quarta-feira, 17 de abril de 2013

Slavoj Žižek: Rabinovitch no Chipre


Por Slavoj Žižek

Recordemos a cena clássica dos desenhos animados em que um gato chega à beira do precipício e continua caminhando, ignorando o fato de que não há chão sob suas patas; ele só começa a cair quando olha para baixo e se vê pairando sobre o abismo. Não é assim que o povo do Chipre se sente hoje em dia? As pessoas sabem que o Chipre nunca mais será o mesmo, que logo adiante haverá uma queda catastrófica no padrão de vida, mas o impacto total dessa queda ainda não foi sentido devidamente; então, por um curto período, as pessoas se dão ao luxo de continuar vivendo normalmente, como o gato que caminha tranquilo no ar. E não podemos condená-las: esse adiamento do colapso total também é uma estratégia de sobrevivência – o verdadeiro impacto acontecerá em silêncio, quando o pânico tiver acabado. Por isso é que agora, quando a crise no Chipre desapareceu em grande medida da mídia, devemos falar e escrever sobre ela.

Há uma piada famosa, contada na última década da União Soviética, sobre Rabinovitch, um judeu que quer emigrar. O funcionário do departamento de emigração pergunta o motivo, e ele responde: “Há dois motivos. O primeiro é o medo de que os comunistas percam o poder na União Soviética, e o novo governo coloque sobre nós, judeus, toda a culpa pelos crimes comunistas – e daí haverá mais pogroms…” O funcionário interrompe, dizendo: “Mas isso é uma bobagem, nada vai mudar na União Soviética, o poder dos comunistas vai durar para sempre!” “Pois então, esse é o segundo motivo”, responde Rabinovitch tranquilamente.


É fácil imaginarmos uma conversa semelhante entre um gestor financeiro da União Europeia e um Rabinovitch cipriota – Rabinovitch reclama: “Há duas razões para estarmos em pânico. Primeiro, temos medo de que a UE simplesmente abandone o Chipre e deixe nossa economia ruir…” O gestor financeiro o interrompe: “Você pode confiar na UE: nós os controlaremos com firmeza e diremos o que devem fazer!” E Rabinovitch responde tranquilamente: “Bem, essa é a segunda razão”. 

Esse impasse representa perfeitamente o cerne da triste situação do Chipre: eles não podem sobreviver prosperamente sem a Europa, mas também não o podem com a Europa – as duas opções são piores, como diria Stalin. Recordemos a piada cruel de Ser ou não ser (1942), de Ernst Lubitch: quando questionado sobre os campos de concentração na Polônia ocupada, o responsável oficial nazista, apelidado de “Campo de Concentração Erhardt”, responde: “Nós concentramos, os poloneses acampam”. O mesmo não vale para a atual crise financeira europeia? A forte Europa Setentrional, voltada para a Alemanha, é responsável pela concentração, enquanto o Sul, enfraquecido e vulnerável, acampa. Desse modo, surgem no horizonte os contornos de uma Europa dividida: a região Sul será cada vez mais reduzida a uma zona com força de trabalho mais barata, fora da rede segura do bem-estar social, um domínio próprio para a terceirização e o turismo. Em suma, a lacuna entre o mundo desenvolvido e os retardatários avançará dentro da própria Europa.

Essa lacuna se reflete nas duas principais histórias sobre o Chipre, que lembram duas histórias anteriores sobre a Grécia. Há o que podemos chamar de história alemã: o gasto livre, as dívidas e a lavagem de dinheiro não podem continuar indefinidamente etc. E há a história do Chipre: as medidas brutais da UE resultam em uma nova ocupação alemã que destitui o Chipre de sua soberania. As duas histórias estão erradas, e as demandas que implicam são absurdas: o Chipre, por definição, não pode liquidar sua dívida, enquanto a Alemanha e a UE não podem simplesmente continuar injetando dinheiro para preencher o buraco financeiro cipriota. As duas histórias escondem o fato principal de que há algo errado com o sistema inteiro, no qual as especulações bancárias incontroláveis podem levar um país inteiro à falência. A crise do Chipre não é uma tempestade no copo d’água de um país marginal pequeno, mas um sintoma do que acontece com todo o sistema da UE.

Por isso a solução não é apenas uma regulação maior para evitar a lavagem de dinheiro etc., mas (pelo menos) uma mudança radical no sistema bancário inteiro – para dizer o indizível, algum tipo de socialização dos bancos. A lição das quebras no mundo inteiro desde 2008 é clara: a rede inteira de fundos e transações monetárias, desde depósitos individuais e fundos de aposentadoria até o funcionamento de todos os tipos de derivativos, terá de ser controlada socialmente, modernizada e regulada. Pode soar utópico, mas a verdadeira utopia é a ideia de que podemos, de alguma maneira, sobreviver com mudanças pequenas e cosméticas.

Nesse aspecto, devemos evitar uma armadilha fundamental: a necessária socialização dos bancos não é um compromisso entre o trabalho assalariado e o capital produtivo contra o poder das finanças. Colapsos e crises financeiras são lembretes óbvios de que a circulação do Capital não é um circuito fechado capaz de sustentar plenamente a si próprio, isto é, que essa circulação visa a realidade da produção e da venda de bens que satisfazem às necessidades das pessoas. No entanto, a lição mais sutil dos colapsos e das crises financeiras é que não há como retornar a essa realidade – toda a retórica do “passemos do espaço virtual da especulação financeira de volta às pessoas reais que produzem e consomem” é profundamente equivocada, é a ideologia em sua forma mais pura. O paradoxo do capitalismo é que não podemos jogar fora a água suja das especulações financeiras e guardar o bebê saudável da economia real: a água suja efetivamente é a “linhagem” do bebê saudável. 

Isso significa apenas que a solução da crise do Chipre não está no Chipre. Para que o país tenha uma chance, alguma coisa terá de mudar alhures.

Slavoj Žižek nasceu na cidade de Liubliana, Eslovênia, em 1949. É filósofo, psicanalista e um dos principais teóricos contemporâneos. Transita por diversas áreas do conhecimento e, sob influência principalmente de Karl Marx e Jacques Lacan, efetua uma inovadora crítica cultural e política da pós-modernidade. Professor da European Graduate School e do Instituto de Sociologia da Universidade de Liubliana, Žižek preside a Society for Theoretical Psychoanalysis, de Liubliana, e é um dos diretores do centro de humanidades da University of London.

Fonte: Blog da Boitempo

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