Por Luiz Eça
Quando John Kerry afirmou que, sem a aprovação da “solução dos dois
Estados”, Israel poderia se tornar um país de apartheid, o mundo caiu.
Os líderes de Israel entraram em transe e seu lobby nos EUA, a AIPAC,
clamou: “Qualquer sugestão de que Israel seja, ou possa vir a ser, um Estado de
apartheid é ofensiva e inapropriada”.
Não havia motivo para tanta irritação. Kerry só repetiu o que várias
importantes personalidades israelenses já afirmaram como sendo uma
possibilidade real.
Se não houver dois Estados, Israel não poderá manter ad aeternum a
Palestina como região ocupada; terá de anexá-la.
Então, como afirmou o ex-primeiro-ministro Ehud Barak, em 2010: “A
verdade simples é que haverá um só Estado, incluindo Israel, a Cisjordânia e
Gaza. Ele terá de ser ou binacional ou não democrático... E se esses milhões de
palestinos não puderem votar, então será um Estado de apartheid”.
Muito antes, em 1967, o primeiro primeiro-ministro de Israel, David
Ben Gurion, já havia dito (citado por Hirsh Goodman): “É melhor que Israel se
livre dos territórios (Cisjordânia) e sua população árabe logo que for
possível. Se não fizer isso, Israel logo se transformará num estado de
apartheid”.
Porque para Ben Gurion, como para os líderes atuais de Israel, a
hipótese do “estado binacional” é impensável, pois representaria o fim do
“caráter judeu” do seu país.
Para reafirmar esta posição, o premier Netanyahu acaba de apresentar
projeto que altera a lei básica do país, passando a conceituar Israel como “o
Estado de um único povo – o povo judeu – e somente o povo judeu”.
Alguns críticos acham que isso colocaria os habitantes palestinos como
cidadãos de segunda classe, estabelecendo-se o apartheid por lei.
Antes de continuar, convém definir o que seja esse sistema que
horrorizou a opinião pública mundial tornando a União Sul Africana um Estado
pária, isolado, e causando a queda do regime.
A Corte de Crimes Internacionais considera o apartheid como crime
contra a humanidade, definindo-o como a prática de atos desumanos que incluem
tortura, assassinato, deportação ou deslocamento forçado, aprisionamento ou
perseguição de um determinado grupo por motivos políticos, raciais, nacionais,
culturais, étnicos ou religiosos, cometidos no contexto de um regime
institucionalizado de opressão sistemática por um grupo étnico sobre qualquer
outro grupo ou grupos raciais.
À primeira vista, o regime israelense parece ser réu desse crime. O
“deslocamento forçado”, a “perseguição de um determinado grupo por motivos
raciais” e a “opressão sistemática” existem no trato dos palestinos pelo Estado
judeu.
Richard Falk, professor emérito da Universidade de Princeton, que foi
relator da ONU sobre a Palestina, acusou o governo de Telavive de criar
condições insuportáveis aos palestinos para os forçarem a deixar a Cisjordânia
e Jerusalém Oriental.
Para Telavive chegar lá, ele citou “revogação de permissões de
residências, demolições de estruturas residenciais construídas sem permissão de
Israel (frequentemente quase impossíveis de obter) e despejo forçado de
famílias palestinas”.
Falk informa que, submetidos a essas leis opressivas, 11 mil
palestinos perderam seu direito de viver na cidade desde 1996.
Relatórios vazados de diplomatas da União Europeia admitem que a
limpeza étnica está crescendo em Jerusalém Oriental, obrigando os palestinos a se
mudarem para a Cisjordânia em busca de condições menos duras. E se veem
frustrados.
Ali, a região é cortada por rodovias exclusivas para judeus e
palestinos (muito piores) e por postos de controle nas entradas das cidades.
Outro obstáculo à livre circulação dos palestinos em sua própria terra
é a Lei do Passe, similar à que existia no regime de apartheid na África do
Sul.
Criada em abril de 2002, essa lei impôs a divisão da Cisjordânia em
oito áreas, entre as quais os palestinos não poderiam circular sem um passe,
conferido pelas autoridades israelenses de forma restritiva.
Por fim, o muro de separação, construído por Ariel Sharon,
teoricamente por motivos de segurança, é outra forma de infernizar a vida dos
palestinos.
Em vez de seguir exatamente a fronteira com a Cisjordânia, ele entra
por ela adentro, cortando cidades palestinas ao meio e até casas e plantações
de palestinos.
Tudo para incluir uma série de assentamentos até mesmo ilegais e, mais
importante, todos os aquíferos da região, deixando os palestinos com pouca
água, que sobra na parte israelense, onde há até piscinas.
A expansão dos assentamentos também se insere no quadro da limpeza
racial. Quanto mais casas são construídas em assentamentos menos terrenos
sobram para a construção de casas para famílias palestinas.
Que estão sendo empurradas para fora das melhores terras da
Cisjordânia, onde se localizam os assentamentos. Nunca os assentamentos
estiveram tão em alta como nos últimos nove meses, o prazo das negociações de
paz.
Recentemente, Mahmoud Abbas, presidente da Autoridade Palestina,
apresentou ao presidente Obama um mapa mostrando que somente nesse prazo foram
construídas 11 mil casas em assentamentos.
O movimento judaico de direitos humanos Paz Agora informa que o atual
governo de direita promoveu três vezes mais construções na Cisjordânia e
Jerusalém Oriental do que qualquer outro na história de Israel.
Aqueles que negam a existência de apartheid em Israel argumentam que
as restrições impostas aos palestinos na Cisjordânia existem por razões de
segurança. Não teriam origem racial.
No entanto, como já se viu aqui, as medidas discriminatórias na área
da habitação nada têm a ver com segurança.
Demolir a casa de um palestino porque sua licença de construção não
estava em ordem não vai impedir um atentado ou algo semelhante. Apenas criará
um problema terrível para a família dos moradores.
Mas, como o próprio Richard Falk admite, o objetivo das medidas
punitivas é pressionar os palestinos a deixarem a região.
Trata-se, portanto, de limpeza étnica, não propriamente de apartheid,
embora sua gravidade não seja menor.
Avigdor Lieberman, Ministro do Exterior e líder de um partido de
extrema-direita, foi mais longe.
Propôs que as cidades israelenses de maioria árabe passassem para o
futuro Estado Palestino, num eventual acordo de paz. Quer seus habitantes
quisessem ou não.
Talvez seja ainda mais grave o fato de os advogados do governo
saudarem a ideia de Lieberman. E rejeitarem as críticas de especialistas em
direito internacional.
No entanto, há estudiosos que definem o apartheid de forma mais
simples: como um regime onde habitantes de uma raça são perseguidos e tratados
como cidadãos de segunda classe, através de leis discriminatórias.
Por tudo que já vimos, Israel estaria dentro. Vale citar uma lei cujo
conteúdo não deixa dúvidas sobre seu caráter racista.
A chamada Lei do Casamento – editada pelo Knesset (parlamento de
Israel) em 2011 – impede que um palestino oriundo da Cisjordânia, ao casar com
uma judia israelense, adquira a cidadania israelense (como seria de direito nos
países democráticos do Ocidente). Quanto a seus filhos nascidos em Israel, só
podem ficar no país até os 12 anos.
Se aceita a definição da Corte Internacional de Justiça, é discutível
que haja apartheid em Israel. O mesmo não se diria quanto à acusação de limpeza
étnica.
Pela outra definição, as dúvidas desaparecem. Veja o que dizem alguns
israelenses que concordam com ela.
Yossi Sarid, antigo Ministro da Educação (2008): “O que age como
apartheid, é governado como apartheid e tiraniza como apartheid não é um pato –
é apartheid. O que nos deveria assustar não é a definição da realidade, mas a
própria realidade”.
Shulamit Aloni, antigo Ministro da Educação (2007): “O Estado de
Israel pratica a sua própria e muito violenta forma de apartheid contra a
população nativa palestina”.
Luiz Eça é jornalista.
Website: Olhar o Mundo.
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