Artigo de
Luiz Pinguelli Rosa publicado no O Globo
Apartir de agora, atividades acadêmicas e
científicas nas universidades federais deverão seguir uma cartilha com 122
prescrições burocráticas da Controladoria-Geral da União (CGU) e do Ministério
da Educação (MEC).
"A revolução dos bichos" ("Animal
farm", no título original), sátira de George Orwell ao stalinismo por
trair a revolução socialista, tinha também uma cartilha, com sete mandamentos:
tudo o que ande sobre duas pernas é inimigo; tudo o que ande sobre quatro
pernas ou tenha asas é amigo; nenhum animal usará roupas; nenhum animal dormirá
em cama; nenhum animal beberá álcool; nenhum animal matará outro animal; todos
os animais são iguais.
Há contradição, arbitrariedades, burocracia idiota,
moralismo hipócrita e pontos éticos e corretos. Embora ficção, essa cartilha é
paradigmática.
Na cartilha da CGU e do MEC, há contradições e
interpretações que confrontam a Constituição. Se a cartilha for seguida à
risca, nenhum professor em dedicação exclusiva poderá possuir ações de
empresas, nem mesmo da Petrobras ou do Banco do Brasil, o que é um absurdo.
Também não poderá participar de sociedade privada, logo os pesquisadores terão
que abdicar de sociedades científicas, como a SBPC, e de outras, como o Clube
de Engenharia. O item 11, por exemplo, limita a autonomia universitária
listando leis e decretos e omitindo artigos da Constituição. Outros itens
tratam colegiados acadêmicos como corporativos e ameaçam seus membros. O
objetivo é incutir o medo que costuma paralisar as pessoas.
Alguns auditores da CGU, articulados com elementos
da Procuradoria da República no Rio, promoveram acusações a Aloísio Teixeira e
Carlos Levi, ex-reitor e atual reitor da UFRJ, respectivamente, e a outros colegas
da reitoria (No fim da década de 1960, existiram, na UFRJ, os atingidos pelo
AI-5. Agora, haverá os atingidos pelos órgãos de controle, especialmente o
professor Geraldo Nunes, que o relatório da CGU demite, sem existir um processo
específico contra ele na UFRJ e sem passar pelos colegiados.) As acusações
foram refutadas na sua essência pelo Conselho Universitário. Aloísio faleceu.
Teve em vida reconhecimento, além de acadêmico, pela posição democrática
coerente desde a oposição de esquerda à ditadura. Levi, um dos criadores do
LabOceano, o primeiro do moderno Parque Tecnológico da UFRJ, foi inocentado
pelo colegiado da própria CGU de acusações sem pé nem cabeça: comprovou-se que
os recursos foram gastos em obras e atividades acadêmicas por meio da Fundação
José Bonifácio, da universidade.
Infelizmente, para a mentalidade conservadora e
juridicista que entrava o serviço público, tudo o que moderniza a gestão do
Estado é inimigo, até mesmo as fundações de apoio, criadas por lei com esse
propósito. Por sua vez, tudo o que segue o caminho mais complicado e demorado é
amigo: para seguir as regras da cartilha, doentes podem morrer sem remédios e
estudantes podem ficar sem laboratórios. Querem até licitar a folha de
pagamento da UFRJ, feita há décadas por meio do Banco do Brasil! A quem serve
isso? A algum grande banco. Isso combate a corrupção ou a estimula?
São muitas as proibições que estimulam o imobilismo
e a indolência, pois qualquer iniciativa acadêmica pode violar algo. O deputado
Chico Alencar contou 3,7 milhões de leis "no país da cultura
bacharelesca". Uma denúncia anônima mentirosa - disparada como um míssil
por um inimigo pessoal - pode levar um colega sério a ser alvo de perseguição
kafkiana. Em outro livro de Orwell, "1984", um terrível personagem, o
Big Brother, de algum lugar vigia todos e os pune. Seu famoso bordão -
"Big Brother está observando você" - chegou a inspirar o programa
televisivo. Por razões ideológicas ou midiáticas, problemas administrativos
sanáveis viram escândalos. Podem ser refutados na Justiça, mas advogados saem
caro.
Dar aulas cumprindo o expediente é uma obrigação
que deve ser cobrada de todos os docentes. Aliás, não há nada sobre isso na
cartilha. É o mínimo, mas é preciso fazer mais: envolver os estudantes, criar
coisas novas, ajudar a mudar o Brasil em benefício do seu povo e a compreender
o mundo contemporâneo na cultura, nas artes, na ciência e na tecnologia. A quem
interessa acabar isso?
Em 1925, Einstein esteve na UFRJ: na Escola
Politécnica e no Museu Nacional, fundados por Dom João VI. Fizeram parte da
UFRJ Darcy Ribeiro, José Leite Lopes, Maria Yedda Linhares, Eulália Lobo e
Milton Santos (atingidos pelo AI-5), César Lattes, Carlos Chagas e Clementino
Fraga. A Coppe, criada por Alberto Luiz Coimbra, que este ano comemora 50 anos
de pós-graduação e pesquisa de engenharia, recebeu Noam Chomsky, os ganhadores
do Nobel Carlo Rubbia e Joseph Rotblat e brasileiros ilustres como Oscar
Niemeyer e os presidentes Dilma e Lula. Projetos com empresas realizados por
meio da Fundação Coppetec foram citados como referência pelos ministros
Mercadante e Raupp em visitas recentes. Nada disso exime a UFRJ do controle
externo, mas é preciso haver respeito à autonomia. Oferecer um almoço na visita
de Einstein à universidade hoje poderia ser considerado um ato ilícito, segundo
a cartilha.
Luiz
Pinguelli Rosa é diretor
do Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa em Engenharia
(Coppe) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Bacharel em Física
pela UFRJ, é mestre em Energia Nuclear pela Coppe/UFRJ e doutor em Física pela
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).
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