Slavoj Žižek, um dos mais instigantes pensadores
contemporâneos, professor e diretor de instituições acadêmicas na Eslovênia e
na Grã-Bretanha, começou por Porto Alegre um giro de lançamento de seu mais
recente livro traduzido para o português, Menos que Nada (Boitempo Editorial). A
seguir, uma síntese da entrevista ao jornal Zero Hora de Porto Alegre:
Zero Hora - Quais são suas impressões sobre o Brasil?
Slavoj Žižek - As impressões são sempre divididas, mas
gosto do país. Por exemplo: sei que há muita divisão ideológica sobre o Brasil.
Uma é de que é um país onde as pessoas sabem aproveitar a vida, dançar e fazer
música. Mas sei que há também um outro lado. Sei que há muitos negros no
Brasil, mas a elite política permanece branca. Nos governos de Lula, havia
apenas aquele famoso cantor negro que era ministro da Cultura (Gilberto Gil).
Talvez agora seja diferente. Isso me lembra um pouco os antigos regimes
comunistas, onde havia sempre mulheres no governo, mas apenas em três pastas
consideradas de segundo classe e afastadas do poder real: Cultura, Educação e
Assistência Social. Por outro lado, meus amigos brasileiros dizem que há ainda
uma forte divisão racial, mas que permanece invisível. O que deve surpreendê-lo
a respeito do Brasil é que a divisão social, entre ricos e pobres, é visível.
Você vê favelas. Durante minha primeira visita, no início dos anos 1990, fui
convidado a uma reunião na casa do diretor da Volkswagen do Brasil. Era uma
mansão luxuosa, mas de lá era possível ver, a pouco mais de um quilômetro, uma
favela. Gosto disso. Vocês não escondem isso como em outras cidades. Vá a
Buenos Aires, você não vê favelas. Estão escondidas. Inicialmente, fui cético a
respeito do governo Lula. Toni Negri (Antonio Negri, sociólogo marxista
italiano) me disse há muitos anos: "Não subestime Lula e não superestime
Hugo Chávez". Me convenci cada vez mais de que Chávez não resolve
realmente os problemas, injeta dinheiro neles. Ele não inventa nenhuma nova
forma socioeconômica. Conheço essas formas de participação dos trabalhadores
nas fábricas, mas sou cínico a esse respeito. Amigos me informam que há todas
essas boas notícias sobre trabalhadores que controlam fábricas, cooperativas,
mas que seria bom ir até lá um ano depois e ver o que aconteceu com a fábrica.
Muitas vezes faliu.
ZH - Na sua opinião, há alguma experiência positiva de governo na América Latina?
Žižek - Gosto muito mais do caso da Bolívia, com Evo
Morales e seu vice-presidente, Linera (Álvaro García Linera), que conheço. Não
há solução fácil com dinheiro, como no caso de Chávez. É preciso trabalhar
duro. Acredito que o caso do Brasil é importante. Mesmo se concordamos que o
problema é o capitalismo global, blablá, isso não significa que possamos parar
e simplesmente preparar alguma grande revolução. Há muitas coisas que você pode
fazer dentro da ordem atual. Há espaços abertos nos quais se pode fazer algo. O
Brasil é um bom exemplo daquilo que, com uma política inteligente, você pode
fazer mesmo dentro das coordenadas do (vamos chamá-lo assim) capitalismo
global. Não sou contra o eurocentrismo. Acredito que a Europa levou muitas
coisas boas para o mundo, como democracia, igualitarismo e assim por diante.
Mas, apesar disso, percebo que muitas vezes os esquerdistas, em especial, são
surpreendentemente eurocêntricos. Por exemplo, veja toda essa bobagem de que
hoje estamos numa crise global e assim por diante. Quando estive no Brasil, há
dois anos, ou agora, em Cingapura e na China, as pessoas estavam certas em me
perguntar: dane-se, que crise? Veja, até os Estados Unidos estão se
recuperando, a China está indo relativamente bem, Cingapura, Coreia do Sul,
Taiwan, Indonésia. Até os países do sul da África estão indo para a frente. Sem
falar no Brasil e na América Latina, então, que crise? Estritamente uma crise
local e europeia. Não é uma crise global, você sabe.
ZH - O senhor não viu sinais de crise fora da Europa?
Žižek - É claro que 2008 foi o momento de uma crise
global potencial, mas agora, numa perspectiva mais longa, o que vemos é que a
Europa simplesmente está perdendo sua função de modelo. Incidentalmente, não
acredito que isso seja um fenômeno para se comemorar. O que está surgindo no
lugar do capitalismo europeu é o capitalismo com valores asiáticos, que não tem
a ver com a Ásia, mas simplesmente com um capitalismo mais autoritário. É um
típico exemplo de eurocentrismo incluir tudo numa crise global. Não! Se você
observar os números, existe hoje um grande progresso no Brasil, na China. Sei
que estão ocorrendo horrores na China. Mas sejamos francos: existe menos fome
em massa na China hoje em dia do que, digamos, há 40 anos. Então, não compro
essa história superficial de que o capitalismo está em crise mortal, está
caminhando para o seu fim e assim por diante. A outra razão pela qual gosto da
abordagem brasileira é que estou um pouco farto e cansado desses assim chamados
esquerdistas radicais que ainda esperam por um grande momento revolucionário, no
qual a verdadeira classe trabalhadora virá impor a sua democracia e assim por
diante. Sinceramente, não compro essa história. Sim, eu sei que a democracia
multipartidária tem suas limitações. Negri me convenceu de que esse foi
precisamente o caso do Brasil. O jeito de Lula fazer funcionar... Foi como
Negri descreveu para mim, e acreditei nele. É claro que há corrupção, porque o
único jeito de Lula aprovar suas medidas foi corromper, pagar os partidos
menores. Então, novamente, há limitações, mas todas aquelas histórias poéticas
de cooperativas locais, produtores, comunidades interdistritais que irão se
expandindo gradativamente e envolvendo todo o Estado... não, não vão. Mais do
que nunca, nós precisamos de organizações globais, com grandes redes globais.
Não acredito nesses mitos de comunidades locais se aproximando e assim por
diante. Não estou idealizando o Brasil, mas, uma vez mais, foi exemplo modesto
e hoje relativamente bem-sucedido do que você pode fazer dentro do sistema
existente. Mais uma vez, é importante livrar-se dos mitos de democracia direta
e mesmo anticapitalismo. É evidente que sou anticapitalista. Acredito
sinceramente no que escrevi. Mas sejamos claros: podemos sequer imaginar uma
alternativa hoje? É claro que não peço que ninguém dite planos para o futuro,
mas mesmo aventar a ideia de um socialismo de Estado é apenas um pouco mais
radical do que uma democracia social. Considero muito deprimente a maneira como
a esquerda radical diz todo o tempo, enquanto nós, no Ocidente, vivemos em relativa
prosperidade: "Espere um momento, haverá uma crise, vocês verão que essa
prosperidade é falsa". OK, alguns países da Europa agora enfrentam uma
crise: Grécia, Espanha, Grã-Bretanha, França.
ZH - Na Bulgária, o governo caiu nesta quarta-feira.
Žižek - Sim, mas você notou como poucas ideias reais
nasceram desses protestos? Acredito que essa última crise de insatisfação na
Europa é o maior malogro da esquerda que podemos imaginar. Colocamos essa
energia em protestos, que eu apoio totalmente, mas não conseguimos
transformá-los em movimentos políticos organizados que tentassem tomar o poder
e fazer alguma coisa. Lembro dos acontecimentos do movimento Occupy Wall
Street. Fui a Nova York, a Frankfurt e a outras cidades e fiz aos manifestantes
uma pergunta psicanalítica simples: o que vocês querem? Ouvi respostas
totalmente confusas: moralismo abstrato, diversidade política, honestidade,
trabalho pelo bem comum. E então você tem esse tipo de movimento
antifinanceiro, que eu rejeito totalmente em razão de sua teoria protofascista,
que tenta opor o mau capitalismo, que não é produtivo, ao bom capitalismo, que
é realmente produtivo. Não, isso não funciona. O capitalismo de hoje é
capitalismo financeiro. Você não pode imaginar que ele se financie sem bancos
fortes, que ofereçam crédito e assim por diante. E há pessoas que sonham com
democracia direta e socialização, mas isso não funciona. Eu estava só
perguntando às pessoas: "O que vocês querem?". E é incrível que,
somente por ter feito essa pergunta, eles me tratavam como uma espécie de
inimigo. Como se me dissessem: "Por que você está fazendo essa pergunta
agora? Estamos na primeira fase de nosso trabalho, estamos
desenvolvendo-o". Eu sei, eu sei, mas não penso francamente que, por haver
revolta, irá aparecer algum movimento forte como opção séria. O problema é que,
quando você tem revolta e não tem projeto de esquerda que seja aceito pelas
pessoas, obviamente, a direita radical vence.
ZH - Não é um problema antigo para a esquerda a conciliação das ideias socialistas com o movimento real das massas?
Žižek - Em primeiro lugar, o marxismo tem de fazer um
pouco de autocrítica. Penso que a questão não é apenas a de como podemos
mobilizar as pessoas com base em nossa teoria, mas a de nos perguntarmos se
algo está errado com a própria teoria. Por exemplo, qual é o sujeito potencial
da mudança amanhã? Está claro que não é mais a classe operária tradicional. Na
Europa, falar na classe operária tradicional é dizer: "Sim, sim, você é
explorado. Mas, pelo menos, você tem um emprego permanente no qual é
permanentemente explorado. Você quase pode ser considerado um privilegiado
hoje". Há trabalhadores precarizados, desempregados, imigrantes,
excluídos... Não penso que o agente potencial da mudança possa ser simplesmente
a velha classe operária. A segunda observação não muito popular que eu gostaria
de acrescentar é: não mistifiquemos as tentativas revolucionárias do passado.
Por exemplo, as pessoas estão muito desapontadas, oh, meu Deus, com o fato de
os partidos islâmicos terem tomado conta do Egito. Amigos que estiveram na
Praça Tahrir disseram que não mais de 10% da população efetivamente
participaram das mobilizações. Obviamente, a maioria simpatizava com o que
estava acontecendo, mas estava à margem, esperando. E agora vou mais longe:
você não acha que isso se aplica a todas as revoluções? Veja a Revolução de
Outubro. A participação foi ainda menor. Eram um ou dois grupos nas grandes
cidades. Mas há um outro exemplo, mais dramático, da Revolução Mexicana, sobre
a qual recentemente li um livro. Há um momento em que Emiliano Zapata entra na
Cidade do México pelo sul, e Pancho Villa, pelo norte. E o que acontece? Eles
permanecem por três meses na Cidade do México, eles discutem, não sabem o que
fazer e voltam para casa. É incrível: eles tomam o poder e não sabem o que
fazer com ele.
ZH - O senhor acredita que a democracia representativa seja
mais adequada ao exercício da vontade política?
Žižek - Não gosto dessa ideia esquerdista radical de que
a democracia formal torna o povo passivo e de que precisamos de democracia
participativa, na qual estaremos todos engajados. Mas deixe-me ser muito
brutal: a grande maioria das pessoas, e eu me incluo nessa maioria, não quer
participar o tempo todo da política. Eles querem um Estado eficiente e ordem
pública que lhes permita viver em paz e de forma decente. Não vejo nada errado
com essa atitude. O problema não é o grande momento extático: oh, um milhão de
pessoas na praça. O problema é como mudar a vida real quando, depois do êxtase revolucionário,
as coisas voltam ao normal. Existe a opção social-democrata? Sim, embora hoje
esteja um pouco em crise. Há a velha opção comunista? Ela se desvaneceu. Uma
vez debati com Fukuyama (Francis Fukuyama, pensador liberal americano, autor de
O Fim da História) e disse a ele: "OK, você está certo, o capitalismo
liberal venceu. Mas admita que os ex-comunistas na China são os melhores
administradores desse novo capitalismo" (risos). Essa é a ironia da China.
Yeah, yeah, yeah, capitalismo, mas vocês precisam de nós para gerenciá-lo
(risos).
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