A direita reclama uma suposta elegia. A esquerda vê um filme de direita
estrategicamente lançado meses antes das eleições deste ano.
Por Léa Maria Aarão Reis
Esta semana completa um mês em cartaz o filme de João Jardim, Getúlio,
nas principais telas do país. Nas salas, de modo geral, poucos são os
espectadores. A fraca receita de bilheteria de um filme com Tony Ramos prova
que, mesmo com um ator popular, a crise que atinge o cinema em todas as partes
do mundo é para valer. Na abertura do Festival de Cannes, há dias, anunciou-se
uma queda de 5% de público, ano passado, na França – país cinéfilo por
excelência.
Mas o filme de João Jardim, de 50 anos, egresso do núcleo de produção
de novelas e minisséries de Carlos Manga na Globo - foi lá que ele amadureceu
como documentarista antes de dirigir Pro dia nascer feliz, o festejado Janela
da Alma e Lixo extraordinário, este premiado em Berlim – mesmo assim segue
adiante e deve permanecer no circuito algum tempo.
O polêmico e vasto personagem de Getúlio Vargas continua exercendo
notável fascínio entre os de idade cujos anos de juventude foram vividos
durante o seu segundo governo, o democrático, de 1951 a 1954. Não poderia ser
diferente. Os mais idosos guardam a memória também do período em que foi
ditador do país, entre 1930/1945. E os mais moços mostram um grande interesse
pela figura deste que, como ressalta o sociólogo Francisco de Oliveira,
"enfiou seu projeto goela abaixo da burguesia paulista e se firmou como
estadista da nossa história, à revelia dessa plutocracia."
Quer queiram ou não as plutocracias, de então e de hoje, Getúlio foi o
fundador do estado brasileiro moderno e o grande patrocinador do
desenvolvimento nacional "mesmo que a elite paulista não admita
jamais." (Chico Oliveira em Carta Maior/2009).
A semificção de Jardim, coprodução da Globo Filmes, faz um recorte
naturalista na narrativa da vida de Vargas. Ela se passa durante os 19 dias que
antecederam sua morte, antes do suicídio, antes de sair da vida para entrar na
história - entrou pela porta da frente, é forçoso dizer -, e a partir do
atentado ao jornalista, então não declarado postulante à presidência do país –
ou por outra; da plutocracia -, Carlos Lacerda, em Copacabana. Como o filme
trata de personagens reais e por causa das polêmicas que hoje cercam as
biografias, o diretor tem comentado sobre os riscos e a dificuldade para obter
autorizações dos herdeiros exigidas pela Agência Nacional de Cinema (Ancine).
Além da família Vargas – Alzira, D. Darcy, Lutero, Benjamin (o Beijo)
-, Gregório Fortunato, Carlos Lacerda (o Corvo), e Café Filho, Tancredo Neves,
Afonso Arinos, Zenóbio e os militares - alguns traidores; outros trabalhando
naqueles grupos conspiradores que ressurgem ainda hoje nos períodos que
antecedem eleições.
Diz Getúlio em diálogo com a filha: militares agem sempre como
militares; é assim que funcionam.
Todos estão no filme iluminado com a bela luz do excelente Walter
Carvalho. As imagens fotografadas no interior do Palácio do Catete em que brilha
a direção de arte requintada de Thiago Marques são primorosas. O roteiro de
George Moura, Teresa Frota e do próprio diretor, porém, é condensado,
superficial. Lista um caleidoscópio de informações e deixa no ar o espectador
que não conhece os meandros do episódio do atentado da Tonelero. O lado de lá.
Passa por cima do contexto interno e externo da época.
Embora faça imenso esforço para entrar na pele de Getúlio, Tony Ramos,
contido e aplicado, não convence. Mostra semelhança com Vargas em alguns raros takes
por conta da iluminação de Carvalho. Mas não é fácil fazer Getúlio Vargas,
personagem imenso, complexo, homem discreto, porém comunicativo, e mais
reservado nos últimos anos de vida. Ramos se desdobrou. Mas não chega lá.
Drica Moraes mostra, mais uma vez, ser ótima e sensível atriz fazendo
Alzirinha, a inteligente, amorosa e dedicada filha de Vargas, sua interlocutora
e confidente, que sobreviveu, com Lutero, Maneco e Jandira à morte do irmão
Getulinho, aos 23 anos.
O elenco de apoio de Getúlio é correto. Mas o ator Alexandre Borges,
embora também esforçado, não consegue espumar o ódio visceral do fundador do
jornal Tribuna da Imprensa que acabou perdedor no jogo da feroz disputa com
Getúlio. Um ódio tal, quase improvável de se transformar em dramaturgia.
Construiu, mas não irrigou o golpe que acabou sendo adiado por dez anos.
A paixão que envolve a figura de Getúlio permanece inclusive nas
críticas a esta recriação de Jardim e sua equipe. A direita presbíope força as
referências do mar de lama - expressão apocalíptica cunhada por Lacerda – com a
Ação 470. Reclama uma suposta elegia a Getúlio. Gato escaldado, a esquerda vê
neste Getúlio um filme lançado estrategicamente meses antes das eleições
presidenciais deste ano. Um filme de direita.
Um rapaz bem jovem, na saída de uma última sessão noturna com apenas
dois espectadores comentava pelos corredores do shopping: "Mas fizeram de
Getúlio um bobalhão, neste filme!"
Mas então o que é Getúlio? Uma série caprichada de televisão, no
modelo de Agosto – produção do núcleo de Manga, da Globo? Inconsistente,
elegante, seu mérito maior é o de representar um começo, uma porta aberta para
que sejam produzidos muitos outros filmes sobre o mais fascinante e trágico
personagem da história política do país.
Um Janus que, no mito, é o símbolo da transição do velho para o novo.
Do país arcaico da plutocracia paulista de que fala Francisco Oliveira para o
Brasil dos movimentos sociais da Avenida Paulista.
Fonte: Opera Mundi
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