terça-feira, 21 de junho de 2011

OS ERROS DE BRIZOLA

Oscarino Arantes
(texto publicado no Jornal do Brasil do dia 22 de junho de 2004 e transcrito nos anais da ALERJ)

Pode parecer impróprio para o momento, mas escolhi falar de Brizola justamente pelo ângulo mais improvável nesta hora, talvez até inconveniente, diante de seu recente falecimento. Agora, como era de se esperar, Brizola é alvo de uma verdadeira redenção por parte da mídia, praticamente unânime, que une em depoimentos de pesar, aliados e adversários. Os mais exaltados seguidores do grande líder trabalhista, provavelmente nem chegarão a ler esta frase, revoltados com o título que escolhi. Seus adversários, estes não se darão ao trabalho de ler sobre um tema recorrente em seus ataques ao “velho caudilho”. Considero assim, que escrevo uma carta que coloco numa garrafa, arremessada no tempo.

A meu ver, soa totalmente falso a aura de perfeição e unanimidade, que após a morte, os meios de comunicação recobrem um líder político popular. Talvez com sincero peso na consciência, mas com certeza mitificando o papel do líder na luta popular, como forma de distanciá-la do homem comum. Foi assim com Prestes, que após falecer virou mito e mereceu até editorial do Sr. Roberto Marinho no Globo. Felizmente a providência nos poupou deste inusitado quadro.

Mas o que quero, é tratar do Brizola vivo, não do Brizola morto, mito, ídolo, pop, lenda. A última coisa que Brizola procurou ser em vida, foi uma unanimidade. Brizola nunca temeu a polêmica, o confronto, a contestação, a exposição, o desgaste. E aí encontramos o seu primeiro grande erro: Leonel era sem dúvida um apaixonado. Um apaixonado pelo Brasil, por suas idéias, capaz de vivenciar por inteiro um conflito, movimentando mentes e corações. Sim, Brizola errou. Errou porque em sua paixão, tão ardentemente vivida, nunca houve lugar para o casuísmo político da moderação, da acomodação de interesses tão comum em nosso país. A paixão de sua vida, foi sua glória e sua perdição. Houvesse aprendido o discurso de “paz e amor”, e teria sido presidente. Mas Brizola era assim: passional até a última veia. Diziam seus detratores, que ele “venderia a mãe para ser presidente”. Não emprestou nem mesmo seu discurso, aos modernos recursos dos badalados marketeiros. Foi-se a presidência. A memória de D. Oniva ficou incólume.

O que nos leva ao segundo erro de Brizola, que foi ser coerente. A coerência marcou Brizola na mesma medida que Brizola foi um marco de coerência em nosso país. A coerência matou Brizola, tanto quanto seu coração apaixonado. Foi ela que pautou sua dialógica, como a faceta mais conhecida do grande líder trabalhista. Brizola era capaz de se fazer quase atemporal, ao defender suas idéias. Acreditava-se legatário de Getúlio, sem perceber que já o havia transcendido. Enfrentou com a mesma verve o imperialismo norte-americano e o poder econômico. Um texto de Brizola de 1962 e um de 2002: entre eles apenas as rugas e os cabelos brancos. Beirava às vezes a teimosia; não se curvava às circunstâncias. Brizola era intransigente. Para ele, a menor distância entre dois pontos, continuava a ser uma linha reta e nunca o caminho mais fácil. Apontava o problema e a solução com a mesma convicção e firmeza. Popularizou “as perdas internacionais” e fez da educação popular mais do que uma bandeira política, transformando-a em dogma programático. Mas sua irresistível retórica porém, não suportou o peso avassalador da “Era da Informação”, com seus difusos e requintados meios midiáticos, high-tech. A tecnologia elegeu o pastor pop-star, venceu o caudilho, mas não o derrotou. Continuava o coerente Brizola: Getúlio, 1962, perdas internacionais, educação, suas rugas e seus cabelos brancos.

Brizola fez História. Esse seu terceiro grande erro. Um pobre menino, saído do interior do Rio Grande do Sul, provavelmente cansado do infindável desfile de patronos e heróis da pátria, aprisionados nos livros, recusou-se a ser espectador passivo e decidiu protagonizar a História do Brasil. Ousou demais. Nossas elites jamais perdoariam tamanha ousadia: Brizola fez escolas para os filhos dos trabalhadores, estatizou multinacionais, dividiu a terra e distribuiu arma ao povo nas ruas para enfrentar o golpismo do poder dominante. Contra todos os tipos de críticas, desenvolveu com Darcy Ribeiro, o maior programa educacional de nosso país, criando os CIEPs. Foram mais de meio século de história, se confundindo com ela, mas sempre aquela história que não é contada, nem escrita nos livros das escolas que tanto defendia. Brizola era um tipo de líder político raro em nosso tempo, que se distinguia nos grandes episódios da vida pública, que exigiam personalidade, mas era arredio ao cotidiano burocrático. Foi um comandante de uma história de libertação, com a coragem de um leão, um Leonel, mas não foi como libertador que entrou nela. Perde a História mais uma vez para a realidade.

Estes a meu ver, os três grandes erros de Brizola, que também o distinguem de qualquer outro político de nossa geração: a paixão, a coerência e a ousadia. É certo que ele cometeu vários outros em sua trajetória. Mas são os grandes erros que nos dão uma dimensão real e humana de um grande líder, nosso eterno Itagiba. Em vida, soube defender seus erros com a mesma convicção de suas virtudes. Aliás, erros e virtudes se confundiram em Brizola. De Carazinho para o panteão dos mitos, é um passo muito pequeno e falseado, para um homem como Brizola. A maior homenagem que podemos lhe render, é não mitificá-lo, não desumanizá-lo, não elitiza-lo. É preciso manter viva, nos corações e mentes, a verve polêmica, a coragem e a luta que marcaram sua vida. Leonel Brizola errou. Errou porque foi Brizola, viveu intensamente o que acreditava. E porque viveu, hoje está morto. Brizola não temeu errar, não temeu viver. Deixa a vida, mas não precisa entrar na História. Ele a construiu à sua volta, no seu tempo, com a sua maneira única de ver o mundo. Prefiro acreditar que foi se reunir numa grande estância de verdes pastos, com Getúlio, Jango, Prestes e Darcy. A conversa vai ser longa, mas pra ele isso não será problema. Adeus, Velho Caudilho!

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