Por Ruy Braga
Dois anos de raquitismo econômico foram suficientes para estimular até
mesmo o apetite eleitoral de tradicionais aliados do Palácio do Planalto.
Então, como explicar que, conforme recente pesquisa do Ibope, a popularidade de
Dilma Rousseff tenha batido novo recorde? Em tempos de agudo descrédito dos
políticos tradicionais, quando um movimento liderado por um comediante
reivindica o cargo de primeiro-ministro na Itália, por exemplo, desconfio que
uma aprovação pessoal de quase 80% configure êxito político incomparável, ao
menos entre países democráticos.
A referência a Beppe Grillo serve apenas para acentuar a atual façanha
da presidente, mas não provê hipóteses acerca de sua popularidade. Para tanto,
recorrerei a outro italiano. Em seus Cadernos do Cárcere, Antonio Gramsci
propôs que aquele que deseja interpretar a vida política nacional precisa
apreender os movimentos “orgânicos” e “conjunturais” em sua unidade
contraditória, isto é, como duas faces de uma mesma moeda. Assim, movimentos
conjunturais transformam-se em atualizações de processos orgânicos, em seu “vir
a ser” saturado de múltiplos sentidos.
Recorro a Gramsci a fim de esboçar uma hipótese para o enigma da
existência de uma robusta aprovação popular em um frágil contexto econômico:
muito além de sua presença em Santa Maria, do reforço do programa Bolsa Família
ou da redução das contas de luz, a popularidade de Dilma Rousseff explica-se
pela capacidade de a presidente associar seu governo à “utopia brasileira”.
Explico-me: do ponto de vista das classes subalternas, como bem
demonstrou o sociólogo Adalberto Cardoso, nossa industrialização fordista
ocorreu sob o signo da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Com a CLT, o
regime varguista criou um campo legítimo de disputas, rapidamente ocupado pelo
proletariado precarizado. Após a Segunda Guerra Mundial, alguns milhões de
trabalhadores migrantes, atraídos pela possibilidade de proteção trabalhista,
assim como pelos novos empregos industriais, deixaram o campo e as pequenas
cidades do interior, acantonando-se nas periferias das grandes metrópoles.
Símbolo desse processo, a carteira de trabalho passou a evocar a
promessa da cidadania salarial: ao progresso material iria se somar a proteção
do trabalhador. No entanto, a simples existência de leis trabalhistas jamais
garantiu a satisfação dessa expectativa histórica. Ao contrário, desde os anos
1940, as classes subalternas mobilizam-se ininterruptamente a fim de garantir,
efetivar e ampliar seus direitos da cidadania previstos na lei. Por isso, não
me parece exagerado afirmar que, no Brasil, em grande medida, a consciência da
classe trabalhadora confunde-se com a consciência do direito a ter direitos.
Ainda estamos muito longe de ver aquela promessa cumprida. A
resiliência da informalidade e do subemprego, os baixos salários, a alta
rotatividade, o aumento do número de acidentes de trabalho, o avanço da
terceirização, a flexibilidade da jornada e o endividamento das famílias
bloqueiam essa possibilidade para a maioria dos subalternos. No entanto, não
eliminam a confiança no cumprimento da promessa. Afinal, mesmo com baixo
crescimento econômico, 123 mil empregos formais foram criados em fevereiro
deste ano e, segundo o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos
Socioeconômicos (Dieese), 94% das categorias profissionais conseguiram aumentos
reais em 2012.
A popularidade recorde da presidente Dilma repousa na capacidade de seu
governo alimentar a esperança dos trabalhadores na utopia brasileira. Tendo em
vista a continuidade desse processo é que políticas ocasionais, como a
desoneração da folha salarial de setores trabalho-intensivos, como a construção
civil, por exemplo, devem ser avaliadas.
Apesar do desempenho econômico, Dilma tem reproduzido a principal
característica do atual regime hegemônico: a unidade entre o consentimento
ativo das direções dos movimentos sociais e o consentimento passivo das classes
subalternas. Vale observar que o adjetivo “passivo” qualifica o substantivo
“consentimento” e não os próprios subalternos. Estes continuam agindo
politicamente, mas sem um projeto autônomo. Em suma, eles aderiram ao atual
modo de regulação.
Até o momento, a elevação do número de greves ainda não foi capaz de
desafiar a estabilidade desse regime. E a lembrança ainda vívida de uma década
de 1990 marcada pelo antípoda da utopia brasileira, isto é, pelo desemprego de
massas, desestimula o desejo dos trabalhadores de buscar alternativas
oposicionistas. Se nem mesmo a reprodução despótica do trabalho precarizado,
característica histórica da acumulação periférica, foi capaz de afastar as
classes subalternas da burocracia lulista, que dirá o atual governador de
Pernambuco? Arriscaria dizer que, enquanto o mercado de trabalho estiver
aquecido, Dilma não terá adversários à altura em 2014.
* Publicado no caderno Aliás,
do jornal Estado de São Paulo, em 24/03/2013.
Ruy Braga é professor do
Departamento de Sociologia da USP e ex-diretor do Centro de Estudos dos
Direitos da Cidadania (Cenedic) da USP.
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