domingo, 29 de junho de 2014

Se torcedor vaia até minuto de silêncio, por que não vaiaria Dilma?

Apupos com que a torcida premiou a presidente não é questão de segurança nacional, como governistas tentam vender à opinião pública


Por Cezar Santos

O eco foi atordoante: “ei, Dilma, vai tomar no c…” Já se passaram dez dias da estrondosa vaia à presidente Dilma Rousseff, na abertura da Copa do Mundo, no Itaquerão. O PT, no entanto, tratou de manter o assunto em voga, por considerar que poderia fazer desse limão uma boa limonada, ou seja, ganhar dividendos eleitorais.

Como o tema continua palpitante, teçamos algumas questões sobre ele. Jornalistas a serviço do governismo e militantes petistas levantam argumentos contra a falta de respeito dos manifestantes contra uma mulher, mãe de família, avó, e, por fim, a mandatária do País. Verdade, palavrão é no mínimo falta de educação. Mas, desde quando não foi assim nos estádios de futebol no Brasil? Desde quando a turba do chutebola, seja na várzea seja em arenas superfaturadas, endereça termos finos e respeitosos a autoridades, torcida e jogadores adversários e ao juiz — esse senhor cuja mãe, para os torcedores, é assídua frequentadora da mais baixa zona do meretrício?

Aqui, é fatal, não se pode deixar de lembrar o genial Nelson Ro­dri­gues (1912-1980), que cunhou a má­xi­ma de que “no Maracanã, vaia-se até minuto de silêncio”. O registro foi feito num artigo em “O Globo”, em 1970. Eis o trecho:

“… No Estádio Mário Filho, ex-Maracanã, vaia-se até minuto de silêncio, e, como dizia o outro, vaia-se até mulher nua.”

Pois é. Maracanã aí é uma metonímia, significa estádio de futebol. Todos e qualquer um. O torcedor é a irreverência em pessoa. Um bando. E gente, quando se junta em bando, perde compostura, senso de ridículo, e até mesmo a mais comezinha noção de civilidade.

E a reação menos danosa e prejudicial que um bando pode cometer é a vaia. Quem dera toda turba no máximo vaiasse, em vez de cometer linchamentos, como parece ter se tornado moda no Brasil ultimamente.

Mas Dilma foi vaiada. Lula da Silva, mais esperto que seu “pos­te”, sabia que também teria seu quinhão de opróbio verbal, e não foi ao estádio de seu time de coração, que ele fez construir influenciando diretamente com seu poder político quando presidente.

Dilma foi vaiada. E os petistas resolveram fazer desse apupo quase uma questão de segurança nacional. Como se ela tivesse sido ameaçada de morte. Primeiro, Lula — logo ele, o mais boca-suja de todos os presidentes do Brasil — tratou de atribuir ‘àszelite’ a autoria das vaias. Daí, a trupe do partido nas redes sociais e articulistas simpatizantes e/ou pagos pelo governo trataram de espalhar a versão. E muitos que nem simpatizam com o PT também condenaram a grosseria dos vaiadores.

Por essa versão, da tal elite vaiadora — conforme Lula, gente que estuda perde a noção de educação —, a assuada foi uma ação política antipetista, ou seja, da oposição. E como a reação do partido é um ato coordenado neste momento já francamente eleitoral, tratou-se de tentar dar alguma solidez à tese.

O partido divulgou que as vaias à presidente no estádio de 68 mil lugares partiram de um local preciso e exato: a área vip da esquerda do camarote da Dilma. Pronto. Dá para imaginar: antipetistas se organizam, certamente em algum pub chique nos Jardins, e combinam: “vamos mandar a Dilma tomar no c…”

Risível. Entre 68 mil pessoas, o PT localizou a “elite”, porque só elite vai a estádio ver jogo da copa. É a tal receita de transformar limão em limonada. Verdade que logo depois o ministro Gilberto Carvalho reconheceu que não só a elite vaia Dilma.

O PT sabe que a vaia reflete um momento ruim para a sua candidata, que vem despencando nas pesquisas de intenção de voto e de aprovação de governo. Por isso, tenta dar uma conotação político-eleitoreira às vaias.

Conotação política sim, não resta dúvida. O torcedor vaiou Dilma porque percebe nela uma má gestora, fraca, titubeante, que ao ser perguntada por que a economia cresce tão pouco, responde que não sabe. Mas não consta que algum partido oposicionista tenha orquestrado aquela manifestação no Itaquerão.

O jornalista esportivo Renato Maurício Prado escreveu um delicioso texto em seu blog no “Globo”, na semana passada, falando justamente da falta de modos do torcedor. Eis um trechinho: “Nos tempos em que o atual goleiro da seleção Júlio César atuava no Flamengo, as torcidas rivais o saudavam com duas musiquinhas alusivas ao fato de Suzana Werner, sua esposa, ter sido antes namorada de Ronaldo Fenômeno:

1) “Ô Júlio César, como é que é, o Ronaldinho já … sua mulher”!

2) “Ô Júlio César, seu veadinho, sua mulher já deu o … pro Ronaldinho”!”

Grosseiro, não? Mas o que se po­de fazer? Prado anota ainda: Co­mo costumava dizer o saudoso, genial (e genioso) colunista Zó­zimo Barroso do Amaral, “o mais refinado gentleman se transforma no mais sórdido canalha, ao sentar a bunda numa arquibancada”.

A vaia pode ferir sensos. Com palavrão fere ouvidos mais sensíveis. Mas a questão é que o torcedor vaia porque é de sua natureza vaiar. Com fundamento ou não. E não escolhe as palavras mais bonitas. Pelo contrário, os termos mais crus são os preferidos, justamente porque acicatam mais.

Torcedor vaia até para testar se seu poder de vaiar continua afiado. Por galhofa, por molecagem, por zoeira. Se ele sente que há motivo, então, não há quem o segure. Nas aglomerações, autoridade são alvos preferenciais de apupos. Sejam petistas ou de outros partidos.

E não é de hoje que presidentes são achincalhados em público. Uma pesquisinha rápida nos informa: o historiador Aureliano Lei­te anotou que o impopular Campos Sales (1841-1913), que governou o país de 1898 a 1902, era vaiado toda vez que seu nome era anunciado pela estação de trem, quando voltava à sua cidade natal.

Artur Bernardes (1875-1955) também foi apupado. Certa vez, passando pela Avenida Rio Bran­co, no Centro do Rio de Janeiro, recebeu vaias e o epíteto de “Seu Mé”, apelido que detestava.

Getúlio Vargas (1882-1954) foi outro aquinhoado. Em 1954, nas comemorações do quarto centenário de São Paulo, recebeu uma vaia de 15 minutos no Jo­ckey Club. Só que Vargas era um po­lítico safo (apesar disso, se mataria meses depois). O historiador Fernando Jorge registra que, ao lado do governador Lucas No­gueira Garcez, Vargas virou-se para o então ministro da Justiça, Tancredo Neves, e cochichou:

— Não sabia que o Garcez era tão impopular.

Vargas soube rir de si mesmo. Diferentemente de Dilma Rousseff, uma mal-humorada notória. Que tem dado motivos para receber vaias, embora seus correligionários achem que seu partido faz o governo mais ético e produtivo da história do Brasil. Corrupção, aparelhamento do Estado, mensalão, inflação, política econômica mambembe, educação nos últimos lugares nos rankings internacionais, saúde na UTI, segurança pública em caos, mobilidade urbana muito aquém do que precisa…

Torcedor quer ver gol. Mas se der para, antes disso, dar uma vaiadinha, melhor ainda, aí a festa fica completa. Naquele dia, com a vitória do selecionado brasileiro por 3 a 1, de virada, e uma “zoada” em Dilma Rousseff, a festa foi tudo de bom para o torcedor.


Fonte: Jornal Opção, edição 2033


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