Cumplicidade com genocídio dos palestinos marca declínio do
Ocidente. E cada criança morta é um prego no caixão da velha democracia
Por Nuno Ramos de Almeida
Em 1899, os Estados
Unidos da América discutiam no Congresso a anexação das antigas colônias
espanholas que tinham lutado pela sua independência, nomeadamente as Filipinas.
Nessa altura, o poeta britânico Rudyard Kipling escreveu um poema apologético
para declarar que o facho da civilização tinha passado das mãos do Reino Unido.
“O Fardo do Homem Branco” defendia que passara a caber a Washington tratar dos
selvagens para o bem deles, sem contar com o seu agradecimento. Os nativos do
mundo tinham de ser dirigidos pelas potências ocidentais. Eram homens
inferiores, de civilizações fracas que precisavam de ouvir a voz do dono. Os
agitadores deviam ser castigados e eliminados, se necessário por meios
violentos. Os selvagens deviam ser controlados, para seu bem. Assim começava a
declaração de bondade civilizadora:
Tomai o fardo do Homem
Branco,
Enviai vossos melhores
filhos.
Ide, condenai seus
filhos ao exílio
Para servirem aos seus
cativos;
Para esperar, com
arreios
Com agitadores e
selváticos
Seus cativos, servos
obstinados,
Metade demônios,
metade crianças.
Entre o consenso dos
meios de comunicação e dos poderosos, houve um homem que não se calou. O
escritor que assinava Mark Twain, autor das As Aventuras de Huckleberry Finn,
respondeu com um artigo em plena euforia “civilizadora”, quando os poderosos
norte-americanos abriam garrafas de champanhe pela anexação das ilhas do Havaí,
de Samoa e das Filipinas, de Cuba, Porto Rico e de uma ilhota que se chama,
eloquentemente, dos Ladrões. Perante isto, Mark Twain faz uma singela proposta,
pede que se mude a bandeira nacional: que sejam negras, diz, as listas brancas,
e que umas caveiras com tíbias cruzadas substituam as estrelas e assumam a
verdadeira identidade de piratas.
Em pleno século XXI
pouco mudou. Somos governados por piratas: a cumplicidade dos governos ditos
civilizados, e da sua obediente comunicação social, com o genocídio dos
palestinos, é reveladora da manutenção da ideia de que há seres humanos mais
humanos que outros. Os palestinos são para essa gente verdadeiros homo sacer,
que podem ser mortos e torturados, segundo o direito romano nos tempos do
Império, sem nenhuma sanção legal ou moral. Há gente que acha que Israel é uma
democracia e por isso tem o direito de assassinar crianças palestinas. Há
colaboracionistas ditos de esquerda que defendem que, como em Israel a situação
dos gays e das mulheres é melhor que nos países árabes, as tropas hebraicas têm
licença para destruir as casas palestinianas e matar as mulheres e crianças de
Gaza.
Ironia da história, a
operação ideológica que permite aos assassinos justificar o sangue derramado é
a mesma que permitia aos nazistas justificar aos alemães a solução final. Para
os nazis, os judeus eram sub-humanos, e por isso podiam ser mandados para as
câmaras de gás; para os “democratas ocidentais” os palestinos são criaturas
culpadas pela sua morte e as bombas israelitas são a garantia da paz.
A atitude de apoio ao
genocídio dos governos europeus põe em causa a própria democracia. Nem todos
chegam ao nível de sabujice reles do líder socialista francês François
Hollande, que proíbe manifestações contra a invasão israelita em Paris e manda
a polícia de choque disparar contra os manifestantes, mas é preciso dizer que
uma democracia não é definida pela forma como trata os poderosos, mas pela
forma como trata os mais desprotegidos. Israel não é uma democracia, não porque
não trata bem os judeus, mas porque funciona como um regime de apartheid para a
sua população árabe e como um regime nazi para os palestinos. O mesmo sucede
com a Europa Ocidental: não existirá democracia enquanto permitirmos, sem
reagir, o massacre dos palestinos. A luta pela paz e uma Palestina independente
é um combate pela nossa liberdade e pela afirmação dos seres humanos contra as
bestas.
Fonte: Outras Palavras
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