Por Mário Maestri
Desta vez, foram multidões, e não uma
criança, que gritaram, impiedosas, o “rei está nu”, pondo fim às construções fantasmagóricas
sobre o sucesso social do modo de governar petista. Conto da carochinha
divulgado pela grande mídia no país e no mundo, já que celebrava o sucesso de
administração convertida ao social-liberalismo. Apesar dos gritos populares
crescentes sobre sua impudicícia, Dilma manteve-se quietinha, fazendo-se de
morta, rezando para que acreditassem que a luta contra o aumento das passagens
não lhe dizia respeito.
As multidões desbordantes protestavam
contra os aumentos dos transportes e os estádios faraônicos, apontando para a
indecente degradação da saúde e da educação públicas. Muito logo, registraram
em forma desorganizada a insatisfação com as condições gerais de existência,
sobretudo nas grandes metrópoles. Rolaram pelo ralo das elucubrações marqueteiras
as propostas do Brasil potência, país onde dominaria majoritariamente pujante
nova classe média, que entrava garbosamente no mercado consumidor, arrancada da
penúria pelos doze anos de reino petista.
A sustentação irresponsável da
produção nacional por meio de consumo financiado, sem expansão substantiva do
valor dos salários, tencionara a economia popular e o tecido metropolitano,
atulhado de automóveis, com meios de transporte caros e deficientes e população
trabalhadora enviada às periferias distantes. As populações urbanas
levantavam-se contra a proposta social perversa de que pagassem o transporte, o
colégio privado, o plano de saúde, a segurança e os cambaus, com seus
magros salários, para a alegria de insaciáveis interesses privados.
Reeleição garantida
Para reeleger-se, Dilma Rousseff
apostou todas as suas fichas na interpretação dos interesses privados
dominantes, nacionais e internacionais. Construiu mega-ministério de quase
quarenta picaretas e base parlamentar de centenas de outros roedores. Seguiu
privatizando, sem pena, bens públicos, como aeroportos, portos, petróleo,
estradas, ferrovias.. Fez do BNDES sucursal do grande capital, patrocinando em
primeira pessoa aventureiros como Eike Baptista, o inacreditável senhor das
empresas X.
A presidente fechou a cara para os
anseios populares e nacionais. No altar do agronegócio, sob os auspícios da
bruxa de Abreu, sacrificou as reivindicações dos, e, se preciso, os sem-terra,
quilombolas e nativos. Seduziu os fundamentalistas, vestindo as pudicas vestes
de primeira carola nacional. Pisoteou sem dó o laicismo e direitos cívicos
nacionais: interrupção da gravidez; criminalização da homofobia; casamento
homoafetivo; isenção fiscal, direitos e privilégios legislativos e de Estado
para lideranças fundamentalistas etc. Liquidou o pouco de independência que
mantinha a política externa brasileira. Cria sua reeleição certa e segura.
Tudo inutilmente. Ao explodir, o
desgosto popular farejou culpados subalternos para terminar apontando para o
governo federal, responsável maior pelo destino da nação. Então, das elevadas
alturas, as avaliações de Dilma Rousseff despencaram ladeira abaixo. Pior
ainda, no calor da crise, a presidenta expôs seu enorme despreparo para
enfrentar semelhantes conjunturas. A lembrança de Lula da Silva como eventual
candidato em 2014 confirmou a cabotinice do ex-presidente em designar
substituta pouco qualificada para posto ao qual sonha retornar.
Surpreendida em pleno abandono da
orientação neodesenvolvimentista, Dilma Rousseff prosseguiu, sem
correção de rumo, a orientação autista e conservadora de sua administração. No
dia 24, monologou com a nação, propondo cinco pactos nacionais. Iniciou pelo
fiscal, ou seja, pela promessa ao grande capital de contenção de gastos
públicos e cortes de investimentos. Portanto, deixou de saída claro
que eram retóricas as promessas referentes à saúde, educação e transportes.
Com enorme sem-cerimônia, limitou-se
a reafirmar projetos anteriores sobre a educação e saúde. Relembrou as
propostas de contratação de médicos estrangeiros, de ampliação das vagas nas
escolas de medicina, de desonerações de impostos do transporte público, de
emprego de 100% dos royalties do petróleo para a educação ─ ou seja, bem menos
de 10% da renda petrolífera entregue ao grande capital privado.
Pega-bobo eleitoral
De novo, apenas a proposta retirada
do bolso do colete de seus marqueteiros de plebiscito sobre constituinte
restrita que abordasse a ... reforma política, eterna preocupação das classes
dominantes, necessária ao reequilíbrio da expressão de suas forças e à
consolidação da desprestigiada democracia representativa. Paradoxalmente,
questão com alguma ressonância nos setores sociais atrasados, incorporados às
mobilizações após sua massificação, setores sob a influência da mídia e dos
partidos da direita tradicional.
A população exige passagem livre e
hospitais, farmácias, escolas, universidades, postos de saúde públicos de
qualidade. A presidenta oferece a discussão das coligações; listas eleitorais;
voto distrital puro ou misto etc. Pega-bobo lançado à população enfarada com a
representação parlamentar burguesa, que sonha, ingenuamente, como meio de
reforma social, a redução radical do número, salários e privilégios de
parlamentares, secretários, ministros, caso não possa fazer mais.
A reforma política não é pauta
popular. É enorme o consenso que, mutatis mutandis, tudo permanecerá,
no essencial, como “dantes, em nosso triste quartel de Abrantes”! Sequer o
financiamento público das campanhas, proposta querida dos partidos de esquerda
seduzidos pela integração parlamentar ao Estado, conta com largo apoio. Com
razão, teme-se financiamento público milionário de partidos, reais e biônicos,
associado ao financiamento privado direto ou indireto, por debaixo do poncho!
A rejeição da constituinte seletiva
para a reforma política pelos órgãos máximos das classes dominantes nacionais
ensejou que fosse substituída por proposta ainda mais acanhada e esdrúxula, de
pronunciamento plebiscitário sobre questões apresentadas pelos picaretas no
congresso e no governo! Tudo feito logo, logo, para que a presidente chegue a
2014 com algo nas mãos, além dos previstos aumentos do juro básico e superávit
primário; cortes nos gastos públicos; arrocho do salário mínimo; interrupção da
reforma agrária; descumprimento da agenda civil nacional etc.
Não há inocência
Não se creia que a manipulação
plebiscitária seja iniciativa despida de caráter performativo. As manifestações
fluviais redefiniram a correlação social de forças no Brasil, comprovando a
capacidade popular de pautar a vida político-social e de arrancar conquistas
substanciais às classes dominantes. Entretanto, entraram já no inevitável ciclo
regressivo, sobretudo devido à inexistência de pauta programática exequível -
para além da conquistada redução do valor das passagens nas grandes e médias
metrópoles - e de direção autêntica centralizadora.
Inexistência de pauta programática
unificada devido, sobretudo, à paradoxal ausência da classe operária
organizada. Ausência para a qual contribuiu substantivamente a ação da venal
direção governista da CUT, que reina monopolicamente sobre a grande central,
sobretudo após a multiplicação oportunista e interessada de centrais, que
registraram na presente conjuntura sua total inoperância social e política –
Força Sindical, UGT, CTB e Nova Central, além de CSP-Conlutas, CSB e CGTB.
Vendo minimizado seu poder de
barganha, quando já se chamavam greves gerais pelo facebook, a direção da CUT
dispôs-se a ingressar com barulho no coliseu da luta social. Desde que os
gladiadores e os leões tivessem se retirado da arena, é claro. Preocupada em
não qualificar o movimento popular com o ingresso dos trabalhadores
organizados, chamou suas tropas “para dia nacional de luta”, e não para greve
geral, marcado para o então distante 11 de julho. Esperam realizar parada
prestigiosa e certamente não combativa mobilização para a luta.
Uma aposta cuidadosa, que comporta
grandes riscos. Se for demasiadamente tímida e não se aproximar da dimensão das
passadas concentrações populares, a demonstração enfatizará a recente
marginalização do movimento sindical organizado. Se for grande a adesão de
trabalhadores e populares, o “dia nacional de protesto” dará um novo impulso às
mobilizações anti-governamentais e antissistema. Ainda mais que a população
pode se servir da respeitosa pauta de reivindicação da CUT para armar-se de
real programa para a luta social e política.
No seu respeito canino ao governo
federal, a burocracia cutista sequer integrou às reivindicações do dia 11 o
aumento imediato do miserável salário mínimo, cancelamento das concessões
petrolíferas, nacionalização dos bens públicos privatizados e dos meios de
transporte. Para não falar da luta pela convocação de Assembléia Nacional
Constituinte, ampla, geral e irrestrita, com direito democrático de eleição dos
constituintes, que entregue à população nacional enfarada com as atuais
instituições elitistas o direito soberano de decidir seus destinos – pagamento
da dívida, nacionalização do petróleo, estatização do transporte etc.
Novo período
Vivemos em junho as mais poderosas
mobilizações jamais conhecidas no Brasil. Por sua autonomia e seu caráter
combativo e antissistema, superam qualitativamente as marchas pelas Diretas Já,
de 1983-84, sob o total controle dos partidos oposicionistas, ou as de Fora
Collor, de 1992, dirigidas pelos partidos e, sobretudo, pela grande mídia, com
destaque para a rendida Rede Globo, em momento em que o impeachment
era inevitável. Essas jornadas registram importantes modificações na consciência
da população brasileira concentrada nas grandes metrópoles, ensejadas pela
ampliação do assalariamento e instrução.
Fortaleceu-se enormemente o movimento
social, que depois de décadas, pautou novamente as classes dominantes,
obrigando a mídia conservadora a contorções verdadeiramente indecorosas.
Fortaleceu-se também a capacidade de intervenção e manipulação conservadora,
através principalmente das redes sociais e de segmentos sociais médios. O que
permitiu que o petismo e o governismo iniciassem a velha gritaria de “Socorro!
Olha o lobo”, sobre possível golpe direitista. Algo talvez compreensível, já
que habituados a manter o grosso da direita brasileira, legal ou ilegalmente,
como aliados assalariados de sua base parlamentar. Proliferaram as propostas de
frente, de aliança e de pactos de esquerda contra a direita fascista,
procurando desviar os golpes do governo do capital de turno.
Não há qualquer perigo de golpe de
Estado. Como Lula da Silva, Dilma Rousseff foi escolhida como representante da
ditadura democrática do capital no Brasil, e permanece como tal.
Que proporia o novo governo direitista: a privatização do petróleo; o pagamento
disciplinado do capital financeiro; a proteção canina do agronegócio? O
descontrole do petismo sobre as grandes massas urbanas abre, isto sim, espaço
para que partidos da direita tradicional proponham-se como melhores defensores
do capital e da propriedade. Como permite que eventualmente se expandam as
exigências de facções do capital para manter seu apoio ao governo, como já
ocorre.
O novo período fortalece também
propostas concorrentes ao petismo, como a ensaiada pela Rede, de Marina da
Silva, sob o patrocínio do capitalismo verde, ou de cunho
populista-autoritário, como eventual composição eleitoral organizada em torno
do histriônico Joaquim Barbosa, pela grande mídia burguesa. Ou seja, um Collor
bis. Esta última menos provável, mas não impossível, no contexto de eventual
perda de controle do capital da política nacional.
As manifestações apresentaram fortes
lições para as organizações que se reivindicam da esquerda revolucionária.
Naufragam espetacularmente as alimentadas ilusões da autoproclamada vanguarda
de conquistar, apoiada em consignas e programas iluminados, a direção das
massas em marcha. As populações apoiam-se nas lideranças, organização e
consciência que possuem, ao iniciarem sua marcha. Quem não conquistar
representação substantiva do movimento social, antes de ele pôr-se em
movimento, será mantido à sua margem ou arrasado por seu impulso.
Acima de tudo, milhões e milhões de
brasileiros foram atraídos para a política, mesmo quando a desqualificavam, ao
participarem direta e indiretamente nas mobilizações de junho. Rompeu-se
poderosamente o comodismo, a descrença, o individualismo, a despolitização, a alienação,
cultivados carinhosamente pelas classes dominantes através de seus
administradores, parlamentares, partidos, universidades e grandes meios de
divulgação. Não estamos na véspera ou antevéspera da revolução social. Mas
abre-se diante de nós um campo fertilíssimo para o cultivo do futuro.
Fonte: Correio da Cidadania
Nenhum comentário:
Postar um comentário