Por Lúcio Flávio Pinto
Reproduzido do Jornal Pessoal nº 528, 1ª quinzena/janeiro 2012
Saí satisfeito da apresentação que Isadora Mota do Amaral fez da sua
dissertação de conclusão do curso de direito da Universidade Federal do
Pará, no mês passado. A banca examinadora lhe conferiu a nota máxima.
Ela mereceu a aprovação unânime e eu fui ao campus da UFPA não apenas
porque o tema do seu trabalho era “O efeito silenciador do judiciário
paraense: o caso Lúcio Flávio Pinto à luz da jurisprudência da Corte
Interamericana de Direitos Humanos”.Minha satisfação se devia ao fato
de, finalmente, o meu “caso” receber uma análise jurídica. Pioneira e do
mais alto nível.
Esperei por esse momento desde que eu próprio tomei consciência do
significado do acúmulo de processos judiciais contra mim, a partir de
cinco ações sucessivas (quatro criminais e uma cível) propostas por
Rosângela Maiorana Kzan, diretora administrativa do grupo Liberal. Eu
era inocente e não sabia.
Minha experiência direta com a justiça se restringia a um processo
instaurado na Auditoria Militar de Belém. Fui enquadrado na terrível Lei
de Segurança Nacional e devidamente palmilhado pela Polícia Federal.
Meu crime tinha sido publicar matérias em O Liberal que
mostravam a violência usada pela polícia ao perseguir presos que
conseguiram fugir quando eram conduzidos à noite para “interrogatório”
na ilha de Cotijuba.
Quando as reportagens saíram, o governador Aloysio Chaves mandou
instaurar inquérito para apurar a violência dos policiais. Quando o
procedimento terminou, Paulo Ronaldo e eu estávamos incursos na LSN.
Fomos acusados de tentar indispor a população contra as autoridades.
A principal prova do delito? Colegas da imprensa tinham admitido diante
do presidente do inquérito, coronel PM Antonio Carlos Gomes, que
montaram as fotografias dos espancamentos e baleamentos dos presos para
provocar a reação. Paulo e eu dissemos a verdade: as cenas eram reais.
A conclusão da apuração era tão absurda que a Auditoria desqualificou o
crime, remetendo o processo para a justiça comum, onde a ação foi
extinta e aquela farsa remetida ao destino devido: o arquivo. Tudo isto
em 1976/77, em plena ditadura, como hoje se diz à larga.
Processo legal
Quando a primeira ação de Rosângela pipocou no fórum, me apresentei
espontaneamente em cartório, para espanto e incredulidade geral. Tomei
conhecimento da algaravia tisnada de formalidade jurídica e apresentei
minha defesa prévia. Mantinha minha convicção de que aquelas
idiossincrasias não prosperariam. Dava-me por citado e contestava cada
uma das peças na presunção de que a julgadora, Ruth do Couto Gurjão,
rejeitasse a pretensão da autora.
Descobri, estupefato e indignado, que podia usar todos os meios de
defesa sem mudar o que já estava predisposto nos autos: a minha
condenação. Começava a se formar ali o pacto entre pessoas poderosas,
por seu dinheiro ou sua influência, e o aparato da justiça. O objetivo
era tirar de circulação um jornalista incômodo, que teimava em repetir a
diretriz de Batista Campos e de todos os profissionais da informação
com um nível mínimo de decência; relatar os fatos como os fatos são. Doa
a quem doer.
Na esteira estendida pelos cinco processos de Rosângela Maiorana Kzan
vieram mais 28 processos, com as mesmas características: motivação
frívola e fútil, fundamento legal frágil; mas muita pressão fora dos
autos para que viesse a condenação. E ela tinha que vir, mesmo passando
por cima de regras processuais, da norma escrita da lei, do bom senso,
da racionalidade e de tudo mais. As marcas surreais dos meus processos
extrapolam a própria imaginação dos cronistas do absurdo, conforme Leo
Gilson Ribeiro definiu Kafka, Beckett e Ionesco.
A princípio eu também me conformava ao entendimento local de que meus
processos eram apenas mais alguns na congestionada pauta do judiciário
de um Estado completamente lateral na federação controlada pelos entes
poderosos. Se agora posso ter a presunção de que aquelas ações iniciadas
com leviandade em 1992 têm um caráter de infame pioneirismo é porque já
disponho de parâmetros como a dissertação de Isadora, submetida a uma
banca examinadora exigente e rigorosa, constituída por Antônio Maués,
Paula Arruda e Laércio Franco.
Isadora situou alguns dos desfechos de ações interpostas contra mim
sobre o pano de fundo das decisões da Corte Interamericana de Direitos
Humanos. Resulta comprovada por essa justaposição o atraso da lei
brasileira e o dissenso dos julgados de um tribunal como o do Pará em
relação às conquistas do direito continental.
Violam-se – no Estado, como no país – garantias que já têm plena tutela
internacional. Daí a reação, por vezes raivosa, dos que desrespeitam o
direito supranacional quando questionados nessas instâncias, para as
quais deviam se voltar aqueles que já não encontram tutela jurisdicional
nos limites territoriais do seu país.
Esse questionamento não viola a soberania nacional quando se trata de
questão que constitui consenso mundial, estabelecido com a adesão do
Brasil. Quando o país assina determinadas convenções devia ter a
consciência de que o ato é para ter consequências, provocadas pelo
próprio país ou a partir de provocação perante as cortes respectivas.
Nesse ponto, só há um jeito civilizado de resolver as pendências: pela
apreciação das razões invocadas no devido processo legal, garantidas
todas as formas de defesa.
Situação inversa
Na evolução de 33 processos ao longo de 20 anos, o “efeito silenciador”
tão bem definido por Isadora levou a justiça do Pará ao paroxismo do
absurdo. Simplesmente me vedou o acesso aos institutos disponíveis na
lei processual ou a interrupção de sua tramitação por atos de puro
arbítrio. Como classificar de outra maneira o procedimento de uma
desembargadora que retira dos autos a arguição de suspeição suscitada
contra si e continua a dar andamento ao processo principal? Ou a
aplicação de decisões padronizadas que impedem o prequestionamento de
matéria federal ou constitucional nos embargos de declaração, bloqueando
artificialmente a subida dos autos à última instância recursal, o STJ e
o STF?
Fiquei muito impressionado ao ler Behemoth, o clássico estudo
do nazismo (ainda em seu início) feito por Franz Neumann. Estávamos na
segunda metade dos anos 1960, uma época aziagamente apropriada para a
leitura dessa obra. Antes que Adolf Hitler desencadeasse a guerra
expansionista para o seu império de mil anos, Neumann já advertia: a
justiça de Weimar fertilizou o caminho legal (ou ilegal, daí a
referência a Behemoth, a entidade mitológica do caos), ao ser parcial,
tendenciosa, refratária à incorporação das conquistas da república de
Weimar, brilhante, efêmera e débil tentativa de trégua entre as duas
maiores carnificinas humanas (animais, melhor dizendo).
Nossa esperança é sempre no sentido de ver a justiça como a garantia do
estado democrático de direito, conforme a ladainha dos advogados. Meu
caso – e, depois dele, casos cada vez mais numerosos – revelam uma
situação inversa: a justiça como fator fortemente impeditivo do
estabelecimento da democracia pela repressão aos direitos humanos,
sobretudo a liberdade.
***
[Lúcio Flávio Pinto é jornalista, editor do Jornal Pessoal (Belém, PA)]
Nenhum comentário:
Postar um comentário