No dia 19 de junho, segundo aniversário do confinamento de Julian
Assange na embaixada equatoriana em Londres, o WikiLeaks tornou pública a
minuta secreta do anexo sobre serviços financeiros do Acordo sobre Comércio de
Serviços (TISA). Esta minuta, resultado da última rodada de discussões do TISA
realizada entre 28 de abril e 2 de maio em Genebra, abrange cinquenta países e
boa parte do comércio de serviços do mundo. Ela estabelece regras que
auxiliariam a expansão de multinacionais financeiras no interior de outras
nações através da prevenção de barreiras regulatórias. Ela proíbe, enfim, que
haja mais regulação de serviços financeiros apesar do fato do colapso
financeiro de 2007-8 ser geralmente tido como resultado justamente da falta de
regulação. Ademais, o documento ainda revela que os EUA estão particularmente
interessados em impulsionar o fluxo de dados transfronteiriço – tanto dados
financeiros quanto pessoais.
Este documento teria sido mantido na confidencialidade não apenas
durante as negociações do TISA, mas por mais outros cinco anos depois de sua
implementação efetiva. Apesar das negociações do TISA não terem sido
francamente censuradas, elas praticamente não foram mencionadas em nossa mídia
– uma marginalização e um sigilo que estão em gritante descompasso com a
histórica importância mundial de um acordo como o TISA: se implementado, ele
terá consequências globais, servindo efetivamente como uma espécie de espinha
dorsal jurídica para a reestruturação de todo o mercado mundial. O TISA irá
atar governos futuros, independemente de quem ganhar as eleições e do que os
tribunais disserem. Ele irá impor um quadro restritivo aos serviços públicos,
tanto ao promover o desenvolvimento de novos serviços, quanto protegendo outros
já existentes.
Mas essa conexão entre importância político-econômica e sigilo é
realmente algo que deveria nos surpreender? Não seria mais uma indicação,
triste porém precisa, de nosso lugar – nós que vivemos em países ocidentais
ditos democrático-liberais – em relação à democracia? Um século e meio atrás,
em seu O capital, Karl Marx caracterizou a troca, na esfera mercantil, entre
trabalhador e capitalista como “um verdadeiro Éden dos direitos inatos do
homem, [...] o reino exclusivo da liberdade, da igualdade, da propriedade e de Bentham.”
(O capital, Livro I, p.250). Ao incluir ironicamente o nome de Jeremy Bentham,
o filósofo do utilitarismo egotista, Marx fornece a chave para o que liberdade
e igualdade efetivamente significam no interior da sociedade capitalista – para
citar o Manifesto comunista: “Por liberdade, nas atuais relações burguesas de
produção, compreende-se a liberdade de comércio, a liberdade de comprar e
vender.” (p.53) E por igualdade, compreende-se a igualdade legal formal entre
comprador e vendedor, mesmo que um dos dois seja forçado a vender sua força de
trabalho sob quaisquer condições (como os trabalhadores precários de hoje).
Hoje, podemos dizer que temos liberdade, democracia e TISA. Nesta fórmula,
liberdade significa o livre fluxo de capital, bem como de dados financeiros e
pessoais (ambos os fluxos garantidos pelo TISA). Mas e democracia?
Esse é o nosso lugar no que diz respeito à democracia, e o acordo do
TISA é um exemplo perfeito desse estado de coisas. As decisões chave da nossa
economia são negociadas e implementadas sigilosamente, fora de nossa vista, sem
debate público, e elas determinam as coordenadas para a livre dominação do
capital. Dessa forma, o espaço para as decisões dos agentes políticos
democraticamente eleitos fica severamente limitado, e o processo político passa
a lidar predominantemente com questões para as quais o capital é indiferente
(como guerras culturais). É por isso que a publicação da minuta do TISA marca
um novo estágio na estratégia do WikiLeaks: até agora, sua atividade se focava
em tornar público como nossas vidas são monitoradas e reguladas por agências de
inteligência do Estado – o tema liberal básico dos indivíduos ameaçados por
aparatos estatais opressivos. Agora, outra força controladora aparece – o
capital – que ameaça nossa liberdade de uma forma muito mais elaborada:
pervertendo nossa própria sensação de liberdade.
Com a livre escolha elevada, em nossa sociedade, a um valor supremo, o
controle e a dominação social não podem aparecer como infringências à liberdade
dos sujeitos – eles têm de aparecer na forma da própria auto-experiência dos
indivíduos como livre. Há várias maneiras pelas quais essa falta de liberdade
aparece disfarçada de seu oposto: quando somos privados de planos de saúde
universais, nos dizem que na verdade fomos dotados de uma nova liberdade de
escolha (a de escolher nosso fornecedor de plano de saúde); quando não podemos
mais depender de um emprego formal de longo-prazo e somos obrigados a buscar
uma nova forma de trabalho precário a cada um ou dois anos, nos dizem que fomos
concedidos a oportunidade de nos re-inventar e de descobrir novos e inesperados
potenciais criativos que se encontravam escondidos em nossa personalidade;
quando somos obrigados a pagar pela educação de nossas crianças, nos dizem que
agora nos tornamos “empreendedores do self”, agindo como capitalistas que têm
de escolher livremente como investir os recursos que possuem (ou que pegaram
emprestado) – em educação, cultura, turismo… Constantemente bombardeados pela
imposição dessas “livres escolhas”, forçados a tomarmos decisões para as quais
geralmente nem somos adequadamente qualificados (ou informados), cada vez mais
vivenciamos nossa liberdade como ela efetivamente é: um fardo que nos priva da
verdadeira escolha de mudança.
Quem sabe esse paradoxo também não nos permite jogar nova luz sobre
nossa obsessão com os atuais acontecimentos na Ucrânia e mesmo com a emergência
do ISIS no Iraque, ambos extensamente cobertos pela mídia (em evidente
contraste com o silêncio sobre o TISA). O que nos fascina, nós do ocidente, não
é o fato de que pessoas em Kiev se ergueram pela miragem do modo de vida
europeu, mas que eles (ao que parecia, pelo menos) simplesmente se ergueram e
tentaram tomar seu destino nas próprias mãos. Desempenharam um papel de agentes
políticos impondo uma mudança radical – algo que, como as negociações do TISA
demonstram, nós no ocidente não temos mais a escolha para fazer.
* Tradução de Artur Renzo, para o Blog da Boitempo.
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