sábado, 30 de julho de 2011

Excessos do Estado: Os riscos do totalitarismo regulatório

Por Alexandre Santos de Aragão


A vida em sociedade implica naturalmente restrições à liberdade. São inúmeros os exemplos colhidos do dia-a-dia: sinais de trânsito, limitações à construção e ao barulho etc. Trata-se apenas da conciliação da liberdade de cada um para propiciar a vida em comum, expressão mesmo do velho ditado popular de que “o seu direito começa onde o meu termina”.

Mas isso é inteiramente distinto de quando o Estado, por eventuais maiorias legislativas ou voluntarismo de autoridades públicas no exercício transitório de cargos políticos ou de confiança, passa a querer impor a todas as pessoas comportamentos que julga ser melhores para eles, como se fossem todas crianças incapazes de discernir o que é melhor ou pior para si mesmas, querendo mesmo em alguns casos estorvar atividades econômicas perfeitamente lícitas.

Nesses casos, o Estado não está apenas conciliando interesses potencialmente contraditórios, mas impondo determinada concepção de vida a sujeitos cujas ações ou omissões em nada estão afetando a esfera individual de outras pessoas.

Estão sendo, nesse sentido, propostas pelo Estado limitações ao bronzeamento artificial, locais de colocação de alimentos nas prateleiras dos supermercados, colocação de advertências em calcinhas e cuecas para utilização de preservativos e realização de exames de saúde. O último exemplo, apesar de tão pitoresco, por incrível que pareça já foi aprovado pelo Senado e pela CCJ da Câmara dos Deputados, demonstrando o quanto a sociedade civil deve se prevenir para proteger as suas liberdades.

Há dois pontos contra os quais a sociedade deve estar igualmente atenta: contra o voluntarismo regulatório — em regulação a boa intenção apaixonada costuma ser perigosa — e contra o comodismo de alguns indivíduos, que preferem que o Estado tutele a sua vida ou da sua família, ao invés de ele próprio tomar as suas decisões.

A República e a Democracia constituem a maturidade institucional de uma sociedade, na qual ela própria se dirige. Não podemos admitir retrocessos paternalistas nessas conquistas. Em 1917, por exemplo, a Prefeitura do Rio de Janeiro determinara a vedação do uso da praia em determinados horários para impedir que os banhistas tomassem demasiado sol e às moças só era permitido o banho de mar se acompanhadas de um banhista especialmente contratado para segurar-lhe a mão, conforme determinado pelo prefeito Pereira Passos.

Os exemplos históricos, hoje prosaicos, se devidamente atualizados servem para mostrar a visão que medidas regulatórias como algumas das que se está atualmente cogitando têm do cidadão: incapazes de decidir o seu melhor caminho e proibidos de assumir por livre arbítrio alguns riscos razoáveis que só lhe dizem respeito.

O Estado de Direito não pode adotar como suas as paixões individuais de algumas das pessoas que episodicamente ocupam este ou aquele cargo público, tão bem criticadas pelo pensador israelense Amós Oz, para quem "o fanatismo está em quase todos os lugares, e suas formas mais silenciosas, mais civilizadas, estão presentes em nosso entorno, e talvez dentro de nós também. Conheço bem os antitabagistas que o queimarão vivo, se você acender um cigarro perto deles! Conheço bem os vegetarianos que o comerão vivo por comer carne! (...) Conformidade e uniformidade, a urgência para pertencer a algo e o desejo de fazer com que todos os demais pertençam podem muito bem ser as formas mais amplamente difundidas de fanatismo (...). Creio que a essência do fanatismo reside no desejo de forçar as outras pessoas a mudarem."

O que deve ser advertido nesse contexto é que excessos na disciplina estatal sobre a vida das pessoas também pode causar danos à saúde..., à saúde do Estado Democrático de Direito.


(*) Alexandre Santos de Aragão é professor de Direito Administrativo da UERJ e doutor em Direito do Estado pela USP.

Fonte: Revista Consultor Jurídico de 21 de julho de 2011.

quinta-feira, 28 de julho de 2011

Os republicanos contra o mundo

Por Jim Lobe

(Washington, Estados Unidos, 25/7/2011)

Os Estados Unidos cancelarão a ajuda externa que enviam para Bolívia, Equador, Nicarágua e Venezuela, e cessará toda contribuição à Organização dos Estados Americanos (OEA), caso influentes legisladores do opositor Partido Republicano consigam seu objetivo. Os legisladores republicanos do Comitê de Relações Exteriores da Câmara de Representantes trabalham febrilmente para incorporar dezenas de reformas ao projeto de lei que autoriza o orçamento do Departamento de Estado para 2012, com a esperança de eliminar pelo menos US$ 6 bilhões do total de US$ 51 bilhões solicitados pelo presidente Barack Obama.

No dia 20, os republicanos votaram a favor de eliminar toda contribuição de Washington à OEA, um símbolo do domínio norte-americano neste hemisfério há mais de 60 anos. Também votaram pela redução de 25% da ajuda dos Estados Unidos à Organização das Nações Unidas (ONU) e pela eliminação da assistência a todos os países que votarem contra Washington mais da metade das vezes na ONU.

Além disso, pretendem proibir a ajuda ao Paquistão, a menos que o Departamento de Estado certifique que esse país coopera plenamente contra o terrorismo. No dia 21, enquanto Washington e grande parte dos Estados Unidos sofriam uma onda de calor de 38ºC, votaram pela eliminação de US$ 650 milhões de um fundo de ajuda aos países em desenvolvimento para adaptação à mudança climática mundial. Também votaram pela proibição de que os Estados Unidos concedam fundos a qualquer organização estrangeira, governamental ou não, que promova, realize ou forneça informações sobre métodos de aborto, inclusive a pacientes portadores do vírus HIV, causador da aids.

É muito provável que a versão atual do projeto de lei não seja aprovada pelo Senado – com maioria democrata – ou que não supere o veto quase certo de Obama. Entretanto, é pelo menos reveladora da trajetória de política externa do Partido Republicano, que tem boas possibilidades de obter a maioria no Senado nas eleições do ano que vem, embora não as tenha quanto à recuperação da Presidência.

A hostilidade contra o resto do mundo, exibida por alguns legisladores republicanos na semana passada, levou o membro mais destacado do Partido Democrata no comitê, Howard Berman, a advertir que não se deve apoiar a postura de um “Estados Unidos fortaleza” adotada por muitos republicanos na década de 1930, contrários à entrada do país na Segunda Guerra Mundial. Outros democratas criticaram o “isolacionismo” do partido de oposição.

“Eu proporia uma reforma para nos retirarmos do mundo, construir um fosso em volta dos Estados Unidos e colocar uma cúpula” sobre o país, sugeriu, irônico, o democrata Gary Ackerman. “Isto é ridículo”, afirmou quando o representante da Flórida, Connie Mack, propôs que os Estados Unidos se retirassem da OEA. “É uma loucura. E mais ainda, é perigoso”, alertou.

Mack preside o subcomitê do Hemisfério Ocidental e também propôs negar ajuda à Venezuela e aos demais governos latino-americanos que considera aliados de Caracas. Também acusou a OEA (vista em toda a América como instrumento multilateral para preservar a hegemonia de Washington e cuja tarefa primordial ultimamente é a de observadora de eleições) de estar “decidida a destruir a democracia na América Latina”. A proposta de cancelar a contribuição anual de US$ 48,5 milhões dos Estados Unidos, que é uma obrigação de Washington, segundo o tratado da OEA – como mencionaram alguns democratas – foi aprovada por 22 votos a favor e 20 contra.

O Oriente Médio, ou mais precisamente a parte árabe do Oriente Médio, não teve melhor sorte. O comitê impôs fortes condições à ajuda norte-americana para os países árabes, enquanto confirmou a destinação anual de assistência militar e empréstimos a Israel no valor de US$ 3 bilhões. Na verdade, algumas propostas, como a mudança da embaixada dos Estados Unidos em Israel para a disputada cidade de Jerusalém, parecem redigidas pelo partido de governo de Israel, o direitista Likud.

O projeto da presidente do comitê, a representante da Flórida Ileana Ros Lehtinen, proíbe ajuda ao Egito e ao Iêmen com fins de segurança, a menos que Obama assegure que seus governos não estão sob o controle de uma “organização terrorista estrangeira”. O Egito também deverá cumprir na totalidade os termos dos acordos de paz de Camp David (1979) com Israel e “destruir os túneis utilizados para contrabandear materiais para Gaza”.

A iniciativa também proíbe assistência ao Líbano e à Autoridade Nacional Palestina (ANP) até que Obama confirme que nem o Hezbolá (Partido de Deus) nem o Hamas (Movimento de Resistência Islâmica) ocupam cargos em “ministério, agência” ou organismos “de governo”. No caso da ANP, Obama também deverá certificar que a mesma atue contra a “infraestrutura extremista em Gaza e que reconheça o direito de Israel existir como um Estado judeu”.

Os republicanos “acumularam más ideias, ressentimento, demência e indiferença pelo interesse nacional esta semana”, escreveu, no dia 21, em sua conta no Twitter, Marc Lynch, analista da política no Oriente Médio na Universidade de George Washington. O projeto de lei também nega ao Paquistão assistência civil ou de segurança, a menos que o secretário de Estado garanta que Islamabad coopera plenamente com as operações antiterroristas dos Estados Unidos. Atualmente, Washington entrega mais de US$ 3 bilhões ao ano de ajuda ao governo paquistanês.

“Creio que a perspectiva de cancelamento da ajuda chamará sua atenção e que, finalmente, acabarão os jogos que fazem com nossa segurança”, afirmou Lehtinen. E acrescentou que Obama teria a faculdade de não aplicar as reduções a esses países se considerar que a medida favorece “interesses vitais de segurança nacional” dos Estados Unidos e se puder garantir que nenhum receptor da ajuda norte-americana em matéria de segurança “integre ou esteja associado a uma organização terrorista estrangeira”.

Com o fim de reduzir o déficit do governo federal, o projeto também limita o valor da ajuda econômica e para o desenvolvimento dos países pobres abaixo do nível de 2010, e, entre outros cortes nas operações da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (Usaid), elimina o escritório de orçamento que supervisiona o gasto.

Ken Forsberg, da InterAction, uma aliança de 200 grupos humanitários que trabalham nos países em desenvolvimento, disse que as medidas são “contraproducentes”. E advertiu que “quando cada dólar deve ser considerado como nunca, eliminar o escritório de orçamento da Usaid nos leva pelo caminho equivocado”.

Fonte: Envolverde/IPS

terça-feira, 26 de julho de 2011

A crise ideológica do capitalismo ocidental

Realmente precisamos de outro experimento custoso com ideias que fracassaram repetidamente? Não deveríamos precisar, no entanto, parece cada vez mais que teremos que suportar outro fracasso. Um fracasso na Europa ou nos Estados Unidos para voltar ao crescimento sólido seria ruim para a economia mundial. Um fracasso em ambos os lugares seria desastroso – inclusive se os principais países emergentes conseguirem um crescimento autossustentável. Lamentavelmente, a menos que prevaleçam as mentes sábias, este é o caminho para o qual o mundo se dirige.
Por Joseph Stiglitz

Há apenas alguns anos atrás, uma poderosa ideologia – a crença nos mercados livres e sem restrições – levou o mundo à beira da ruína. Mesmo em seus dias de apogeu, desde o princípio dos anos oitenta até o ano de 2007, o capitalismo desregulado ao estilo estadunidense trouxe maior bem estar material só para os mais ricos no país mais rico do mundo. De fato, ao longo dos 30 anos de ascensão desta ideologia, a maioria dos estadunidenses viram suas receitas diminuir ou estancar ano após ano.

Mais do que isso, o crescimento da produção nos Estados Unidos não foi economicamente sustentável. Com tanto da receita nacional dos EUA sendo destinada para tão poucos, o crescimento só podia continuar por meio do consumo financiado por uma crescente acumulação da dívida. Eu estava entre aqueles que esperavam que, de alguma maneira a crise financeira pudesse ensinar aos estadunidenses (e a outros) uma lição acerca da necessidade de maior igualdade, uma regulação mais forte e um melhor equilíbrio entre o mercado e o governo. Desgraçadamente, isso não ocorreu. Ao contrário, um ressurgimento da economia da direita, impulsionado como sempre, por ideologia e interesses especiais, uma vez mais ameaça a economia mundial – ou, ao menos, as economias da Europa e dos EUA, onde estas ideias continuam florescendo.

Nos EUA, este ressurgimento da direita, cujos partidários, evidentemente, pretendem derrogar as leis básicas da matemática e da economia, ameaça provocar uma moratória da dívida nacional. Se o Congresso ordena gastos que superam as receitas, haverá um déficit e esse déficit deve ser financiado. Em vez de equilibrar cuidadosamente os benefícios da cada programa de gasto público com os custos de aumentar os impostos para financiar tais benefícios, a direita procura utilizar um pesado martelo – não permitir que a dívida nacional aumente, forçando os gastos a limitarem-se aos impostos.

Isso deixa aberta a interrogação sobre quais gastos terão prioridade – e se os gastos para pagar juros da dívida nacional não forem prioridade, uma moratória é inevitável. Além disso, cortar os gastos agora, em meio de uma crise em curso provocada pela ideologia de livre mercado, simples e inevitavelmente só prolongaria a recessão.

Há uma década, em meio a um período de auge econômico, os EUA enfrentavam um superávit tão grande que ameaçou eliminar a dívida nacional. Reduções de impostos insustentáveis e guerras, uma recessão importante e crescentes custos de atenção com saúde – impulsionados em parte pelo compromisso da administração de George W. Bush de outorgar às companhias farmacêuticas liberdade para a fixação de preços, inclusive com dinheiro do governo em jogo – rapidamente transformaram um enorme superávit em déficits recordes em tempos de paz.

Os remédios para o déficit dos EUA surgem imediatamente deste diagnóstico: os EUA devem trabalhar para estimular sua economia; deve-se por um fim às guerras sem sentido; controlar os custos militares e com medicamentos; aumentar impostos, ao menos para os mais ricos. Mas a direita não quer saber nada disso e está pressionando para obter ainda mais reduções de impostos para as corporações e os ricos, juntamente com os cortes de gastos em investimentos e proteção social, o que coloca o futuro da economia dos EUA em perigo e destrói o que resta do contrato social. Enquanto isso, o setor financeiro dos EUA pressiona fortemente para libertar-se das regulações, para que possa voltar às suas anteriores práticas desastrosas e despreocupadas.

Mas as coisas estão um pouco melhores na Europa. Enquanto a Grécia e outros países enfrentam crises a medicina em voga consiste simplesmente em pacotes de austeridade e privatização desgastados pelo tempo, os quais só deixarão os países que os adotarem mais pobres e vulneráveis. Esse remédio fracassou no leste da Ásia, na América Latina e em outros lugares e fracassará também na Europa. De fato, já fracassou na Irlanda, Letônia e Grécia.

Há uma alternativa: uma estratégia de crescimento econômico apoiada pela Uniçao Europeia e pelo Fundo Monetário Internacional. O crescimento restauraria a confiança de que a Grécia poderia pagar suas dívidas, fazendo com que as taxas de juros baixem e deixando mais espaço fiscal para mais investimentos que propiciem o crescimento. O crescimento por si mesmo aumenta as receitas por meio dos impostos e reduz a necessidade de gastos sociais, como o pagamento de seguro desemprego, por exemplo. Além disso, a confiança que isso engendra conduz a mais crescimento ainda.

Lamentavelmente, os mercados financeiros e os economistas de direita entenderam o problema exatamente ao contrário. Eles acreditam que a austeridade produz confiança e que a confiança produz crescimento. Mas a austeridade solapa o crescimento, piorando a situação fiscal do governo ou ao menos produzindo menos melhorias que as prometidas pelos promotores da austeridade. Em ambos os casos, se solapa a confiança e uma espiral descendente é posta em marcha.

Realmente precisamos de outro experimento custoso com ideias que fracassaram repetidamente? Não deveríamos precisar, no entanto, parece cada vez mais que teremos que suportar outro fracasso. Um fracasso na Europa ou nos Estados Unidos para voltar ao crescimento sólido seria ruim para a economia mundial. Um fracasso em ambos os lugares seria desastroso – inclusive se os principais países emergentes conseguirem um crescimento autossustentável. Lamentavelmente, a menos que prevaleçam as mentes sábias, este é o caminho para o qual o mundo se dirige.

(*) Joseph Stiglitz foi Prêmio Nobel de Economia em 2001

Tradução: Katarina Peixoto

sexta-feira, 22 de julho de 2011

Governo Dilma ainda terá que reconhecer inviabilidade do atual modelo econômico

Por Guilherme C. Delgado

A economia brasileira, a julgar pelos investimentos que vêm crescendo mais rapidamente na última década, deverá se expandir no quadriênio do governo Dilma, puxada por três demandas estratégicas principais: os programas de energia do PAC (petróleo e hidroeletricidade), os planos de safra anuais da agricultura e os investimentos em infra-estrutura ligados à Copa do Mundo e Olimpíadas. Esses três “setores” seriam como que responsáveis por alavancar o conjunto do sistema econômico, crescendo à frente dos demais, mediante aplicação de investimentos que supostamente estariam elevando a produção e a produtividade do trabalho no conjunto da economia. Esta é a aposta dos ‘desenvolvimentistas’ do governo, para o que contam com um cenário externo favorável, que confirme tais demandas. Crises externas mais graves cortariam esse ciclo de crescimento, pelas razões adiante expostas.

Por outro lado, as bases materiais sobre as quais se apóiam as apostas do desenvolvimento dependem fortemente do ingresso de capital estrangeiro para financiar megaprojetos de inversão e de demanda externa por “commodities”. Essa demanda externa (exportação de mercadorias) cumpre o papel de solvência parcial à remuneração do conjunto do capital estrangeiro operante ou em trânsito no país.

Se atentarmos para a estrutura econômica dos setores que já crescem à frente dos demais há alguns anos, veremos que há certo denominador comum presente na produção do petróleo, da hidroeletricidade, do agronegócio e também da mineração. Todos esses ramos produtivos operam com base em monopólio de recursos naturais, que nas suas dotações originais independem de investimentos ou de aplicação do trabalho humano para produzi-los.

Dada a atual configuração da inserção do Brasil no comércio mundial, os recursos naturais passaram a figurar como vetor principal de competitividade externa. O pressuposto dessa competitividade, baseada em estoques finitos de recursos naturais, é preocupante por varias razões. As matérias-primas aí produzidas apresentam baixa agregação de trabalho humano; há forte pressão por super-exploração dos recursos naturais em curto prazo; e a inovação técnica de ponta no sistema industrial fica relativamente relegada a segundo plano (exceto no caso do petróleo/Pré-sal) porque os ganhos de produtividade do subsistema exportador estão muito mais ligados às chamadas vantagens comparativas naturais.

Temos uma armadilha grave nesse quadro estratégico. Competitividade externa de “commodities” agrícolas e minerais, apoiada no argumento da produtividade da terra e das jazidas minerais disponíveis, sustenta um processo de acumulação de capital no conjunto da economia fortemente dependente de capital-estrangeiro. A resultante inevitável é superexploração de jazidas e terras novas e/ou intensificação do pacote técnico agroquímico nas zonas já exploradas, para obter maior fatia no mercado externo de produtos primários. Esse arranjo não é sustentável em médio prazo, econômica e ecologicamente. Os tais ganhos de produtividade exportados em minerais, petróleo, carnes, grãos, etanol etc. tendem e se extinguir no tempo com a dilapidação paulatina dos recursos naturais não renováveis.

Por outro lado, o perfil distributivo deste modelo não é menos perverso. Os ganhos de produtividade na fase expansiva das “commodities” viram renda da terra e do capital, capturadas privadamente pelos proprietários de terras, jazidas e do capital. Porém, os custos sociais e ambientais da superexploração desses recursos e do trabalho precarizado envolvido são da sociedade como um todo. Compensações se tornam necessárias, mas não seria remédio suficiente para suprir a renda da força de trabalho e os custos sociais degradantes do trabalho e do meio ambiente.

Este quadro econômico de produção e repartição do excedente econômico evidentemente não se compraz com democracia política e social. Não está claro que o governo atual tenha clareza de sua não sustentabilidade em médio prazo. O sistema tributário e a política social provavelmente teriam que extrair e redistribuir uma parcela muito grade da renda da terra e do capital para suprir necessidades básicas; e ainda que o fizessem não resolveriam o problema de fundo. Mas como fazê-lo se esse sistema estiver sob controle político dos donos da riqueza?

Em síntese, é necessário questionar seriamente o padrão de crescimento econômico ora em curso, não pela ótica conservadora da estabilização monetária pura e simples, mas pela ótica das necessidades básicas dos trabalhadores e da população em seu conjunto, cujos empregos, direitos sociais e outras formas de participação no bolo econômico ficam seriamente comprometidas pela receita que está sendo aplicada pelos mestres de culinária do crescimento econômico com base em dependência externa e recursos primários.

Guilherme Costa Delgado é doutor em economia pela UNICAMP e consultor da Comissão Brasileira de Justiça e Paz.


segunda-feira, 18 de julho de 2011

Derrota dos EUA: vitória de Humala desfaz Aliança do Pacífico

Por Immanuel Wallerstein


Ollanta Humala foi eleito presidente do Peru em 5 de junho de 2011. O único verdadeiro derrotado nestas eleições foram os Estados Unidos, cuja embaixadora, Rose Likins, mal conseguiu disfarçar o fato de ter feito campanha pela adversária de Humala no segundo turno, Keiko Fujimori. Que estava em jogo nestas cruciais eleições latino-americanas?

O Peru é um país-chave na geopolítica da América do Sul por várias razões: o seu tamanho, o seu legado do império Inca, a sua localização como uma das fontes do Rio Amazonas, os seus portos no Oceano Pacífico, e a sua história recente como o palco de uma importante luta entre forças nacionalistas e elites pró-americanas.

Em 1924, Vitor Raúl Haya de la Torre, um intelectual peruano e marxista – de um marxismo bastante heterodoxo - fundou a Aliança Revolucionária Popular Americana (APRA), com a intenção de a tornar numa organização anti-imperialista pan-americana. A APRA floresceu no Peru, apesar de ter sido severamente reprimida. O que a APRA tinha de original, e diferente da maior parte dos movimentos de esquerda nas Américas, era a sua compreensão de que a maioria do campesinato do Peru era composta de povos indígenas de fala quechua que tinham sido sistematicamente excluídos da participação política e dos direitos culturais. Depois de 1945, a APRA começou a perder um pouco do seu viés radical, mas manteve uma base popular forte. Só a morte de Haya de la Torre evitou a sua eleição como presidente em 1980.

Os governos de Peru permaneceram em mãos conservadoras até 1968, quando escândalos motivados pelos contratos de petróleo foram a faísca de um golpe militar desferido por oficiais nacionalistas dirigidos pelo General Juan Velasco Alvarado. Eles apoderaram-se do poder e instauraram um Governo Revolucionário das Forças Armadas.

O governo Velasco nacionalizou as jazidas de petróleo e múltiplos outros setores da economia. Investiu pesadamente na educação. Mais do que isso, tornou-a bilíngüe, elevando o quechua a um estatuto de igualdade com o castelhano. O governo lançou programas de reforma agrária e de industrialização para substituir as importações.

A sua política externa virou acentuadamente à esquerda. O Peru cultivou boas relações com Cuba e comprou equipamento militar à União Soviética. Depois de Pinochet derrubar o governo Allende no Chile em 1973, as relações entre o Peru e o Chile tornaram-se tensas. Falou-se mesmo de guerra, até que, em 1975, Velasco Alvarado foi deposto por forças militares conservadoras. E o Peru pôs assim fim ao seu período de sete anos de nacionalismo liderado por militares, com um programa socioeconómico de esquerda.

Quando Alan García, como líder da APRA, foi eleito presidente em 1985, retomou brevemente a tradição de esquerda propondo uma moratória na dívida externa. Mas este esforço foi bloqueado, e logo García virou à direita e abraçou o neoliberalismo. O Peru nesta época enfrentou várias insurreições, a mais famosa das quais foi a do Sendero Luminoso, que tinha a sua base nas regiões andinas dos camponeses Quechua e Aymara.

Nas eleições de 1990, um então já muito impopular García enfrentou o famoso escritor, pensador conservador e aristocrata Mario Vargas Llosa, que se candidatou apresentando uma plataforma económica puramente neoliberal. Inesperadamente, um peruano pouco conhecido de origem japonesa, Alberto Fujimori, derrotou as outras duas alternativas. A força de Fujimori derivava em grande parte da rejeição por parte do eleitorado do estilo aristocrático de Vargas Llosa.

Fujimori revelou um estilo duro e ditatorial, e usou com sucesso o exército para esmagar o Sendero Luminoso, assim como grupos insurreccionais urbanos. Para garantir o poder, Fujimori não hesitou em fechar o Congresso, interferir no poder judiciário, e ampliar o seu segundo mandato. Mas o elevado grau de corrupção e de poder arbitrário levaram ao seu derrube. Fujimori fugiu para o Japão. Mais tarde foi extraditado do Chile, julgado pelos seus crimes num tribunal peruano, e condenado a uma longa pena de prisão.

O seu sucessor em 2001, Alejandro Toledo, deu continuidade ao programa neoliberal. E, em 2006, Alan García candidatou-se novamente à Presidência. Enfrentou um ex-oficial militar, Ollanta Humala, que foi abertamente apoiado por Hugo Chávez, um apoio que prejudicou as suas perspectivas, bem como os ataques que sofreu à sua prática como oficial de exército no que dizia respeito aos direitos humanos. García ganhou, e prosseguiu e ampliou a via neoliberal. A economia floresceu devido ao boom mundial de exportações de energia e de minérios. Mas a massa da população ficou alheia aos benefícios. Tipicamente, o governo permitiu que corporações transnacionais se apoderassem de terras na região amazônica para explorar os seus recursos minerais. Os movimentos indígenas resistiram, e ocorreu um massacre em Junho de 2009, chamado o Baguazo.

Foi neste último período que o Peru se tornou o centro de duas disputas geopolíticas. Uma foi entre o Brasil e os Estados Unidos. Sob a presidência de Lula, o Brasil lutara com êxito considerável para promover a autonomia sul-americana, através da construção de estruturas regionais como a UNASUL e o Mercosul. Os Estados Unidos procuraram contrariar o programa do Brasil criando a Aliança do Pacífico do México, da Colômbia, do Chile e do Peru, baseada em acordos de livre-comércio com os Estados Unidos. Além disso, a Colômbia, o Peru, e o Chile promoveram um projecto de criação de uma bolsa de valores integrada, cuja sigla em espanhol é MILA. E as forças armadas do Peru ligaram-se ativamente ao Comando Sul do Exército dos Estados Unidos.

A segunda disputa geopolítica foi entre a China e os Estados Unidos na busca de obter acesso privilegiado aos minérios e aos recursos energéticos da América do Sul. O Peru mais uma vez foi um país-chave.

Houve três fatores que levaram à vitória de Humala nestas eleições de 2011. Por um lado, Humala virou-se aberta e publicamente para uma via social-democrata à brasileira. Não fez qualquer menção a Chávez. Humala encontrou-se muitas vezes com Lula e falou de o Peru se tornar "um parceiro estratégico" do Mercosul.

O segundo fator decisivo foi o apoio muito forte que recebeu de Vargas Llosa. O aristocrata conservador disse que para o Peru seria uma catástrofe eleger a filha de Fujimori, que libertaria o pai da prisão e daria continuidade aos seus métodos pouco recomendáveis. Vargas Llosa provocou uma séria divisão nas forças conservadoras.

O terceiro fator foi a atitude da esquerda peruana, que há muito tempo tinha reservas em relação a Humala. Como Oscar Ugarteche, um importante intelectual, escreveu para agência de imprensa latino-americana Alai-AmLatina, "para todos, Humala é uma interrogação, mas Fujimori é uma certeza."

Ugarteche resumiu a eleição dizendo que "o que é mais significativo, contudo, é o regresso do Peru à América do Sul." Veremos até que ponto Humala será capaz de chegar em termos de redistribuição de rendimentos e de restauração dos direitos da maioria indígena. Mas a contra-ofensiva geopolítica dos Estados Unidos, a Aliança do Pacífico, está desfeita.

(*) Tradução, revista pelo autor, de Luis Leiria para o Esquerda.net

domingo, 17 de julho de 2011

O futuro do Brasil

Por Paulo Passarinho


“Não há pior veneno para o futuro nacional do que o desânimo que acompanha a perda de esperança da juventude quanto ao país. Explicitar um projeto nacional é prioridade para a preservação da identidade e da auto-estima do Brasil; exige colocar o presente do país em pauta. Um projeto nacional é sempre percebido e adotado em parte pelos atores sociais que preconizam mudanças mais ou menos acentuadas em dimensões estruturais e comportamentais de uma sociedade nacional. Obriga os conservadores a saírem da casca; cria uma diferenciação entre aqueles que querem preservar intacto o status quo e aqueles que admitem - via negociação - adaptações e transformações parciais. Pensar o futuro ilumina o presente; restaura esperanças e dá substância à retórica democrática convertendo-a em prática substantiva social e política”.

Apresento essa epígrafe, extraída do texto do último artigo do professor Carlos Lessa, publicado no jornal Valor Econômico, em 6 de julho deste ano, para evidenciar, mais uma vez, a importância de um projeto nacional para o Brasil. Lessa, nesse artigo, nos lembra a trajetória de alguns dos poucos países da economia globalizada do início do século XXI que lograram construir projetos de nação dignos desse nome. A partir dos primeiros passos da revolução industrial iniciada na Inglaterra, no século XVIII, poucos países conseguiram de fato se constituir em nações soberanas na definição de suas prioridades. Além da própria Inglaterra, apenas a França, os Estados Unidos, a Alemanha, o Japão e agora, já no século XX, a Rússia, a China e a Índia podem ser considerados países portadores de definições estratégicas e condições para a afirmação soberana de seus destinos.

O Brasil é um país que potencialmente teria todas as condições para já estar incluído nesse seleto grupo. Para tanto, é importante esclarecer, não nos bastaria vontade e condições políticas adequadas. As dimensões territorial e populacional, as especificidades vinculadas às possibilidades para a produção de alimentos e a geração de energia são, por exemplo, variáveis essenciais para uma determinada nação almejar o objetivo de atingir um grau de autonomia que lhe livre da dependência estrutural a outros países. Em relação a essas variáveis, o Brasil talvez seja o país que reúna as melhores condições, junto com os Estados Unidos, para pensar e definir uma estratégia nacional, com o objetivo de construir um modelo específico, adequado às nossas necessidades e peculiaridades, de desenvolvimento econômico, social e cultural. Um modo brasileiro de vida.

Ao contrário do Brasil, os Estados Unidos fez a sua opção radical, de romper com a potência imperial de então, a Inglaterra, envolvendo inclusive um conflito bélico, e ousar a construção de uma nação soberana, ainda no século XVIII. Sem entrar no mérito sobre a natureza do modelo adotado por eles – baseado na guerra e na radical defesa de sua moeda, como forma de defesa de sua economia nacional – a realidade é que eles foram exitosos em seus objetivos.

Aqui no Brasil, ao contrário, a renúncia a uma perspectiva séria de soberania sempre foi a tônica do comportamento de nossas elites. Apenas no século passado, e a partir das contradições da crise global capitalista dos anos 30, é que começamos a engatinhar em torno da idéia de construir uma nação soberana. Contudo, de forma extremamente mambembe. O projeto nacional-desenvolvimentista, que sequer foi capaz de efetivar uma verdadeira reforma agrária, foi na prática atropelado por um desenvolvimentismo associado ao capital estrangeiro, cujo ápice se deu no golpe civil-militar de 1964.

Posteriormente, quando restabelecemos um regime de liberdades democráticas formais, já nos anos 80, o desenvolvimentismo encontrava-se em xeque, por conta do endividamento externo e pela própria pressão do capital financeiro global, em favor das políticas de abertura e privatizações em favor de corporações privadas.

A eleição de Collor, em 1989, nos jogou definitivamente na aventura dos financistas. Os governos de FHC azeitaram o modelo inaugurado de forma atabalhoada por Collor, com as mudanças constitucionais e o arranjo institucional impulsionado pelo PSDB e seus aliados. Entretanto, as sucessivas crises do capitalismo global na segunda metade dos anos 90 colocaram o modelo neoliberal na berlinda, não somente aqui no Brasil, mas especialmente em toda a América Latina, região onde esse modelo havia se implantado com força.

Foi nesse contexto que, em 2002, Lula, o PT e os seus aliados chegaram ao governo federal. Contudo, ao contrário do que se poderia esperar, os novos governantes se adaptaram rapidamente ao credo dos seus antigos adversários políticos. A nomeação de um alto executivo de um banco americano para a presidência do Banco Central, em decisão anunciada em Washington, foi apenas o início de uma profunda metamorfose explícita dos novos governantes, antiga vanguarda na luta contra o projeto dos bancos e transnacionais.

Com a expansão dos fluxos de comércio internacional que caracterizou a primeira década do século XXI, impulsionada pela demanda asiática - e especialmente chinesa - por alimentos e matérias-primas, houve uma extraordinária melhoria em nossas contas externas, propiciando ao governo avançar em políticas de transferência de renda aos miseráveis, reajustes reais ao salário-mínimo e a ampliação do mercado de crédito, particularmente para setores pobres que jamais haviam tido esse tipo de acesso.

Lula e seus aliados, dessa forma, conseguiram dar popularidade ao modelo que, em 2002, se encontrava politicamente derrotado. Mantendo e ampliando a abertura financeira, não alterando e inovando a política de privatizações, não revendo as mudanças constitucionais patrocinadas por FHC e abandonando bandeiras históricas, como a reforma agrária, a mudança do modelo agrícola e a reforma tributária em prol dos trabalhadores, o Brasil de hoje nunca esteve tão distante da perspectiva de um modelo nacional, democrático e popular.

Mais grave: dada a conversão política e ideológica do PT e de seus aliados, fortaleceu-se a apologia – quase sem contestações – de que o Brasil está no rumo certo. A mídia dominante, junto com a demagogia e manipulação dos governantes, proclama aos quatro ventos a emergência do país no cenário internacional, um extraordinário processo de distribuição de rendas e um ufanismo que não resiste a nenhuma avaliação mais séria, menos apaixonada e isenta dos oportunismos de ocasião.

A acelerada desnacionalização produtiva; o endividamento galopante do Estado, das empresas e das famílias; a reprimarização de nossas exportações ou a transformação do setor industrial, cada vez mais dependente da importação de peças e componentes, parecem não ter importância alguma.

Nosso futuro, dado o enorme retrocesso em que nos encontramos – na perspectiva de um modelo soberano de país – dependerá da capacidade dos setores que não se renderam à guinada do PT e de seus aliados sensibilizarem e terem a capacidade de organizar novas lutas, em torno de um projeto nacional a ser assumido por amplas parcelas dos trabalhadores e de nossa juventude.

Vivemos hoje, no país, o ocaso da esperança de mudanças que uma geração de políticos e lutadores populares alimentou por anos, mas que não foi capaz, na hora decisiva, de ser fiel aos desafios que se colocaram para uma ruptura que era esperada.

Somente a construção de um novo projeto nacional - que recupere a importância de nossa soberania, a necessidade de uma democracia exercida pelo povo (e não pelos donos do dinheiro) e coloque a defesa do bem-estar dos trabalhadores como questões inalienáveis - poderá recuperar a defesa da política como instrumento de mudanças, e resgatar a juventude para as lutas políticas que se fazem necessárias.

Uma oportunidade histórica ímpar se perdeu. E, nesse sentido, o alerta de Carlos Lessa ganha destaque e importância. Mais que nunca, o nosso futuro dependerá das possibilidades e perspectivas a serem construídas junto a nossa juventude.

Paulo Passarinho é economista e membro do Conselho Regional de Economia do Rio de Janeiro.

Fonte: Correio da Cidadania

terça-feira, 12 de julho de 2011

Artigo de Slavoj Žižek: Cibermundo S/A

Slavoj Žižek

Dizem que, na China, a maldição lançada quando realmente se detesta alguém é: “Que você viva em tempos interessantes!” Em nossa história, “tempos interessantes” são, efetivamente, as épocas de agitação, guerra e luta pelo poder em que milhões de espectadores inocentes sofrem as consequências. Nos países desenvolvidos, nos aproximamos claramente de uma nova época de tempos interessantes. Depois das décadas (da promessa) de Estado do bem-estar social em que os cortes financeiros se limitavam a breves períodos e se apoiavam na promessa de que tudo logo voltaria ao normal, entramos num novo período em que a crise – ou, melhor, um tipo de estado de emergência econômica -, com a necessidade de todos os tipos de medidas de austeridade (corte de benefícios, redução dos serviços gratuitos de saúde e educação, empregos cada vez mais temporários, etc.), é permanente e se transforma em constante, tornando-se simplesmente um modo de viver. Além disso, hoje as crises ocorrem em ambos os extremos da vida econômica e não no núcleo do processo produtivo: ecologia (externalidade natural) e pura especulação financeira. Por isso é importantíssimo evitar a solução simples do senso comum: “Temos de nos livrar dos especuladores, pôr ordem nisto aqui, e a verdadeira produção continuará”; a lição do capitalismo é que, aqui, as especulações “irreais” são o real; se as esmagamos, a realidade da produção sofre.

Essas mudanças não podem deixar de abalar a confortável posição subjetiva dos intelectuais radicais. No tratamento psicanalítico, aprendemos a esclarecer nossos desejos: quero mesmo essa coisa que quero? Vejamos o famoso caso do marido envolvido numa apaixonada relação extraconjugal que sonha o tempo todo com o momento em que a esposa desaparecerá (morrerá, se divorciará dele ou o que for) para então viver por inteiro com a amante; quando isso finalmente acontece, todo o seu mundo desmorona, ele descobre que também não quer a amante. Como diz o velho ditado, há coisa pior do que não conseguir o que se quer: realmente conseguir. Agora os acadêmicos esquerdistas se aproximam de um desses momentos de verdade: queriam mudanças reais? Pois tomem! Em 1937, George Orwell, em O Caminho Para Wigan Pier, caracterizou com perfeição essa atitude ao ressaltar “o fato importante de que toda opinião revolucionária tira parte da sua força da convicção secreta de que nada pode ser mudado”: os radicais invocam a necessidade de mudança revolucionária como um tipo de sinal supersticioso que levará a seu oposto, impedir que a mudança realmente ocorra. Quando acontece, a revolução tem de ocorrer a uma distância segura: Cuba, Nicarágua, Venezuela… De modo que, embora meu coração se anime ao pensar nos eventos distantes, eu possa continuar promovendo minha carreira acadêmica.

Essa nova situação não exige, de modo algum, que abandonemos o trabalho intelectual paciente sem nenhum “uso prático” imediato: hoje, mais do que nunca, é preciso não esquecer que o comunismo começa com o que Kant chamou de “uso público da razão”, com o pensamento, com a universalidade igualitária do pensamento. Quando diz que, do ponto de vista cristão, “não há homens nem mulheres, não há judeus nem gregos”, Paulo afirma que raízes étnicas, identidade nacional, etc., não são uma categoria da verdade; para usar termos kantianos exatos, quando refletimos sobre nossas raízes étnicas praticamos o uso privado da razão, restrito por pressupostos dogmáticos contingentes, isto é, agimos como indivíduos “imaturos”, não como seres humanos livres que se concentram na dimensão da universalidade da razão. Para Kant, o espaço público da “sociedade civil mundial” designa o paradoxo da singularidade universal, de um sujeito singular que, num tipo de curto-circuito e contornando a mediação do particular, participa diretamente do universal. Nesse ponto de vista, o “privado” não é a matéria-prima de nossa individualidade oposta aos laços comunitários, mas a própria ordem institucional-comunitária de nossa identificação particular.

A luta, portanto, deveria se concentrar nos aspectos que constituem uma ameaça ao espaço público transnacional. Parte desse impulso global rumo à privatização do “intelecto global” é a tendência recente de organizar o ciberespaço rumo à chamada “computação em nuvem”. Há uma década, o computador era uma caixa grande em cima da mesa, e a transferência de arquivos se fazia com discos flexíveis e pen drives; hoje, não precisamos mais de computadores individuais potentes, já que a computação em nuvem se baseia na internet, isto é, os programas e as informações são fornecidos aos computadores ou celulares inteligentes sempre que necessário, disfarçados de ferramentas ou aplicativos baseados na internet que os usuários podem acessar e usar por meio de navegadores como se fossem programas instalados no computador. Dessa maneira, podemos ter acesso às informações onde quer que estejamos pelo mundo, em qualquer computador, e os celulares inteligentes põem esse acesso literalmente em nosso bolso. Já participamos da computação em nuvem quando realizamos buscas e obtemos milhões de resultados numa fração de segundo; o processo de busca é feito por milhares de computadores interligados que compartilham recursos na nuvem. Do mesmo modo, o Google Books torna disponíveis milhões de livros digitalizados, a qualquer momento, em qualquer lugar do mundo. Sem falar do novo nível de socialização criado pelos celulares inteligentes que combinam telefone e computador: hoje, um celular desses tem um processador mais potente do que um computador-caixona de dois anos atrás e ainda está ligado à internet, de modo que, além de ter acesso a um volume imenso de dados e programas, também posso trocar instantaneamente mensagens de voz e videoclipes, coordenar decisões coletivas, etc.

No entanto, esse novo mundo maravilhoso é apenas um lado da história, que lembra aquelas famosas piadas de médico sobre “primeiro a notícia boa, depois a má”. Os usuários, portanto, acessam programas e arquivos guardados bem longe, em salas climatizadas com milhares de computadores – ou, para citar um texto de propaganda da computação em nuvem: “Os detalhes são subtraídos aos consumidores, que não têm mais necessidade de conhecer nem controlar a infraestrutura da tecnologia ‘na nuvem’ que lhes dá suporte”. Aqui, duas palavras são reveladoras: subtração e controle; para gerenciar a nuvem, é preciso que haja um sistema de monitoração que controle seu funcionamento, e, por definição, esse sistema está escondido do usuário. O paradoxo, portanto, é que, quanto mais personalizado, fácil de usar, “transparente” no seu funcionamento for o pequeno item (celular inteligente ou portátil minúsculo) que tenho na mão, mais toda a configuração tem de se basear no trabalho feito em outro lugar, num vasto circuito de máquinas que coordenam a experiência do usuário; quanto mais essa experiência é não alienada, mais é regulada e controlada por uma rede alienada.

É claro que isso serve para qualquer tecnologia complexa: o usuário não faz ideia de como funciona o televisor com controle remoto; no entanto, aqui o degrau a mais é que não apenas a tecnologia como também a escolha e a acessibilidade do conteúdo são controladas. Ou seja, a formação de “nuvens” é acompanhada pelo processo de integração vertical: uma única empresa ou corporação possui cada vez mais todos os níveis do cibermundo, desde o hardware individual (computador, celulares…) e o hardware da “nuvem’ (armazenamento dos programas e dados acessíveis) até o software em todas as suas dimensões (programas, material em áudio e vídeo, etc.). Tudo, portanto, é acessível, mas mediado por uma empresa que possui tudo, software e hardware, dados e computadores. Além de vender iPhones e iPads, a Apple também é dona do iTunes, onde os usuários compram músicas, filmes e jogos. Recentemente, a Apple também fez um acordo com Rupert Murdoch para que as notícias da nuvem venham dos meios de comunicação dele. Sucintamente falando, Steve Jobs não é melhor do que Bill Gates: em ambos os casos, o acesso global se baseia cada vez mais na privatização quase monopolista da nuvem que oferece o acesso. Quanto mais o usuário individual tem acesso ao espaço público universal, mais esse espaço é privatizado.

Os apologistas apresentam a computação em nuvem como o próximo passo lógico da “evolução natural” do ciberespaço, e embora, de maneira abstrato-tecnológica, isso seja verdadeiro, não há nada “natural” na privatização progressiva do ciberespaço global. Não há nada “natural” no fato de que duas ou três empresas, em posição quase monopolista, além de determinar os preços à vontade possam também filtrar os programas que fornecem, dando a essa “universalidade” nuances específicas que dependem de interesses comerciais e ideológicos. É verdade que a computação em nuvem oferece aos usuários uma riqueza de opções nunca vista; mas essa liberdade de escolha não é mantida pela escolha de um provedor com o qual temos cada vez menos liberdade? Os partidários da abertura gostam de criticar a China pela tentativa de controlar o acesso à internet; mas todos nós não estamos ficando como a China, sendo as nossas funções na “nuvem” semelhantes, de certo modo, ao Estado chinês?

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Artigo publicado no O Estado de S. Paulo

Slavoj Žižek nasceu na cidade de Liubliana, Eslovênia, em 1949. É filósofo, psicanalista e um dos principais teóricos contemporâneos. Transita por diversas áreas do conhecimento e, sob influência principalmente de Karl Marx e Jacques Lacan, efetua uma inovadora crítica cultural e política da pós-modernidade. Professor da European Graduate School e do Instituto de Sociologia da Universidade de Liubliana, Žižek preside a Society for Theoretical Psychoanalysis, de Liubliana, e é um dos diretores do centro de humanidades da University of London.