Além de não representar
ameaça militar ou econômica, Rússia suportou provocações em série. Mas
militares, petroleiras e mídia querem fabricar um demônio
Por Roberto Sávio | Tradução: Antonio Martins
Faz várias semanas,
agora, que toda a mídia mainstream está engajada em denunciar primeiro a
suposta ação de Putin na Crimeia – e em seguida, na Ucrânia. A última capa de
The Economist mosta um urso engolindo a Ucrânia, sob o título “Insaciável”. A
unanimidade na mídia é sempre constrangedora, porque significa algum ato de
dobrar joelhos. Será possível que os quarenta anos de Guerra Fria estejam sendo
ressuscitados?
A inércia desta
guerra, na verdade, nunca foi rompida. Diga “o presidente comunista de Cuba,
Raúl Castro”, e ninguém ficará chocado. Use a mesma lógica, e chame o
presidente Obama de “capitalista” e repare nas reações. Na Itália, Sílvio
Berlusconi foi capaz, durante vinte anos, de ganhar as eleições contra a
“ameaça” do comunismo – representada, segundo ele, pelo partido à esquerda,
agora no poder, sob Matteo Renzi, um católico devoto.
No caso da Ucrânia, há
pelo menos quatro pontos fulcrais de análise que estão sendo ocultados pelo
coro de mídia. O primeiro é que nunca se mencionam as responsabilidades do
Ocidente no caso. Deveríamos lembrar que Mikhail Gorbachev, presidente russo ao
final dos anos 1990, negociou com os chefes de Estado dos EUA (Ronald Reagan),
Grã-Bretanha (Margareth Thatcher), Alemanha (Helmut Kohl) e França (François
Mitterrand) que aceitaria a reunificação da Alemanha; mas que que o Ocidente,
em contrapartida, não deveria tentar invadir a área de influência da Rússia.
Sobre isso, há grande quantidade de documentos.
Mas assim que
Gorbachev foi eliminado, o jogo foi reaberto. A total docilidade de Boris
Yeltsin, seu sucessor, diante dos Estados Unidos, é bastante conhecida. Muito
menos debatido é o fato de o Fundo Monetário Internacional ter oferecido um
empréstimo de 3,5 bilhões de dólares, para sustentar o rublo. O empréstimo,
porém, foi dirigido ao Bank of America, que o distribuiu entre várias contas
russas. Nenhum centavo chegou ao Banco Central russo. O dinheiro desembarcou
nas contas de oligarcas, que puderam comprar praticamente todas as empresas
públicas russas. Em seu livro Farewell Russia, Gioulietto Chiesa explica o
processo em detalhes. E o FMI jamais sequer balbuciou um protesto. Quando um
desconhecido Vladimir Putin foi levado ao poder por Yeltsin, ele foi obrigado a
aceitar um acordo de proteção aos oligarcas.
Depois de Yeltsin,
Putin apoiou a invasão iminente do Afeganistão por Washington, de uma forma que
teria sido inimaginável durante a Guerra Fria. Aceitou que aviões
norte-americanos sobrevoassem o espaço aéreo da Rússia, que os EUA usassem as
bases militares nas repúblicas da ex-União Soviética na Ásia Central, e ordenou
aos militares que compatilhassem sua experiênia no Afeganistão. Então, em
novembro de 2001, Putin visitou George Bush em seu rancho no Texas, em meio a
declarações amistosas (“Putin é um novo líder que ajuda a paz mundial…
trabalhando em proximidade com os Estados Unidos”). Poucas semanas depois, Bush
anunciou que os EUA estavam abandonando o Tratado de Mísseis Anti-balísticos,
para poder construir um sistema de guerra no espaço destinado, em palavras a
proteger a OTAN do… Irã. Era uma ação claramente voltada, na prática, contra a
Rússia, para espanto de Putin.
Na sequência, em 2002,
Bush convidou sete nações da ex-União Soviética – entre elas, Estônia, Lituânia
e Letônia – a somar-se à OTAN, o que se concretizou em 2004. Em 2003, a invasão
do Iraque, sem consentimento da França, Alemanha e Rússia, transformou Putin
num crítico aberto dos Estados Unidos e de sua proposta de promover a
democracia passando por cima do direito internacional. No mesmo ano, na
Geórgia, a Revolução Rosa levou Saakashvili, um pró-ocidental, ao poder. Quatro
meses depois, na Ucrânia, a Revolução Laranja empoderou outro presidente
pró-ocidental, Yushcenko. Em 2006, a Casa Banca pediu permissão para reabastecer
o avião de Bush em Moscou, mas deixou claro que Bush não teria tempo para
saudar Putin. E em 2008, houve a declaração unilateral de independência de
Kososo da Sérvia, com o apoio dos Estados Unidos e contra as posições da
Rússia. Então, Bush pediu à OTAN para incorporar a Ucrânia e a Geórgia – um
tapa na cara de Moscou. Em face disso, não deveria ter causado surpresa o gesto
de Putin, que interveio militarmente na Geórgia em 2008, quando este país
tentou incorporar as regiões da Ossétia do sul e Abkhazia, de maioria russa.
Ainda assim, é fácil lembrar que a mídia tratou o movimento como ação sem
motivos.
Obama tentou reparar
os danos provocados por Bush nas relações internacionais dos EUA. Ele propôs
uma retomada (“reset”) nas relações com a Rússia, que foi, de início, bem
sucedida. Moscou aceitou oferecer seu espaço aéreo para transporte de
suprimentos militares norte-americanos destinados ao Afeganistão. Em 2010, a
Rússia e os Estados Unidos assinaram um novo tratado Start, reduzindo seu
arsenal nuclear. E a Rússia apoiou as sanções aprovadas pela ONU contra o Irã,
desistindo de vender seis mísseis terra-ar S/300 ao Teerã.
Mas logo a seguir, em
2011, tornou-se claro que os Estados Unidos tentaram intervir nas eleições
parlamentares russas. Toda a mídia ocidental colocou-se contra Putin, que
acusou os EUA de financiarem, com centenas de milhões de dólares, grupos
oposicionistas. O embaixador norte-americano, McFaul, afirmou tratar-se de um
grande exagero, e acrescentou que apenas algumas dezenas de milhões de dólares
haviam sido doados a grupos da sociedade civil. Putin foi eleito novamente para
a presidência em 2012 [após quatro anos como primeiro-ministro], já então
obcecado com as ameaças ocidentais a seu poder. Em 2013, ele deu asilo ao
ex-agente norte-americano Edward Snowden. Em represália, Obama cancelou um
encontro bilateral – a primeira vez em que uma reunião de cúpula entre
Washington e Moscou foi desmarcada, em cinquanta anos.
Em meio a tudo isso,
houve a Primavera Árabe. A Rússia autorizou ação militar na Líbia, mas apenas
para garantir ajuda humanitária. Ela foi utilizada para provocar mudança de
regime, e Moscou sentiu-se enganada. Protestou, inutilmente. Então, surgiu a
crise na Síria e o Ocidente tentou obter novamente o apoio da Rússia para uma
mudança de regime – irritando-se com a recusa de Putin. Finalmente, agora,
houve a bem conhecida intervenção na Ucrânia, para colocar o país na União
Europeia e distante do bloco econômico eurasiano que a Rússia tenta criar.
O segundo ponto é que
nenhuma ação política, exceto uma guerra, pode reduzir a Rússia à condição de
um poder apenas local. É o maior país do mundo, em território. Estende-se das
fronteiras da União Europeia até o Extremo Oriente. É, ao mesmo tempo, Europa e
Ásia. Mantém rivalidade com a China na Ásia, tem conflitos territoriais com o
Japão e está diante dos EUA no Estreito de Behring. É um produtor destacado de
petróleo, membro permanente do Conselho de Segurança da ONU e tem um arsenal
nuclear. Qualquer esforço para cercá-la ou enfraquecê-la, agora que o confronto
ideológico ficou para trás, só pode ser visto como parte da velha política
imperial.
A Rússia não é uma
ameça, ao contrário da União Soviética. Seu PIB é 15% da Europa – que tem 500
milhões de habitantes e 16% das exportações mundiais. A China tem 1,3 bilhão de
habitantes, e 9% do comércio mundial. A Rússia, apenas 145 milhões e 2,5% das
exportações mundiais. Tem poucas indústrias, também porque Putin não está
interessado na modernização do país, que inevitávelmente produziria um
crescimento da classe de profissionais instruídos, que já se opõe a ele.
O terceiro ponto é
que, portanto, a crise ucraniana deveria ser examinada melhor. É um Estado
muito frágil, em que a corrupção controla a política e que vive problemas
econômicos estruturais. Seu Oeste é mais rural; o Leste, mais industrializado.
Os trabalhadores desta região sabem que um ingresso na Europa representaria o
fim de muitas fábricas. No Oeste, muitos colocaram-se ao lado dos nazistas na II
Guerra Mundial e há um movimento nacionalista forte, próximo ao fascismo. A
Ucrânia é um problema muito caro e complicado.
É evidente que
intervir apenas para desafiar Putin, e oferecer dinheiro (basicamente, o que
fez a União Europeia) parece um pensamento muito tacanho. Estaria a UE
preparada para mudar os critérios de pertencimento ao bloco, para aceitar um
país que claramente não se adequa a eles; e a assumir um enorme peso, para
aparecer como vencedora, na disputa contra um “homem forte”?
Isso finalmente nos
leva ao quarto ponto. Putin é um ex dirigente da KGB, para quem a Rússia foi
tratada injustamente, na dissolução da União Soviética. Todos os esforços para
chegar a um entendimento com o Ocidente foram traídos, com sucessivas
ampliações da OTAN, uma rede de bases militares cercando o país, um claro apoio
do Ocidente a todas as oposições, um tratamento comercial medíocre. Ele sabe
que estas opiniões sobre o declínio russo são compartilhadas por uma ampla
maioria de cidadãos. Mas ele também é um autocrata arrogante, para dizer o
menos, que nada tem feito para promover modernização econômica – porque, ao
manter a produção e o comércio em suas mãos, conserva seu controle.
Para ele, a Ucrânia
foi politicamente inaceitável. Ele está apresentando-se como defensor dos
cidadãos russos, algo que lhe permite atuar em todos os lugares onde há
minorias russas. A questão é: se Putin se for, haverá uma Rússia democrática,
participatória, limpa, incorrompida? Aqueles que conhecem bem o país não
acreditam nesta hipótese. Há inúmeros exemplos de que a remoção de autocratas
não conduz à democracia por si mesma.
Portanto, haveria
lógica em continua a cercar Putin, em nome da democracia? Isso não fortaleceria
o próprio jogo do presidente, que associa sua imagem à de defensor dos russos?
Eles também sofrem com a inércia da Guerra Fria e não veem o Ocidente
exatamente como um aliado. Putin é hoje a única força de coesão na Rússia. Se
ele se fosse, haveria, muito provavelmente, um longo período de caos. Isso
certamente não interessa aos cidadãos russos… e é sempre perigoso praticar
jogos de poder sem levar em conta a estabilidade da Europa… Claro, este não é o
cálculo dos estrategistas ocidentais, que adorariam eliminar qualquer outro
poder…
Como escreve Naomi
Klein, o único vencedor, nesta disputa, são as empresas de energia. Elas estão
fazendo campanha para que o mundo torne-se independente do petróleo russo.
Portanto, vamos acelerar a produção petroleira nos EUA, a despeito dos notórios
prejuízos ao ambiente. E vamos torcer para que a Europa deixe de usar gás russo
– “nós exportaremos para eles”. Na verdade, não há estruturas para fazê-lo e
seriam necessários muitos anos para criá-las… Mas exatamente no momento em que
o mundo debate como controlar a mudança climática, e reduzir o uso de
combustíveis fósseis, uma contra-estratégia importante é colocar o tema em
segundo plano… Tarzi Vittach, um autor do Sri Lanka, disse, certa vez: “no
fundo de tudo, há outra coisa”. Não há muitos exemplos de petróleo e democracia
caminhando lado a lado…
Fonte: Outras Palavras
Nenhum comentário:
Postar um comentário