A teoria de conhecimento desenvolvida por Paulo Freire continua sendo referência nos mais diversos países e influencia quase todas as ciências humanas, mesmo dez anos após sua morte
Por Glauco Faria
e Nicolau Soares
O
educador Carlos Alberto Torres era um estudante de graduação da Universidade da
Patagônia pouco antes do golpe militar argentino, em 24 de março de 1976. À
época, finalizava um livro sobre Paulo Freire e, munido de três cópias
datilografadas, pegou um avião para Buenos Aires e entregou a obra para o
editor Júlio Barreiro, que havia se comprometido a publicá-la.
Chegando
lá, Júlio o cumprimentou em seu escritório com afeição, pegou o material e
disse a Torres: “Vou lê-los com olhos de editor, mas tenho medo de que não
poderei publicá-lo na Argentina nestas condições. Talvez nós possamos
publicá-lo na Itália”.
A
sentença foi um balde de água fria para o jovem educador. Muitas horas tinham
sido gastas para produzir o livro em uma velha casa sem eletricidade no povoado
de Trevelin, a 26 quilômetros da cidade argentina de Esquel.
Julio
perguntou a Torres o que ele fazia na Patagônia e, ao saber que estava
ministrando cursos em escolas e em uma universidade usando textos de Freire,
Karl Marx e Jean Piaget, o interrompeu com um tom de voz preocupada: “Carlos,
você precisa retornar imediatamente, pedir os programas de seus cursos,
destruí-los e trocá-los por outros com bibliografias diferentes, que não
incluam Piaget, Freire ou Marx. O governo está inspecionando estabelecimentos
educacionais e, como estes autores foram banidos, podem haver conseqüências
muito graves para aqueles que os ensinarem.”
Mesmo
assim, Torres não se impressionou. “Em minha ingenuidade, perguntei a ele por
que a situação lhe parecia tão difícil”, conta. Julio abriu a gaveta de sua
escrivaninha e tirou de dentro uma revista muito popular na classe média. Havia
duas páginas inteiras no meio com uma reportagem falando de Paulo Freire. A
página da esquerda continha trechos tirados de Educação como Prática de Liberdade,
a da direita passagens de Pedagogia do Oprimido. “Eram algumas das sentenças
mais incendiárias dos dois livros, deslocadas totalmente do contexto original”,
recorda Torres.
Ao
fim da matéria, a sentença que resumia tudo: “a Revolução Argentina foi feita
contra este tipo de educação marxista para nossas crianças”. Julio fechou a
revista, olhou para Torres diretamente nos olhos e explicou que era preciso ser
muito cuidadoso naquele tempo em particular. “Esta conversa mudou minha vida e
talvez tenha salvado a mim e à minha família de um futuro de tortura ou morte
certa”, conta.
A história acima não ocorreu apenas na Argentina. Ela se refletiu também no Brasil e em diversos países onde o pendor autoritário não permitia que Paulo Freire fosse sequer lido, quanto mais publicado. Não à toa, todos aqueles que comandavam regimes autoritários percebiam nele o potencial revolucionário que de fato sua obra tentava traduzir não somente por um método de ensino, mas utilizando-se de uma nova teoria do conhecimento que subvertia boa parte da tradição filosófica ocidental.
“Estou
tentando fazer o Paulo Freire entrar mais na universidade, mostrando que ele
era uma pensador rigoroso, não apenas intuitivo, sem rigor científico. Ele
contrariou a ontologia aristotélica, toda nossa teoria do ser, a tradição
ocidental, que diz que tudo o que existe é uma estrutura”, explica o professor
José Eustáquio Romão, estudioso da obra freireana e que também conviveu com
Paulo Freire entre 1986 e 1997. “Não existe o ‘ser’, mas sim o ‘está sendo’.
Segundo Paulo, todos somos incompletos, já que precisamos uns dos outros;
inconclusos, já que estamos em transformação; e inacabados, ou seja,
imperfeitos”, argumenta.
Romão
explica que o cerne do pensamento freireano está justamente na insatisfação que
move o ser humano para o “ser mais”. “Aristóteles dizia que o que diferencia o
ser humano dos outros seres é o raciocínio. Paulo Freire olhava pro cachorro
dele e dizia ‘não tenho certeza se esse cachorro não pensa. Mas sei o que sou e
fico insatisfeito por ser assim, por isso me esforço para não ser o que sou. Já
o cachorro não faz esse esforço’”, analisa. “Não é à toa que ele desenvolve uma
teoria do ser, que é a pedagogia do oprimido, e a teoria do ser mais, a
pedagogia da esperança. O que diferencia o ser humano é a capacidade ter
esperança, de ‘esperançar’”, conclui.
Romão
conta que a primeira obra que leu de Freire sequer havia sido publicada, era o
texto escrito para um concurso de professor na Faculdade de Belas Artes do
Recife, publicado após sua morte pelo próprio Romão. Educação e atualidade
brasileira tinha, na nota de rodapé 14, uma crítica pontual ao pensamento
vigente à época na intelectualidade brasileira.
“Os
grandes autores à época, principalmente o pessoal do Instituto Superior de
Estudos Brasileiros, diziam que o Brasil era subdesenvolvido, mas havia chegado
a hora da virada, motivada pelo projeto nacional-desenvolvimentista. De acordo
com eles, o contexto era favorável à revolução”, elucida Romão. A tese de Paulo
Freire era de que, naquele momento, o povo emergia na arena política, uma
relativa novidade para um país com a tradição autoritária do Brasil. Mas, ao
mesmo tempo, Freire dizia que a revolução não seria possível, “porque não
adiantava o cavalo estar arriado, era preciso montá-lo”, segundo o professor.
“Ou seja, era preciso um processo de educação popular, um processo pedagógico.
Ele fez algo extremamente marxista, existia a tese, a antítese, mas ainda não a
síntese. Os intelectuais tinham parado na antítese. Aquilo era um projeto
populista, tinha um limite estrutural nele mesmo.”
Em
todo lugar A teoria freireana se estende não apenas por inúmeras áreas do
conhecimento humano, mas também por diversos países que têm realidades
totalmente diferentes. Foram dezenas de livros publicados em mais de 30 idiomas
e outros 40 títulos honoris causa. Seu nome está relacionado a mais de cem
instituições em todo o planeta.
Nos
Estados Unidos, Paulo Freire é inspiração para educadores, mas também se firmou
como referência política, influenciando no campo de atuação da esquerda
norte-americana. “Ele sempre foi conhecido aqui como revolucionário em educação
de adultos nos anos 1970 e no início dos 1980”, explica Carlos Alberto Torres,
o jovem do início do texto, hoje radicado nos EUA. “Entretanto, com sua
introdução em programas de treinamento de professores nos Estados Unidos,
Freire foi rapidamente colocado como um ‘guru’ da Nova Esquerda nos EUA e
também internacionalmente. Seu trabalho transcende o campo da educação e suas
teorias são praticadas e aplicadas em diversos setores, particularmente aqueles
ligados a políticas culturais”, pontua.
Boa
parte do reconhecimento internacional que Freire granjeou decorre de um
verdadeiro trabalho militante. Foram centenas de viagens feitas por ele durante
toda sua vida e muitos daqueles que hoje divulgam suas teorias e práticas as
conheceram por meio do próprio educador. É o caso de Daniel Schugurensky,
professor associado do Instituto Ontario para Estudos em Educação da
Universidade de Toronto. “Eu era muito interessado nas idéias de Freire desde
que era um adolescente porque naquele tempo estava ansioso para encontrar
caminhos que contribuíssem para uma mudança social através da educação”,
explica. “Aqui, Freire é muito conhecido. Ele passou parte do verão de 1976
ministrando um curso de pós-graduação e desta passagem temos três vídeos nos
quais dois educadores de adultos de nosso instituto o entrevistam. No ano
seguinte da sua visita a Toronto, um grupo local ligado a sindicatos
progressistas começou a realizar uma série de atividades de educação popular”,
recorda. Ele ressalta que o legado freireano é significativo em seu país. “Não
apenas eu, mas muitos de meus colegas aqui tratamos de aplicar os princípios
freireanos a nossa prática pedagógica e política em nossas atividades
cotidianas, em nossa relação com nossos estudantes, com nossas comunidades, e
em nossa própria organização interna, tratando de ser cada vez mais
democráticos e criar estruturas mais democráticas. Também há professores
aplicando princípios freireanos em escolas secundárias do Canadá”.
Mas
em países onde a realidade é menos rósea do que no Canadá, as teses do educador
adquirem um outro tipo de importância. Deena Soliar é uma das dirigentes do
Centro Umtapo da África do Sul, um dos muitos países visitados por ele no
continente, e conta como as sua teoria chegou ao país. “Ele foi introduzido na
África do Sul no início dos anos 1970 por Anne Hope, que conduziu o primeiro
treinamento baseado na filosofia de Freire para um grupo de ativistas da
Consciência Negra, incluindo Steve Biko. Já estávamos convencidos que
conscientização através da educação popular era a chave para os problemas do
país e dessa forma um dos pilares fundamentais da fundação da Umtapo foi a
filosofia freireana”, explica.
Assim
como em outros locais, na África do Sul a área da educação também é um campo em
que se travam disputas políticas, com diferentes concepções a respeito do papel
da educação. Deena e a Umtapo lutam para promover a educação popular e a
aplicação da teoria freireana tem sido fundamental para o sucesso dessa
empreitada. “Em 1991, a Umtapo fundou a Associação para Alfabetização e
Educação de Adultos, afiliada à Associação Africana por Alfabetização e
Educação de Adultos, em oposição a outras entidades dominadas por liberais no
país que eram críticas de Freire. Agora temos tentado nos últimos anos
estabelecer uma ampla coalizão internacional de educadores populares
comprometidos com a filosofia e o método freireanos”, conta. A Umtapo também
honrou Freire ao premiá-lo postumamente com o Prêmio Steve Biko da Paz
Internacional em 2005 e produziu um manual de treinamento para jovens ativistas
comunitários em seu nome.
A
cultura da paz também foi influenciada pelo educador pernambucano. Davi
Windholz foi um dos fundadores do Instituto Paulo Freire em Israel e começou a
trabalhar em bairros pobres utilizando a teoria freireana em programas de
desenvolvimento de lideranças sociais. “O programa era patrocinado pela
Universidade de Jerusalém, e todo o trabalho baseava-se em formação de grupos
de lideranças locais para a melhoria das condições de vida desses bairros”,
explica. “Acreditávamos que não tínhamos o direito de ir a esses bairros com
uma postura de ‘donos da verdade’ como vinham os assistentes sociais, em geral.
Nós, estudantes, e eles, moradores dos bairros pobres, vivíamos em dois mundos
diferentes e sem contato. O diálogo era a única forma de poder unir esses dois
mundos e achar um meio que pudesse nos libertar, juntos.”
Em
um país onde o equilíbrio social é frágil e os conflitos são inúmeros,
trabalhar com a filosofia freireana pode ser uma boa saída. “Apesar de todas as
diferenças, o diálogo e a educação libertadora são as únicas formas positivas
de influir nos processos sociais e educacionais que promovemos”, acredita
Windholz, que hoje trabalha com o projeto AlterNative, que busca promover o
poder comunitário e a integração étnica.
Música
e alternância Além de estar presente em vários lugares com realidades
absolutamente distintas, Paulo Freire também se faz presente em diferentes
áreas do conhecimento humano, inclusive na música. A dissertação de mestrado de
Estevão Teixeira foi sobre alfabetização musical utilizando a teoria freireana,
com a intenção de valorizar a cultura popular e rema contra a educação musical
tradicional. “Sou professor em conservatório e percebi que quem tem aula ali,
aprende por quinze, vinte anos, e não toca nada sem partitura”, conta. “Os
músicos populares são considerados analfabetos musicais e, embora Paulo Freire
tenha dito que não basta ler, mas é preciso ler dentro do contexto, existe aí
uma dominação simbólica. Sempre houve muita ênfase na música erudita e boa
parte dos professores não deixa tocar de ouvido”, critica.
Assim,
Teixeira desenvolveu o Teclado Didático para o Ensino da Música (Tedem), que
ele define como um “ábaco musical”. Trata-se de um teclado onde as teclas se
levantam do plano horizontal, possibilitando uma maior compreensão de todas as
estruturas musicais. “É um método que não se volta somente à alfabetização
musical, mas voltado à formação da criança”, assegura. Em 2004, Estevão lutou
para que fosse aprovada em Juiz de Fora (MG) a Lei Municipal (nº 10.861), com o
objetivo de reinserir o ensino da música nas escolas públicas da rede municipal
de ensino fundamental.
A
teoria freireana chega também ao campo. Na cidade baiana de Jaguaquara, a
Escola Rural Taylor Egídio trabalha com 600 alunos num regime de internato, mas
com uma proposta de pedagogia de alternância. Enquanto 300 crianças estão na
escola, 300 estão em suas casas e são visitadas diariamente. “A idéia da
alternância é uma imersão na educação formal sem tirar a criança de sua
realidade. Ela transita entre educação formal e a vida de sua casa. O grande
objetivo é fortalecer o campo, o saber local. Pretendemos que as crianças
voltem para a roça e coloquem em prática nos seus quintais, nas plantações dos
pais, o que aprenderam na escola, e que possam ensinar para os pais”, esclarece
Sonilda Sampaio Santos Pereira, diretora da escola.
“Na
sala de aula, é proposto para os alunos uma construção de conhecimento a partir
da realidade de cada uma, do concreto das vidas”, explica Sonilda, ressaltando
a interdisciplinariedade presente no cotidiano da escola. “Juntamente com a
construção da leitura, especialmente da leitura mundo e da palavra escrita,
tratamos também a música. Temos uma banda, trabalhamos a questão da voz,
informática, fazemos tarefas com Lego. Mas o eixo de todas as práticas é o
campo, que é muito explorado nas aulas de agricultura.”
Mas
de fato o que mais impressiona na teoria freireana, além da sua atualidade, é a
capacidade de se reinventar, mesmo dez anos após sua morte. Ao contrário de
outros intelectuais, à medida que o tempo passa, Paulo Freire é ainda mais
reconhecido pela amplitude de sua obra. “Reconhecemos Freire como um dos
grandes educadores do século XX e sempre revisamos sua obra e revisitamos suas
contribuições à educação para entender os mecanismos de reprodução social e
mudança”, conta Daniel Schugurensky. “Ao mesmo tempo, Freire sempre pediu que
não o copiássemos, mas que o reinventássemos, e, aqui em Toronto, estamos
colaborando com os esforços que estão sendo feitos no Brasil e em outras partes
do mundo para reinventar Freire e nos preparar para os desafios do século XXI”,
completa.
Reinvenção
é o termo que Carlos Alberto Torres também usa para explicar o que se
desenvolve hoje na Universidade da Califórnia (UCLA). “O Instituto Paulo Freire
na UCLA está desenvolvendo séries de cursos de treinamento profissional para
professores do fundamental e do ensino médio em colaboração com o Programa de
Educação de Professores da UCLA. O propósito destes cursos é guiar professores
por aplicações teóricas e práticas da pedagogia crítica de Paulo Freire em
classes urbanas e multiculturais”, aponta. “O objeto deste cursos não é apenas
a aplicação de contribuições de Paulo Freire e de seus seguidores, mas sua
reinvenção. A idéia é ligar pesquisa, teoria e prática em um caminho único, que
vai permitir a educadores jovens e treinados nas universidade a ensinar seus
estudantes, muitos deles filhos de imigrantes recentes a entender e navegar nas
complexas e muitas vezes violentas comunidades em que eles vivem. De forma
crítica e com compaixão ao mesmo”, conclui.
Para
José Eustáquio Romão, o grande legado de Paulo Freire pode ter um significado
para a área das Ciências Humanas que equivale a de outros grandes pensadores do
século XX. “Charles Darwin, Sigmund Freud e Karl Marx tiveram que criar teorias
de conhecimento para explicar o que não podiam por conta das circunstâncias
históricas, não acharam elementos disponíveis que pudessem auxiliá-los. Creio
que a teoria criada por Freire ainda será a grande teoria do século XXI”.
Alguém tem dúvidas?
Fonte:
Revista Fórum
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