No primeiro semestre
de 2012, a Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República
(SAE) aprovou a nova definição de “classe média” que orientará a criação das
políticas públicas do governo federal para os próximos anos. Em suma, trata-se
da simples determinação de algumas faixas de renda que localizam os novos
grupos recém saídos do pauperismo em relação àqueles indivíduos extremamente
pobres e em relação à chamada “classe alta”. Ao fim e ao cabo, para o governo
federal, fariam parte da classe média brasileira todos aqueles que recebem uma
renda mensal per capita entre R$ 291 e R$ 1.019,00, ou seja, aproximadamente,
54% da População Economicamente Ativa (PEA) do país. (Não deixa de ser curioso
que um governo liderado pelo Partido dos Trabalhadores tenha apagado conceitualmente
a classe “trabalhadora” de seus assuntos estratégicos. Mas este não é o
problema aqui…)
Sobre a teoria das
classes, diria que, se nada mais soubessem, ainda assim os sociólogos saberiam
que um debate minimamente sério a este respeito não pode se limitar a uma única
variável, ainda que seja a “renda”. Exatamente porque as classes sociais são
relações sociais multidimensionais e construídas historicamente, qualquer
determinação unilateral deste fenômeno fatalmente criará mais desentendimentos
do que esclarecimentos. Neste caso específico, argumentarão os mais crentes, o
interesse do governo não é investigar cientificamente a realidade brasileira,
mas apenas racionalizar suas políticas públicas. Trata-se de qualificar e
atender carências específicas daquela faixa da população em termos de
qualificação e educação financeira. Ok. Neste caso, vejamos então a relação
entre as classes pobre, média e alta.
O Dieese calcula que o
salário mínimo necessário para o trabalhador suprir despesas elementares de uma
família de 4 pessoas deveria ser de R$ 2.349,26. Agora, imaginemos que um
hipotético casal auferindo renda mensal per capita de R$ 642,00 (ou seja, o
limite inferior da classe média “alta”, conforme a definição da SAE) resolva
ter um filho. O governo entende que este casal, ao sair da maternidade,
simplesmente passou para a classe média “baixa”. Para o Dieese, no entanto,
eles acabaram de decair para o pauperismo. O curioso é que um fenômeno
semelhante acontece com a tal “classe alta” – segundo a definição do governo.
Se um casal da classe alta resolve ter um filho, bem, digamos que ele estará a
uma distância de apenas 1 sandwiche de mortadela e dois refrigerantes a
mais por dia da linha da pobreza… Bem, digamos que, atualmente, isto é o mais
perto que o petismo consegue chegar da expropriação da burguesia. Ou seja,
desconfio que, em breve, a “classe alta” também vai precisar dos programas de
educação financeira que o governo anda planejando para a nova classe média…
Ironias à parte, a
verdade é que o processo de desconcentração de renda entre os que vivem dos
rendimentos do trabalho experimentado nos últimos nove anos preparou em certa
medida o terreno para que noções ideologizadas sobre as classes sociais
prosperassem no país. Ou seja, a despeito de seu raquitismo teórico, a
definição de “nova classe média” da SAE encaixa-se perfeitamente bem em um
debate cujo eixo gravita em torno do aprofundamento da financeirização do
consumo popular. Ou seja, o que a secretaria realmente pretende é ensinar à
população como poupar dinheiro para aproveitar as novas oportunidades criadas
pelo recente barateamento do crédito. Para tanto, é importante reforçar a
ideologia de que o Brasil transformou-se em um “país de classe média”.
Nadando contra a
corrente deste debate, o novo livro do economista e presidente do Instituto de
Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), Marcio Pochmann, trouxe à luz um notável
conjunto de dados e argumentos para desmistificar em definitivo esta noção.
Recuando quarenta anos na história do Brasil a fim de identificar década após
década o eixo da dinâmica econômica nacional em termos de repartição e
composição da renda, o autor investigou o processo de mobilidade social existente
na base da pirâmide social brasileira nos anos 2000. Assim, Pochmann demonstrou
que o atual ciclo de crescimento econômico foi marcado por três fatores
principais: 1) avanços efetivos na formalização do trabalho assalariado; 2)
concentração do emprego em ocupações que pagam até 1,5 salário minimo; e 3)
deslocamento da dinâmica da geração de postos de trabalho da indústria (décadas
de 1970 e 1980) para a setor de serviços (anos 1990 e 2000).
Tendo em vista a
combinação destes movimentos, percebemos que o modelo de desenvolvimento
brasileiro neste século absorveu o excedente populacional produzido na década
anterior, mas às custas de baixa remuneração (94% das vagas abertas em 2000
tinham remuneração de até 1,5 salário mínimo) e do aumento da taxa global de rotatividade
do trabalho (36,9%). Ou seja, às custas da reprodução de um regime de
acumulação que insiste em precarizar o trabalho subalterno. Além disso, este
modelo foi capaz de integrar grandes contingentes de mulheres e de não brancos,
mas quase sempre em ocupações alienadas que não requerem qualificações
especiais. Sinteticamente, acompanhando a dinâmica das ocupações na base da
pirâmide social do país somos obrigados a refletir sobre os alcances e os
limites do atual modelo de desenvolvimento pós-fordista.
Uma reflexão que nos
obriga a encarar o atual ciclo de crescimento econômico do ponto de vista do
alargamento da superpopulação relativa (precariado brasileiro, proletariado
precarizado…). Por um lado, é possível perceber claramente os avanços em relação
à decada anterior: a política de valorização do salário mínimo permitiu que um
enorme contingente de trabalhadores, especialmente concentrado nas regiões mais
carentes, conquistassem um padrão de consumo relativamente inédito na história
nacional. Com a formalização do emprego, estes trabalhadores ascenderam a um
patamar menos inseguro socialmente, o que tende a elevar a satisfação
individual. E a percepção destes em relação ao futuro tornou-se mais positiva.
Por outro lado, a
promessa da superação da pobreza e do subdesenvolvimento esbarra na
incapacidade do modelo em gerar postos de trabalho mais qualificados, superar a
barreira do salário mínimo e bloquear a rotatividade do trabalho. Afinal, como
poderia ser diferente se o atual regime de acumulação concentrou-se entorno das
atividades de mineração, de petróleo, dos agronegócios e da indústria da
construção civil? Precisamos lembrar que o atual modelo reproduz a trilha
aberta pela hegemonia tucana de trocar a indústria de transformação por setores
que utilizam largamente trabalho não qualificado? Ou seja, trata-se de um
movimento que tende a reforçar a insatisfação coletiva.
Estudando a atual
dinâmica do trabalho doméstico para famílias, do trabalho nas atividades
autônomas e primárias, além do trabalho terceirizado, Pochmann esmiuçou o
avesso do atual regime de acumulação. Ao fazê-lo, ele demonstrou que a
hegemonia lulista apoia-se em um consistente alargamento da base salarial da
pirâmide ocupacional brasileira. Ao mesmo tempo, Pochmann adverte-nos a respeito
dos riscos inerentes a um modelo de desenvolvimento que apresenta sérias
dificuldades em promover um ciclo de ascensão social consistente com mais e
melhores salários. Do choque entre a satisfação individual e os germes dainsatisfação
coletiva avolumam-se tensões no atual regime hegemônico.
Sem mencionar outras
importantes greves nacionais ocorridas em 2011, como a dos bancários e a dos
trabalhadores dos correios, por exemplo, o impulso grevista de 2011 permanece
ativo este ano: em Belo Monte, cerca de 7 mil trabalhadores espalhados por
todas as frentes de trabalho da usina hidrelétrica cruzaram os braços por 12
dias; no Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro (Comperj), localizado em
Itaboraí (RJ), pelo menos 15 mil trabalhadores entraram em greve no dia 9 de
abril, permanecendo 31 dias parados; ainda no início do ano, foram registrados
10 dias de greve em Jirau e na plataforma da Petrobras em São Roquedo Paraguaçu
(BA); além de novas paralizações em Suape, greves em várias obras dos estádios
da Copa do Mundo de futebol etc… Tudo somado, talvez Francisco Weffort tivesse
mesmo razão quando, quase cinco décadas atrás, afirmou que, no Brasil, “a
vitória individual traz em germe a frustração social”.
Fonte: blog da Boitempo.
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