sexta-feira, 19 de abril de 2013

O pragmatismo abduziu a esquerda brasileira



Discurso do senador Roberto Requião (PMDB/PR) feito no dia 30/03/2012 no Senado da República:

Senhoras e senhores senadores.

Faz quase um ano que morreu, em Paris, o militante e escritor espanhol Jorge Semprún. Ele foi um dos intelectuais e dirigentes políticos mais fascinantes do século passado e início deste. Lutou na Guerra Civil Espanhola, contra os fascistas; participou da Resistência Francesa, contra o nazismo; conheceu os horrores dos campos de concentração de Hitler, ao ficar preso em Buchenwald. E, por muitos anos, correndo o risco da prisão, tortura e morte foi o principal dirigente clandestino do Partido Comunista na Espanha ditatorial do generalíssimo Franco.

Quando já estava no fim da vida, perguntam a Semprún se arrependia de alguma coisa.

Ele mesmo formula a pergunta e responde:

“Arrependo-me e renego ter sido militante do comunismo estalinista? Não. Creio que naquele momento havia uma justificativa para tal”.

“Arrependo-me de não haver saído do Partido Comunistas em 1956, ano dos movimentos anti-estalinistas populares na Polônia e na Hungria? Não. Porque sou espanhol. Se fosse francês, teria sido o momento de romper. Mas na Espanha, quaisquer que fossem os crimes de Stalin, lutar com o Partido Comunista contra  Franco valia a pena”.

Por fim, querem saber se a palavra-de-ordem “o bem é roubar o pão e reparti-lo bem”, usada pelos prisioneiros de Buchenwald ,continuava válida. Ele responde. “Não. Essa fórmula não a repetiria hoje. No entanto, o bem, desde sempre, é repartir. E é possível repartir melhor. O absurdo da situação é que se pode repartir melhor”. E não se faz.

Essas reflexões finais de Jorge Semprún deveriam dar o que pensar a todos os que se dizem de esquerda em nosso país, especialmente ao partido que, com frequência, reivindica, se não o monopólio, pelos menos a co-autoria da posição.

Sou um homem de esquerda. A vida toda fui um homem de esquerda. Politicamente, nasci na esquerda. E se fosse o caso de alguma confissão, também diria que não me arrependo de, por cinco vezes, ter votado no candidato do Partido dos Trabalhadores à Presidência da República. Votado e feito campanha, porque em cada uma daquelas eleições era o que havia a fazer.

Em que pesem os Paloccis, os Meirelles, a política econômica conservadora, o caixa dois, também carinhosamente chamado de “mensalão”, não me arrependo.

Era o que havia a fazer naquele momento. Mesmo que divergisse, era o que havia a fazer.

Hoje, é outra coisa que devo fazer. Agora, devo cobrar, duvidar, criticar, desconfiar. E, com frequência, votar contra.

O meu respeito à presidenta Dilma está acima de qualquer dúvida. E é por isso mesmo que tenho questionado o PT. Abertamente e, às vezes, desabridamente. Houve um tempo em que, para não dar argumento à direita, evitei criticar o PT. Aquela história de não dar armas ao dito “inimigo de classe”.

Leandro Konder, no seu livro sobre Walter Benjamin, falando sobre o processo de descaracterização dos partidos de esquerda, nas primeiras décadas do século 20, capturados pelo reformismo, pelo economicismo e pelo pragmatismo, observa: “Quando a esquerda evita falar sobre os seus próprios erros e se recusa a discuti-los à luz do dia, ela não está, afinal, se protegendo da direita: está protegendo o conservadorismo que conseguiu se infiltrar no interior dela mesmo”.

Alguém tem dúvida de que a citação ajusta-se com perfeição à esquerda brasileira hoje, especialmente à esquerda acantonada no Partido dos Trabalhadores? Ou no PCdoB? Ou mesmo em meu partido, essa frente heterogênea chamada PMDB?

Não há dúvida – e alguns acham isso uma virtude — que a esquerda brasileira foi abduzida também pelo economicismo,  pelo pragmatismo, pelo determinismo. Não digo pelo reformismo porque ela é, há muito tempo, essencialmente reformista, tendo abandonado qualquer veleidade revolucionária.

Aqui cabe muito bem outra referência ao livro de Leandro Konder. Falando sobre a transformação que sofreram os socialistas no início do século passado, ele diz que a esquerda européia era cada vez mais levada “a pensar em termos empíricos ou pragmáticos, abandonando a dimensão filosófica – inquietante e radical — da reflexão de Marx”.

Novamente o nosso retrato em branco e preto. Empíricos e pragmáticos, cortamos laços com a idéia de transformação da sociedade brasileira que, em um dia tão distante, cultivamos.

Quando falo, citando o escritor, em dimensão filosófica inquietante e radical, não estou propondo a ninguém pegar em armas. Quando falo em revolução, não estou concitando ninguém ao levante. A direita, pródiga em mistificações, buscou sempre associar revolução à luta armada, à violência, mediocrizando, circunstanciando a idéia de transformação, de mudança da sociedade.

Foram-se os tempos dos grandes debates, do terçar de idéias, da esgrima filosófica. A Grande Política vê-se confinada aos livros, presa às letras ou arquivada na alma e na memória de algumas pessoas.

Grande Política foi escorraçada do Parlamento, corrida dos sindicatos, anatematizada pela mídia, apequenada pela academia, distanciada pela juventude. E parece sobreviver quase que apenas nos debates na internet.

Estamos vivendo aqueles tempos tediosos de que falava Marx, tempos em que dias parecem condicionar séculos, arrastando-se monotonamente, mediocremente.

Nada de notável acontece. Tempos em que, para alguns, cessam todas as dúvidas porque a história acabou, porque a luta de classes acabou, porque todas as contradições acomodaram-se com o triunfo final do capitalismo. Tempos, para outros, de angústia, de pessimismo, desanimadores.

Tomás de Aquino, na alta Idade Média, olha para o mundo e lhe parece que tudo está resolvido. As heresias, sufocadas, as ilusões de um cristianismo popular, desfeitas, igreja e estado cabeças duplicadas em um mesmo corpo. E o doutor da Igreja não resiste em proclamar que a humanidade — a que se acantonava na Europa Ocidental diga-se –  chegara aos seus dias de glória, de máximo fulgor e progresso. Daí às excelsitudes celestiais, um Padre Nosso e uma Ave Maria.

Essa tentação de decretar o fim da história, de considerar esgotada a capacidade do homem de criar e avançar é recorrente. Tentações à esquerda e à direita.

A que não resistiram os sucessores de Stalin, ao proclamarem a União Soviética como o Estado de todo o povo e o Partido Comunista, como partido de todo o povo, imaginando vencidas as contradições de classe, em conseqüência, a luta de classes, naquele imenso naco do planeta.

Terrível engano, com trágicas conseqüências, como se viu. Como se vive.

Mutatis mutantis, do outro lado do muro desmoronado, Reagan e Thatcher, orquestrando patéticos presidentes latino-americanos e caricatos dirigentes do leste europeu cultivaram a mesma ilusão e festejaram o triunfo final e perpétuo do capitalismo.

Foram poucos, são muito poucos os que não aceitam o fim das contradições de classe. Que não aceitam o fim das ideologias. Que não aceitam essa simplicidade rasa, fronteiriça que decreta a morte do conceito de esquerda e direita.

Um parêntesis. Dias desses, um notório torturador, assassino de não sei quantos militantes à época da ditadura militar, disse que se opunha à Comissão da Verdade,  porque cessara a luta entre esquerda e direita, que a Guerra Fria fora-se, que o país vive uma democracia e somos todos democratas, indistintamente.

Já perto da morte, tomado pelo câncer, François Mitterrand, depois de 14 anos na presidência da França e duas coabitações com primeiros ministros conservadores,  e sob pressão cada vez mais intensa do avanço neoliberal, adverte a esquerda e tenta desiludi-la quanto aos compromissos democráticos da direita. Dizia ele que a direita sempre considerou o poder propriedade sua, um direito natural e que a eventual ascensão da esquerda era uma usurpação desse direito. Logo, se a esquerda, ocasionalmente, ascender ao poder, a direita vai exigir dela que cumpra o seu programa, o programa da direita, porque só ele tem legitimidade.

Fiz essa longa digressão, para confessar o meu desencanto com a política brasileira, com os dias que correm.  Com a geléia geral em que se transformou o Senado, com a atuação do PT, do PCdoB, do PSB e do PDT. Partidos, em hipótese, de esquerda, que deram uma clara demonstração de renúncia a princípios que, em hipótese, supostamente, não decorreram três dias.

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