Por Humberto Mariotti*
O brasileiro é
um narciso às avessas, que cospe na própria imagem. Eis a verdade: não encontramos
pretextos pessoais ou históricos para a auto-estima. (Nelson
Rodrigues)
Este tema é
recorrente entre nós, e tanto mais recorrente quanto é grande a nossa tendência
a oscilar entre períodos de euforia (que, como se sabe, costumam coincidir com
vitórias esportivas) e fases de autodesvalorização (que, como também se sabe,
costumam ser mais prolongadas e ligadas a muitas outras situações e eventos).
O "complexo de vira-lata"
É difícil falar
do Brasil e da nossa cultura sem repisar temas e conceitos muito batidos, muitos
deles já transformados em lugares-comuns. De todo modo, mencionemos dois deles.
O primeiro é a "tristeza" do brasileiro, conceito elaborado por
Eduardo Prado, que permeia algumas de nossas formas de expressão artística,
como a música de Villa-Lobos. O outro, ligado ao anterior, é a nossa baixa
auto-estima, que, como já foi dito, costuma se alternar com momentos de euforia
e ufanismo.
Essa
auto-estima diminuída mereceu do escritor e dramaturgo Nelson Rodrigues a
denominação de "complexo de vira-lata". Em suas palavras: "Por
'complexo de vira-lata' entendo eu a inferioridade em que o brasileiro se
coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo". Ao contrário do que
muitos pensam, essa designação não é gratuitamente pejorativa. Na verdade, ela
expressa a indignação do escritor contra uma condição de nossa cultura que em
sua opinião poderia ser revertida, como o foi no caso do futebol. Restam muitas
outras situações, também potencialmente reversíveis ao menos em boa parte por
meio da educação. Poucos duvidam de que hoje esse é o maior desafio da
sociedade brasileira.
O vira-lata se
satisfaz com o pouco que lhe dão, ou mesmo com o que não lhe dão mas que ele
consegue no dia-a-dia. Concessões mínimas, pequenas sobras são para ele grandes
vantagens. Conseguir ser atendido num posto de saúde, depois de longas esperas
em filas intermináveis, e atravessar o Atlântico para ganhar em euros, mesmo
sem grandes chances de mudar de patamar socioeconômico, são dois exemplos.
Trata-se, como já foi dito, de alimentar a sensação de que já se alcançou
alguma coisa numa população em que muitos nada conseguem.
Em seu clássico
ensaio Dialética do esclarecimento, cuja primeira edição é de 1944, os
filósofos alemães Theodor Adorno e Max Horkheimer resumem em poucas e incisivas
palavras uma das principais características da era industrial, que hoje, na
época dita "pós-moderna", infelizmente continua válida: "Cada um
vale o que ganha e ganha o que vale. Ele aprende por meio das vicissitudes de
sua existência econômica e não conhece nada mais".
Na década de
50, como observa Peter Drucker3, as pessoas costumavam se autodefinir pelo nome
da organização em que trabalhavam. Eram os "homens da companhia",
cuja história foi contada por Anthony Sampson4.
Já naquela
época, Drucker havia intuído que no futuro os indivíduos passariam a se definir
não pelas companhias em que trabalhavam, mas pela qualificação profissional
(isto é, pelo conhecimento) que tinham. Do "homem da companhia"
evoluiu-se para o knowledge worker - o trabalhador de conhecimento. Hoje, o
desligamento de uma corporação não destitui o indivíduo de sua identidade de
trabalhador de conhecimento. Aliás, nada consegue fazer essa destituição.
No Brasil e em
muitos outros países designados pelo eufemismo de "em
desenvolvimento", a idéia da importância do trabalhador de conhecimento
ainda não chegou com a amplitude e a profundidade que deveria. O desemprego tem
um efeito devastador sobre a vida do trabalhador cuja identidade ainda é
definida pelo fato de ele produzir energia mecânica, ou desempenhar tarefas
repetitivas em uma empresa. Quando o trabalhador de baixo ou nenhum grau de
qualificação (ou seja, de baixo ou nenhum conhecimento) perde o emprego, ele é
simplesmente alijado da cena social. Por isso, para muitos brasileiros o pouco
que se consegue já é muito; mas também daí vem a sua sensação de ser um cidadão
de segunda classe - o "complexo de vira-lata".
Vimos que, na
linha de raciocínio denunciada por Horkheimer e Adorno, se um indivíduo só
ganha o que vale e só vale o que ganha, quando ele não ganha nada ou ganha
muito pouco, seu valor é pouco ou nenhum. A legislação penal brasileira traduz
essa circunstância de modo implacável. Todos sabem que entre nós as penas
previstas para crimes contra o patrimônio são mais severas e mais duramente
aplicadas (quando o são) do que as penas para crimes contra a pessoa - em especial
quando o réu tem pouco ou nenhum dinheiro.