"Suponho ter sido a
única vez que, em qualquer parte do mundo, um sino, uma câmpula de bronze
inerte, depois de tanto haver dobrado pela morte de seres humanos, chorou a
morte da Justiça. Nunca mais tornou a ouvir-se aquele fúnebre dobre da aldeia
de Florença, mas a Justiça continuou e continua a morrer todos os dias.
Agora
mesmo, neste instante em que vos falo, longe ou aqui ao lado, à porta de nossa
casa, alguém a está matando. De cada vez que morre, é como se afinal nunca
tivesse existido para aqueles que nela tinham confiado, para aqueles que dela
esperavam o que da Justiça todos temos o direito de esperar: justiça,
simplesmente justiça.
Não a que se envolve em túnicas de teatro e nos confunde
com flores de vã retórica judicialista, não a que permitiu que lhe vendassem os
olhos e viciassem os pesos da balança, não a da espada que sempre corta mais
para um lado que para o outro, mas uma justiça pedestre, uma justiça
companheira cotidiana dos homens, uma justiça para quem o justo seria o mais
exato e rigoroso sinônimo do ético. (...)
Uma justiça exercida pelos tribunais,
sem dúvida, sempre que a isso os determinasse a lei, mas também, e sobretudo,
uma justiça que fosse a emanação espontânea da própria sociedade em ação, uma
justiça em que se manifestasse, como um iniludível imperativo
moral, o respeito pelo direito a ser que a cada ser humano assiste.”
José
Saramago - "Da Justiça à democracia,
passando pelos sinos”, texto de encerramento do 2º Fórum Social Mundial.
Nenhum comentário:
Postar um comentário