Há 50 anos, o Brasil foi capturado pela mais longa, cruel e tacanha ditadura de sua história. Meio século é tempo suficiente para aprendermos algo sobre isso.
Por Antonio Lassance
1ª Lição:
Aquela foi a pior de todas as ditaduras
No período
republicano, o Brasil teve duas ditaduras propriamente ditas. Além da de 1964,
a de 1937, imposta por Getúlio Vargas e por ele apelidada de "Estado
Novo".
A ditadura
de Vargas durou oito anos (1937 a 1945). A ditadura que começou em 1964 durou
21 anos.
Vargas e seu
regime fizeram prender, torturar e desaparecer muita gente, mas não na escala
do que ocorreu a partir de 1964.
Os
torturadores do Estado Novo eram cruéis. Mas nada se compara em intensidade e
em profissionalismo sádico ao que se vê nos relatos colhidos pelo projeto
"Brasil, nunca mais" ou, mais recentemente, pela Comissão da Verdade.
Em qualquer
aspecto, a ditadura de 1964 não tem paralelo.
2ª Lição:
Qualificar a ditadura só como "militar"escamoteia o papel dos civis
Foram os
militares que deram o golpe, que indicaram os presidentes, que comandaram o
aparato repressivo e deram as ordens de caçar e exterminar grupos de esquerda.
Mas a
ditadura não teria se instalado não fosse o apoio civil e também a ajuda
externa do governo Kennedy.
O golpismo
não tinha só tanques e fuzis. Tinha partidos direitosos; veículos de imprensa
agressivos; empresários com ódio de sindicatos; fazendeiros armados contra
Ligas Camponesas, religiosos anticomunistas. Todos tão ou mais golpistas que os
militares.
Sem os
civis, os militares não iriam longe. A ditadura foi tão civil quanto militar.
Tinha seu partido da ordem; sua imprensa dócil e colaboradora; seus empresários
prediletos; seus cardeais a perdoar pecados.
3ª Lição:
Não houve revolução, e sim reação, golpe e ditadura
Ernesto
Geisel (presidente de 1974 a 1979) disse a seu jornalista preferido e
confidente, Elio Gaspari, em 1981:
"O
que houve em 1964 não foi uma revolução. As revoluções fazem-se por uma ideia,
em favor de uma doutrina. Nós simplesmente fizemos um movimento para derrubar
João Goulart. Foi um movimento contra, e não por alguma coisa. Era contra a
subversão, contra a corrupção. Em primeiro lugar, nem a subversão nem a
corrupção acabam. Você pode reprimi-las, mas não as destruirá. Era algo
destinado a corrigir, não a construir algo novo, e isso não é revolução".
Quase
ninguém usa mais o eufemismo “revolução” para se referir à ditadura, à exceção
de alguns remanescentes da velha guarda golpista, que provavelmente ainda
dormem de botinas, e alguns desavisados, como o presidenciável Aécio Neves, que
recentemente cometeu a gafe de chamar a ditadura de “revolução” (foi durante o
57º Congresso Estadual de Municípios de São Paulo, em abril de 2013).
Questionado
depois por um jornal, deu uma aula sobre o uso criterioso de conceitos:
“Ditadura, revolução, como quiserem”.
A ditadura
foi uma reação ao governo do presidente João Goulart e à sua proposta de
reformas de base: reforma agrária, política e fiscal.
4ª Lição:
A corrupção prosperou muito na ditadura
Ditaduras
são regimes corruptos por excelência. Corrupção acobertada pelo autoritarismo,
pela
ausência de mecanismos de controle, pela regra de que as autoridades podem
tudo.
A ditadura
foi pródiga em escândalos de corrupção, como o da Capemi, justo a Caixa de
Pecúlio dos Militares. As grandes obras, ditas faraônicas, eram o paraíso do
superfaturamento.
Também
ficaram célebres o caso Lutfalla (envolvendo o ex-governador Paulo Maluf,
aliás, ele próprio uma criação da ditadura) e o escândalo da Mandioca.
5ª Lição:
A ditadura acabou, mas ainda tem muito entulho autoritário por aí
O Brasil
ainda tem uma polícia militar que segue regulamentos criados pela ditadura.
A Polícia
Civil de S. Paulo, em outubro de 2013, enquadrou na Lei de Segurança Nacional (LSN)
duas pessoas presas durante protestos.
A tortura
ainda é uma realidade presente, basta lembrar o caso Amarildo.
Os
corredores do Congresso ainda mostram um desfile de filhotes da ditadura -
deputados e senadores que foram da velha Arena (Aliança Renovadora Nacional,
que apoiava o regime).
6ª Lição:
banalizar a ditadura é acender uma vela em sua homenagem
Há duas
formas de se banalizar a ditadura. Uma é achar que ela não foi lá tão dura
assim. A outra é chamar de ditadura a tudo o que se vê de errado pela frente.
O primeiro
caso tem seu pior exemplo no uso do termo "ditabranda" no editorial
da Folha de S. Paulo de 17 de fevereiro de 2009.
Para a Folha
de S. Paulo, a última ditadura brasileira foi uma branda (“ditabranda”), se
comparada à da Argentina e à chilena.
A ditadura
brasileira de fato foi diferente da chilena e da argentina, mas nunca foi
“branda”, como defende o jornal acusado de ter emprestado carros à Operação
Bandeirantes, que caçava militantes de grupos de esquerda para serem presos e
torturados.
Como disse a
cientista política Maria Victoria Benevides, que infâmia é essa de chamar de
brando um regime que prendeu, torturou, estuprou e assassinou?
A outra
maneira de se banalizar a ditadura e de lhe render homenagens é não reconhecer
as diferenças entre aquele regime e a atual democracia. Para alguns, qualquer
coisa agora parece ditadura.
A proposta
de lei antiterrorismo foi considerada uma recaída ditatorial do regime dos
“comissários petistas” e mais dura que a LSN de 1969. Só que, para ser mais
dura que a LSN de 1969, a proposta que tramita no Congresso deveria prever a
prisão perpétua e a pena de morte.
O diplomata
brasileiro que contrabandeou o senador boliviano Roger Pinto Molina para o
Brasil comparou as condições da embaixada do Brasil na Bolívia à do
Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa
Interna (DOI-CODI), a casa de tortura da ditadura.
Para se
parecer com o DOI-CODI, a Embaixada brasileira em La Paz deveria estar
aparelhada com pau de arara, latões para afogamento, cadeira do dragão (tipo de
cadeira elétrica), palmatória etc.
Banalizar a
ditadura é como acender uma vela de aniversário em sua homenagem.
7ª Lição:
já passou da hora de parar com as homenagens oficiais de comemoração do golpe
Por muitos e
muitos anos, os comandantes militares fizeram discursos no dia 31 de março em
comemoração (isso mesmo) à “Revolução” de 1964.
A provocação
oficial, em plena democracia, levou um calaaboca em 2011, primeiro ano da
presidência Dilma. Neste mesmo ano também foi instituída a Comissão da Verdade.
A referência
ao 31 de março foi inventada para evitar que a data de comemoração do golpe
fosse o 1º. De abril – Dia da Mentira.
A
justificativa é que, no dia 31, o general Olympio Mourão Filho, comandante da
4ª Região Militar, em Minas Gerais, começou a movimentar suas tropas em direção
ao Rio de Janeiro.
Se é assim,
a Independência do Brasil doravante deve ser comemorada no dia 14 de agosto,
que foi a data em que o príncipe D. Pedro montou em seu cavalo para se deslocar
do Rio de Janeiro para as margens do Ipiranga, no estado de São Paulo.
A palavra
golpe tem esse nome por indicar a deposição de um governante do poder. No dia
1º. De abril, João Goulart, que estava no Rio de Janeiro, chegou a retornar
para Brasília. Em seguida, foi para o Rio Grande do Sul e, depois, exilou-se no
Uruguai mas só em 4/4/1964. Que presidente é deposto e viaja para a capital um
dia depois do golpe?
O Almanaque
da Folha é um dos tantos que insistem na desinformação:
“31. Mar.64
— O presidente da República, João Goulart, é deposto pelo golpe militar”. Entende-se.
Afinal, trata-se do pessoal da ditabranda.
O que
continua incompreensível é o livro “Os presidentes e a República”, editado pelo
Arquivo Nacional, sob a chancela do Ministério da Justiça, trazer ainda a
seguinte frase:
“Em 31 de
março de 1964, o comandante da 4ª Região Militar, sediada em Juiz de Fora,
Minas Gerais, iniciou a movimentação de tropas em direção ao Rio de Janeiro. A
despeito de algumas tentativas de resistência, o presidente Goulart reconheceu
a impossibilidade de oposição ao movimento militar que o destituiu”.
De novo, o
conto da Carochinha do 31 de março.
Ainda mais
incompreensível é o livro colocar as juntas militares de 1930 e de 1969 na
lista dos presidentes da República.
A lista
(errada) é reproduzida na própria página da Presidência da República como
informação sobre os presidentes do Brasil.
Nem os
membros das juntas esperavam tanto. A junta governativa de 1930 assinava seus
atos riscando a expressão “Presidente da República”.
No caso da
junta de 1969, o livro do Arquivo Nacional diz (p. 145) que o Ato Institucional
nº. 12 (AI-12)"dava
posse à junta militar" composta pelos ministros da Marinha, do Exército e
da Aeronáutica. Ledo engano.
O AI-12,
textualmente: “Confere aos Ministros da Marinha de Guerra, do Exército e da
Aeronáutica Militar as funções exercidas pelo Presidente da República, Marechal
Arthur da Costa e Silva, enquanto durar sua enfermidade”. Oficialmente, o
presidente continuava sendo Costa e Silva.
Há outro
problema. Uma lei da física, o famoso princípio da impenetrabilidade da
matéria, diz que diz que dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar no espaço
ao mesmo tempo – que dirá três corpos.
Não há como
três chefes militares ocuparem o mesmo cargo de presidente da República. Que
república no mundo tem três presidentes ao mesmo tempo?
O que os
membros da Junta de 1969 fizeram foi exercer as funções do presidente, ou seja,
tomar o controle do governo. O AI-14/1969 declarou o cargo oficialmente vago,
quando a enfermidade de Costa e Silva mostrou-se irreversível.
Os três
comandantes militares jamais imaginaram que um dia seriam listados em um
capítulo à parte no panteão dos presidentes. A Junta ficaria certamente
satisfeita com a homenagem honrosa e, definitivamente, imerecida.
Que
história, afinal, estamos contando?
Uma história
que ainda não faz sentido.
Uma história
cujas lições ainda nos resta aprender.
Antonio Lassance
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