Adesão militar ao golpe não foi natural. Para construí-la,
EUA atuaram três anos, em ambiente de Guerra Fria, a pretexto de “evitar uma
nova Cuba”
Por Luiz Alberto Moniz Bandeira
A partir da vitória da Revolução Cubana, em 1960, as atenções dos
Estados Unidos voltaram-se mais e mais para a América Latina. A Junta
Interamericana de Defesa (JID), por sugestão dos Estados Unidos, aprovou a
Resolução XLVII, em dezembro daquele ano, propondo que as Forças Armadas,
consideradas a instituição mais estável e modernizadora no continente,
empreendessem projetos de “ação cívica” e aumentassem sua participação no
“desenvolvimento econômico e social das nações”. Pouco tempo depois, em janeiro
de 1961, ao assumir o governo dos Estados Unidos, o presidente John F. Kennedy
(1961 – 1963) anunciou sua intenção de implementar uma estratégia tanto
terapêutica quanto profilática, com o objetivo de derrotar a subversão, onde
quer que se manifestasse. E o Pentágono passou a priorizar, na estratégia de
segurança continental, não mais a hipótese de guerra contra um inimigo externo,
extracontinental (União Soviética e China), mas a hipótese de guerra contra o
inimigo interno, isto é, a subversão. Essas diretrizes, complementando a
doutrina da contra-insurreição, foram transmitidas, através da JID e das
escolas militares no Canal do Panamá, às Forças Armadas da América Latina,
região à qual o presidente Kennedy repetidamente se referiu como the most
critical area e the most dangerous area in the world ["a área mais
crítica" e "a área mais perigosa no mundo"].
O surto de golpes desfechados pelas Forças Armadas no continente a
partir de então decorreu não somente de fatores domésticos, mas, sobretudo, da
mudança na estratégia de segurança do hemisfério pelos Estados Unidos. O
objetivo da intervenção das Forças Armadas no político era o alinhamento às
diretrizes de Washington dos países que se recusavam a romper relações com
Cuba.
Embora golpes de Estados fossem quase rotineiros na América Latina, os
que ocorreram a partir de 1960 não decorreram das políticas nacionais. Antes,
constituíram batalhas da Terceira Guerra Mundial oculta [hidden World War
Three], um fenômeno de política internacional, resultante da Guerra Fria. E aí
era necessário criar as condições objetivas, tanto econômicas quanto sociais e
políticas, que compelissem as Forças Armadas a desfechá-los. A essa tarefa, a
CIA se dedicou, através de spoiling operations, operações de engodo, uma das
quais consistia em penetrar nas organizações políticas, estudantis,
trabalhistas e outras para induzir artificialmente a radicalização da crise e
favorecer a derrubada do governo por meio de um golpe militar.
No Brasil, desde que os comandantes das Forças Armadas não conseguiram
impedir que o vice-presidente João Goulart, do Partido Trabalhista Brasileiro
(PTB), assumisse o governo, em agosto de 1961, em virtude da renúncia do
presidente Jânio Quadros, a CIA começou a dar assistência aos diversos setores
da oposição que conspiravam para derrubá-lo. Em 1962, a CIA gastou entre US$ 12
milhões e US$ 20 milhões financiando a campanha eleitoral de deputados de
direita, através de organizações que seus agentes criaram, como o Instituto
Brasileiro de Ação Democrática (Ibad) e a Ação Democrática Parlamentar. O
número de deputados cuja campanha essas e outras frentes da CIA elegeram não
compensou. Mas as spoiling operations prosseguiram.
Em meados de 1963, o Pentágono tratou de elaborar vários planos de
contingência a fim de intervir militarmente no Brasil caso o presidente João
Goulart, reagindo às pressões econômicas dos Estados Unidos, inflectisse mais
para a esquerda, ultranacionalista, no estilo do governo do presidente Getúlio
Vargas.
Mais ou menos à mesma época, em 13 de junho de 1963, a Embaixada do
Brasil em Washington, sob a chefia do embaixador Roberto Campos, enviou ao
Itamaraty o documento Política Externa Norte-Americana – Análise de Alguns
Aspectos, anexo 1 e único ao Ofício nº 516/900 (Secreto), no qual comentou que
as pressões do Pentágono estavam a levar os Estados Unidos a reconhecer e a
cultivar “relações amistosas com as piores ditaduras de direita”, pois “do
ponto de vista dos setores militares de Washington tais governos são muito mais
úteis aos interesses da segurança continental do que os regimes
constitucionais”.
Os agentes da CIA, entrementes, executavam as mais variadas
modalidades de operações políticas (PP), covert actions [ações encobertas] e
spoiling actions. Em 12 de setembro de 1963, cabos, sargentos e suboficiais,
principalmente da Aeronáutica e da Marinha, liderados pelo sargento Antônio
Prestes de Paulo, sublevaram-se, em Brasília, e ocuparam os prédios da Polícia
Federal, da Estação Central da Rádio Patrulha, da Rádio Nacional e do
Departamento de Telefones Urbanos e Interurbanos. O movimento serviu como
provocação e contribuiu para colocar a oficialidade das Forças Armadas a favor
do golpe de Estado. A campanha da CIA prosseguiu, instigando greves tanto nas cidades
como nas fazendas, e com outras ações, cada vez mais radicais, para que
caracterizassem uma guerra revolucionária, denunciada pelo deputado Francisco
Bilac Pinto, da UDN, em vários discursos na Câmara Federal, nos quais acusava o
presidente Goulart de apoiá-la. E, a fim de que se afigurasse uma insurreição
comunista em andamento, entre 25 e 27 de março de 1964, José Anselmo dos
Santos, conhecido como “cabo Anselmo”, mas na verdade um estudante
universitário infiltrado entre os marinheiros pelo Centro de Informações da
Marinha (Cenimar) em colaboração com a CIA, liderou centenas de marinheiros,
que decidiram comemorar o aniversário da Associação dos Marinheiros e
Fuzileiros Navais, desacatando a proibição do ministro da Marinha, almirante
Sílvio Mota, e correram para a sede do Sindicato dos Metalúrgicos, no Rio de
Janeiro, a fim de comprometer os trabalhadores com o movimento. Os fuzileiros,
enviados para invadir o sindicato, desalojar e prender os marinheiros,
terminaram por aderir ao motim. O Exército teve de intervir para sufocá-lo.
O episódio visou a encenar uma repetição da revolta no encouraçado
Potemkin, que desencadeou na Rússia a revolução de 1905. Esse motim agravou os
efeitos da revolta dos sargentos e empurrou o resto dos oficiais legalistas
para o lado dos conspiradores. As Forças Armadas não podiam aceitar a quebra da
hierarquia e da disciplina. Goulart já havia perdido então quase todo o
respaldo militar. Entre 31 de março e 1° de abril, ele ouviu de muitos oficiais
superiores que eles não estavam contra seu presidente, mas “contra o
comunismo”, fantasma que servia como pretexto ao golpe.
Quatro dias antes do golpe, o embaixador dos Estados Unidos, Lincoln
Gordon, telefonou a Washington e demandou o envio de petróleo e lubrificantes
para facilitar as operações logísticas dos conspiradores, além do deslocamento
de uma força naval. Em 30 de março, a estação da CIA no Brasil transmitiu a
Washington, segundo fontes em Belo Horizonte, que “uma revolução levada a cabo
pelas forças anti-Goulart terá curso esta semana, provavelmente em poucos
dias”, e marcharia para o Rio de Janeiro. No mesmo dia, no momento em que o
presidente João Goulart discursava para os sargentos no Automóvel Club, o
secretário de Estado, Dean Rusk, leu para o embaixador Lincoln Gordon, por
telefone, o texto do telegrama n° 1.296, sugerindo que, como os navios
carregados de armas e munições não podiam alcançar o Sul do Brasil antes de dez
dias, os Estados Unidos poderiam enviá-las por via aérea. Ele receava que
naquelas poucas horas houvesse uma acomodação, o que seria deeply embarrassing
para o governo norte-americano.
O motim dos marinheiros, em 26 de março, constituiu a provocação que o
general Humberto de Alencar Castello Branco esperava para induzir a maioria dos
militares a aceitar a ruptura da legalidade. O golpe estava previsto para
depois da Marcha da Família com Deus pela Liberdade, no Rio de Janeiro, marcada
para 2 de abril e financiada pela CIA. Porém, o general Olímpio Mourão Filho,
comandante da IV Região Militar, com sede em Juiz de Fora (MG), afoitou os
acontecimentos.
Os militares brasileiros, decerto, não teriam desfechado o golpe se
não contassem com a cobertura dos Estados Unidos. Porém, para que os Estados
Unidos pudessem fornecer ajuda militar, seria preciso dar aparência de
legitimidade ao golpe. E por telefone, de seu rancho no Texas, em 31 de março,
o presidente Lyndon B. Johnson deu luz verde ao secretário de Estado assistente
para a América Latina, Thomas Mann.
O golpe de Estado estava consumado, coadjuvado pelo senador Auro de
Moura Andrade, que declarou, ilegalmente, a vacância da Presidência. O deputado
Pascoal Ranieri Mazzilli, o primeiro na linha de sucessão como presidente da
Câmara Federal, assumiu o governo. Não se observou nenhuma formalidade legal.
Não obstante, o embaixador Lincoln Gordon recomendou ao Departamento
de Estado o reconhecimento do novo governo e o presidente Lyndon B. Johnson
telegrafou imediatamente a Mazzilli para felicitá-lo. O reconhecimento
diplomático era um dos elementos necessários para o estabelecimento da
autoridade do governo. O objetivo da pressa fora justificar o atendimento a
qualquer pedido de auxílio militar por parte do novo governo.
O golpe de Estado que derrubou em 1964 o presidente João Goulart e se
autoproclamou “Revolução Redentora” tipificou o conjunto das operações que a
CIA desenvolveu e aprimorou. No seu diário, o agente da CIA Philip Agee, então
alocado em Montevidéu, assinalou que a queda de Goulart fora, “sem dúvida,
devida amplamente ao planejamento cuidadoso e a campanhas consistentes de
propaganda que remontaram pelo menos à eleição de 1962″. Goulart sabia-o. Ao
chegar a Brasília, em 1° de abril, ele disse ao deputado Tancredo Neves que a
CIA havia inspirado a sublevação, reiterando o propósito de não se render. E
seguiu para o Rio Grande do Sul onde percebeu que também não havia condições de
resistência.
A satisfação foi tão grande em Washington que, em 3 de abril, às
12h26, o secretário de Estado assistente para a América Latina,Thomas Mann,
telefonou para o presidente Lyndon B. Johnson: “Espero que esteja tão
satisfeito em relação ao Brasil quanto eu”. Johnson respondeu: “Estou”. Mann
continuou: “Acho que é a coisa mais importante que aconteceu no hemisfério em
três anos”. Johnson arrematou: “Espero que nos deem algum crédito em vez do
inferno”.
Fonte: Outras Palavras
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