reposicionar nossa atenção nessa direção é porque uma crise estrutural requer remédios estruturais radicais para sua solução. O que está em jogo é muito grande porque nossa crise estrutural está se tornando mais profunda, em vez de diminuir. A crise financeira global a que fomos submetidos nos últimos anos é um aspecto importante disso, mas só um aspecto. Não há lugar para a autocomplacência quando trilhões de dólares jogados fora mal puderam arranhar a superfície do problema real.

FOLHA - O sr. previu uma confrontação entre os EUA e a China. Também sugeriu que a China não pode ser classificada como um país capitalista. Ainda pensa assim?

MÉSZÁROS - Sim, nos dois casos, mesmo se desde que eu escrevi isso, há 12 anos, muitas coisas mudaram e devem continuar mudando. O principal ponto é a diferença dramática no nível de desenvolvimento econômico dos dois países, com sinais de conflitos de interesse significativos decorrentes desse fato surgindo em partes diferentes do planeta, incluindo a África e a América Latina.

Considerar a China simplesmente como um país capitalista é simplista demais. O fato é que alguns setores vitais da economia, especialmente na produção de energia e na extração de material estratégico, estão em grande medida sob o controle do setor estatal. Além disso, e isso é um fato de importância seminal, o setor bancário e o câmbio --questão muito debatida e ressentida pelos EUA-- estão sob controle estatal completo. Tente convencer as empresas capitalistas e o sistema bancário nos EUA a imitar isso.

Conflitos de interesse nessas linhas podem não apenas se intensificar como se tornar não administráveis, ao ponto da explosão. Mas claro que seria loucura pensar nisso em termos de fatalidade. No entanto, muitos problemas herdados do passado terão que ser confrontados no tempo certo para resolver as contradições subjacentes.

FOLHA - O sr. disse uma vez que "revoluções reverberam por séculos, até que suas causas profundas sejam resolvidas". O sr. vê alguma reverberação de revoluções passadas nas revoltas que ocorrem nos países árabes?

MÉSZÁROS - Sem dúvida podemos ouvir potentes reverberações, ao lado dos temas prementes às populações dos países em questão. É quase impensável que o chamado "Estado pós-colonial" de dominação e dependência da segunda metade do século 20 pudesse ser mantido permanentemente nesses países. E claro que estamos muito longe do fim desse processo doloroso.

Também não podemos nos esquecer que a grande maioria das pessoas nos países afetados tem o problema básico de se alimentar, problema que está se agravando com o aumento do preço dos alimentos em todo o mundo.

Além disso, quando o presidente Obama (ou os redatores de seus discursos) falam das virtudes da "democracia", eles falham em reconhecer que o governo criminalmente repressivo do presidente egípcio Hosni Mubarak, que deve ser julgado em agosto, esteve em total subserviência em relação aos EUA por três décadas. Isso sem mencionar a ausência total de qualquer referência crítica à Arábia Saudita, que é feudal, mas lucrativa militarmente.

As reverberações que ouvimos devem continuar e se tornar mais altas, porque têm uma base causal e uma realidade irreprimível.

(CLAUDIA ANTUNES)

quarta-feira, 8 de junho de 2011

Governo Dilma: Devagar, bem comportado, rumo ao precipício

A demissão de Antônio Palocci não muda nada no governo Dilma. Sai um ministro envolvido em corrupção, entra uma ministra até prova em contrário séria, mas e daí?


Laerte Braga

A política econômica continua privilegiando investimentos não produtivos – de curto prazo – com ganhos elevados (como não existem em lugar do mundo), os juros continuam estratosféricos e o ufanismo do real valorizado na prática significa que o parque industrial brasileiro, a persistir esse modelo, vai para o brejo.

Os ganhadores? Os de sempre. O sistema financeiro em boa parte controlado por grupos estrangeiros – obra de FHC.

As taxas de crescimento do Brasil nos últimos anos não revelam realidades perversas que ainda permanecem intocadas no País. Os baixos salários, a falta de participação popular no processo de decisões políticas no sentido amplo e um modelo atrelado ao neoliberalismo em franca decomposição em todo o mundo.

A nova ordem econômica é uma ordem terrorista e funda-se na boçalidade de um arsenal nuclear fantástico dos Estados Unidos, um país em si e por si, falido e dissolvido no controle que sobre o Estado norte-americano exercem os grandes grupos financeiros, a indústria petrolífera, a de armas e o sionismo, hoje principal acionista da Casa Branca.

Toda a teia construída no desgoverno FHC permanece intocada.

O modelo é que está falido. A corrupção de Palocci é implícita, como permeia desde a cúpula do PT, a do PSDB e do PMDB, do entorno desses partidos (PSB, DEM, PR e outros que formam o leque que vai do centro para a direita).

Ou se percebe a necessidade de ruptura com esse modelo, de busca de caminhos que privilegiem o mercado interno – isso significa mais que reforma política para garantir feudos de caciques dos vários partidos de ponta – e nessa medida a política externa de Lula proporcionou avanços expressivos, ou todo o aparato de potência que o Brasil começou a conquistar vira e volta a transformar o País em mero produtor de matérias primas, paraíso do latifúndio e do agronegócio, a corrida pela afirmação em tudo e por tudo como uma das locomotivas do mundo, mais uma vez vai ser perdida.

A situação no campo em nosso País não mudou nada em relação à Idade Média.

Em primeiro lugar é preciso fugir do lugar comum de atribuir qualquer crítica ao governo a aceitar e a fazer coro à mídia podre e venal que temos. É uma desculpa esfarrapada, é enfiar a cabeça num buraco a moda do avestruz.

Permanecem os assassinatos de líderes camponeses e ambientalistas no Norte do Brasil. O sistema repressivo da ditadura militar contra manifestações estudantis e de trabalhadores. Não pode ser chamada de Justiça uma decisão que torna inocente um dos criminosos mais repugnantes dos últimos tempos, o banqueiro Daniel Dantas e mantém preso à revelia de qualquer princípio legal um refugiado político, caso de Cesare Battisti.

Não existe país no mundo que possa sobreviver a um Moreira Franco como ministro de Assuntos Estratégicos. Tanto quanto não sobrevive a um José Serra, ou a um Aécio Neves, mas escorrega e se deixa fazer presa fácil de uma compreensão equivocada de democracia.

Não há poder popular no Brasil e a decisão catastrófica de construir Belo Monte é um exemplo.

Há que se ter um desenho para o desenvolvimento levando em conta que cá embaixo estão seres humanos e esse teto só terá sentido de traçado a partir de ampla participação popular.

É assim que se quebra o poder da mídia, braço dos donos. E é por aí que se abrem os espaços para conquistas efetivas na contramão da falência da Europa Ocidental, da desordem totalitária da Europa Oriental e se chega a caminhos de paz no Oriente Médio, ou se reverte o caos em países africanos.

Começa na integração latino-americana. Na aproximação com os vizinhos e na construção de um bloco dentro dessa ótica.

É um confronto inevitável que trabalhadores e camponeses, organizações populares terão que manter com o poder vigente. E bem antes que a realidade se transforme em pesadelo maior que o atual, ainda que dissimulado por programas sociais e avanços aqui e ali, mas sem nenhuma mudança estrutural.

O PT rendeu-se a uma evidência perigosa – e o fez por vontade própria – levando de roldão – já que jogam toda a esquerda num só balaio – a perspectiva de organização popular nos anos que se seguiram à ditadura. Todo um caminho está sendo refeito a duras penas por partidos que se mantêm nanicos – para usar uma expressão comum e referente ao eleitoral –, mas vivos em seus ideais e compromissos.

Estão vivos também e agora na FOLHA DE SÃO PAULO os carrascos impiedosos e covardes de 1964.

Uma exceção aqui – Tarso Genro no Rio Grande do Sul –, outra ali, mas o centro do poder preso a consultorias que são bem mais que remuneração a ministros e dirigentes petistas. Constituem a afirmação do modelo político e econômico que marginaliza o trabalhador da cidade e o do campo.

A farsa da base governista no Congresso esbarra nos interesses de grupos como o dos latifundiários, ou até de setores religiosos – evangélicos –, mas tudo termina nos fabulosos balanços dos bancos.

O Brasil é um dos países onde a carga tributária é alta, mas ao incidir em sua esmagadora maioria sobre os trabalhadores. Direta ou indiretamente. Elites econômicas têm toda a sorte de benefícios e vantagens. A comparação que setores ditos de esquerda fazem com outros países é ridícula. Nos EUA se cobra o imposto sobre herança. Aqui era um projeto de FHC quando senador que sumiu quando o dito virou presidente.

Heranças, como as temos, são privilégios que perpetuam feudos e um poder absoluto de famílias, como acontece no Maranhão com a quadrilha Sarney. Construídas na exploração pura e simples do trabalhador. Na mentira e no engodo da democracia que é apenas formal e se manifesta de quatro em quatro anos. Se manifesta e se esgota aí. É de pai para filho.

As revoltas em países árabes, as manifestações na Grécia, em Portugal, na Espanha, nos Estados Unidos (até ocupação de fábricas como no início do governo Obama, 42 milhões de cidadãos na linha da miséria), o fim do conceito de nação imposto pela ordem neoliberal são sintomas de um precipício do qual o Brasil não escapa, já que governos supostamente de esquerda não conseguem romper as amarras de um modelo perverso e cruel, mas vendido nas bancas de jornais e revistas como mulher melancia.


A visão do chanceler Anthony Patriot é a de “pragmatismo”. Vem a ser em linguagem bem direta, se o estupro é inevitável, relaxa e pronto.

O capitalismo se apropria do ser humano como um todo e transforma-o em “gado tangido e moído”, enquanto mata civis na Líbia, no Afeganistão, no Iraque, em países europeus onde o povo sai às ruas protestando contra barbáries de governos e agora no Brasil.

A concepção capitalista sobre mulheres é que se usarem Harpic poderão aproveitar melhor o tempo em academias de ginástica, em se transformarem em divas, mas para isso ainda é preciso usar colgate que dezenas de dentistas cínicos e sem ética receitam como solução para problemas bucais.

O adormecido aparato repressivo da ditadura ressurge em organizações terroristas chamadas de BOPE, Polícia Militar e reprime trabalhadores em nome da propriedade privada e das grandes empresas.

Para se ter uma ideia clara disso é só imaginar que uma figura como Sérgio Cabral (amigo de Luciano Huck, o da casa ilegal que foi legalizada pelo governador) governa um estado como o Rio de Janeiro.

E Moreira Franco é ministro no lugar de Samuel Pinheiro Guimarães.

De fato não vamos a lugar nenhum exceto o jogo cínico da disputa de poder do clube de amigos e inimigos cordiais.

Que ressurge inclusive no patrulhamento ideológico, típico de organizações fascistas.

Fonte: Diário liberdade

Duas espécies humanas

O trabalho sempre se associou ao sacrifício, e não ao prazer. A criação, ao contrário, tem expressão lúdica. O marceneiro é um criador.

Por Mauro Santayana

Há quem decrete o fim da classe operária, com a exacerbada corrida tecnológica, que vem substituindo os braços humanos na produção industrial. A expressão pode até se desusar, e de certa forma já está sendo abandonada. Mas o problema é de outra natureza. O mundo não se divide entre os trabalhadores manuais e os outros, mas sim entre os assalariados e os donos do capital. Isso em uma visão ligeira do problema, porque todo trabalho humano é, ao mesmo tempo, manual e intelectual. Quem opera uma máquina, ainda que o faça mediante um ordenador eletrônico, usa ao mesmo tempo as mãos e o cérebro. 

Mais ainda: toda a evolução do homem se deve a essa óbvia associação entre o pensamento e a ação. Por isso mesmo, o filósofo Agostinho da Silva, um dos mais inquietantes pensadores do século 20, diz que o homem não nasceu para trabalhar, e sim para criar. Os marxistas definem essa diferença, ao identificar, no artífice do passado, o criador, uma vez que ele dominava todo o processo de fabricação, e uma peça não era exatamente igual à outra. Na produção industrial moderna, em que cada trabalhador executa – durante a jornada, meses, e quase sempre por muitos anos, quando não toda a vida ativa – a mesma tarefa, fazendo peças separadas, que serão montadas depois, só há realmente trabalho. 

Trabalho vem do latim tripalium, que era um instrumento de suplício no mundo romano. O trabalho sempre se associou ao sacrifício, e não ao prazer. A criação, ao contrário, tem uma expressão lúdica. O marceneiro que faz um armário, partindo de sua própria imaginação e desenho, é um criador. Até mesmo o lenhador, que escolhe na floresta a árvore a abater, é de certa forma um criador. Mas o operário que lixa 500 peças por dia ou aperta parafusos (hoje os robôs o substituem) na linha de montagem, como no belíssimo filme de Chaplin, Tempos Modernos, é um homem submetido ao suplício permanente. Na visão magistral de Marx, o trabalhador de hoje é o “complemento vivo de um organismo morto”.

Os operadores que usam o teclado e “interagem” com a tela não têm apenas seu movimento manual determinado pela máquina, mas também sua mente. Como os bancários, que lidam com milhões alheios durante o dia, eles não conseguem dormir em paz: uns sonham com cifras, outros com bytes. A grande tragédia dos trabalhadores modernos, submetidos às exigências da tecnologia, é se sentirem peças isoladas, exatamente iguais às outras. Não tendo de intervir com sua inteligência, e estando submetidos às tensões de cada minuto, são facilmente substituídos pelos robôs, cuja programação é obedecida sem que as emoções os perturbem.

Um escritor paulista – e conhecido empresário –, Nelson Palma Travassos, achava que as máquinas seriam a redenção do homem moderno, e substituiriam os escravos da Antiguidade, libertando-o para o exercício livre da inteligência – desde que esses robôs fossem de propriedade do Estado, que distribuiria os bens produzidos com equidade a toda a população. A tecnologia não está a serviço dos homens. Está a serviço dos ricos, que a usam, sobretudo na transferência instantânea de capitais, roubando dos depositantes e dos acionistas, enfim, de todos, porque o Estado, ou seja, o povo, arca com o prejuízo. Só há duas classes sociais, a dos ricos e a dos pobres.

Durante muito tempo, ricos eram os que detinham os meios físicos de produção, isto é, as terras, as máquinas, enfim, o capital produtivo. O liberalismo novo, com a globalização da economia, mudou o eixo da razão. Hoje, são os bancos que dominam todo o processo. E os bancos não são administrados – salvo exceções – pelos acionistas, mas sim por executivos tais como os que vimos nos escândalos recentes de Wall Street. Observadores atentos, como o financista Paul B. Farrell, comentarista do Wall Street Journal, mostram que a desigualdade social nos Estados Unidos é hoje maior do que em 1929, quando se iniciou a Grande Depressão, e que, se os ricos não pagarem pesados impostos que permitam melhor distribuição da renda, os pobres, não só ali, mas no mundo inteiro, se sublevarão. É uma questão de vida e morte. 

Fonte: Revista do Brasil - Edição 59 - Maio de 2011