POR RAMEZ PHILIPPE MAALOUF
A construção ideológica
O corrente ano que se finda será lembrado pela comunidade
internacional como o ano em que a (ou o mito ou a ilusão da) unipolaridade dos
EUA foi extinta.
Desde sua fundação, no século XVIII, os Estados Unidos da América
(EUA), constituídos como uma “república de proprietários” (proprietários
brancos protestantes escravocratas), forjaram o mito do “destino manifesto” do
“povo eleito por Deus” (os mesmos proprietários brancos protestantes
escravocratas).
Um mito muito conveniente num momento em que combatiam a Inglaterra
para preservarem a escravidão e se apropriarem dos territórios indígenas –
expulsando e exterminando a população autóctone. Fanatismo religioso, racismo e
opressão (aos trabalhadores pobres, índios e negros africanos escravizados)
foram os elementos fundamentais do “lar dos bravos (proprietários)” e a “terra
da liberdade (dos proprietários)”, criando o primeiro Estado racial da
História.
Foi em nome da escravidão e, portanto, da propriedade que o sul do
país se colocou em armas para combater aquele que ameaçava a liberdade de
usufruir sua propriedade, isto é, de escravizar: o governo central. A revolta
liberal gerou uma guerra genocida descomunal em 1863. E os EUA levaram sua
“missão divina” ao resto do mundo: a liberdade da casta de proprietários
brancos anglo-saxões protestantes de dominar a humanidade.
Belicismo insaciável
Após a II Guerra Mundial (1939-45), com a derrota do nazi-fascismo e a
vitória soviética (logo convertida em inimiga), o “povo eleito por Deus”
constituiu seu Estado num foco “regressista” mundial, combatendo, por todos os
meios (guerras, golpes, políticas econômicas etc.), o desenvolvimento econômico
e social de povos e nações (especialmente da África, Ásia e América Latina),
para manter sua hegemonia sobre o planeta.
Esta sanha destrutiva só se aprofundou com a queda do bloco soviético
(1991) e, desde então, como nas palavras do geopolítico e economista libanês
Georges Corm, uma verdadeira febre bélica de assombrosa proporção se apossou do
país, que o faz invadir ou despedaçar países ao redor do mundo, tais como:
Panamá, Iraque, Somália, Iugoslávia, República Democrática do Congo,
Afeganistão, Iêmen, Líbano, Sudão, Paquistão, Colômbia, Líbia, Síria, entre
outros; com uma ânsia insaciável, sob a farsa de seletivos argumentos morais ou
a defesa dos direitos humanos. Esta sanha genocida foi em grande parte
alimentada pela crença na “unipolaridade”, uma vez que, além da queda do bloco
soviético, a própria União Soviética (a “tirania” dos que lutam contra a
propriedade e a favor da igualdade) desapareceu do mapa, sem o derramamento de
uma gota de sangue. Por este motivo, os EUA se consideraram vitoriosos e a
completa submissão do planeta seria o seu “troféu” para cumprir o “destino
manifesto do povo eleito por Deus”.
Mais de duas décadas da guerra planetária contra o “resto” da
humanidade, os EUA finalmente se depararam com a dura realidade de que a
unipolaridade era um sonho. Novas velhas potências retornavam ao panteão dos
gigantes: Rússia, China e Índia, denunciando o inevitável e o irreversível fim
do “ciclo colombiano” iniciado nos estertores do século XV, com a chegada de
Cristóvão Colombo às Américas, dando início ao expansionismo europeu-ocidental.
Mesmo enfrentando resistências no seu “quintal”, com a década e meia de governo
democrático e constitucional de Hugo Chávez na Venezuela, sob a égide do
“bolivarianismo”, os EUA desencadearam duas campanhas militares simultâneas, no
Afeganistão e no Iraque, no início do século XXI, que lhes custaram a maior
crise econômica desde o “crash” de 1929. Ainda assim, esta crise não cessou o
seu furor genocida.
A volta do contraponto
Foi somente com a revolta popular no mundo árabe (midiatiacamente
chamada de “Primavera Árabe”) que toda uma geoestratégia ianque para o Oriente
Médio (base terrestre para a conquista da Ásia Central e, portanto, do mundo)
foi posta à prova, comprometendo definitivamente a unipolaridade. Após a
inesperada queda do ditador do Egito, Hosni Mubarak, um fiel aliado do Ocidente
e da Arábia Saudita, por meio de um levante popular em 2011, os EUA se
aproximaram da Irmandade Muçulmana (IM), que era apoiada pela Turquia e pelo
Catar, porém, inimiga do reino saudita.
Esta geoestratégia de favorecer a IM em todo o Oriente Médio, em
substituição aos regimes autoritários árabes contestados popularmente, começou
a ruir quando o presidente eleito em 2012 (num sistema eleitoral viciado),
Mohammed Mursi, membro da IM, foi deposto por meio de um golpe militar (apoiado
pelos sauditas e israelenses) e de um novo levante popular, em julho de 2013,
que impuseram uma nova ditadura militar.
O novo regime militar egípcio, liderado pelo general al-Sissi, colocou
na ilegalidade a IM, assim como prendeu o presidente deposto, em claro desafio
ao poder dos EUA, cuja única resposta foi a temporária suspensão da ajuda
financeira e militar ao país do Nilo. Não apenas a IM foi e está sendo
violentamente caçada em todo Egito, mas também Washington foi obrigado a
aceitar os novos donos do poder no Cairo, restabelecendo a ajuda financeira.
Assim como ficou em silêncio diante da reaproximação entre egípcios e russos,
fato inédito desde 1971.
Com a derrubada de Mursi e o golpe de Estado no Catar, acreditava-se
no retorno da hegemonia saudita no OM. Mas foi a Síria (ou pelo menos a feroz
resistência do regime nacionalista e laico do Ba’ath e de seu líder Bassar
al-Assad, contra a invasão de uma horda de mais de 100 mil homens estrangeiros,
armados e financiados pela Arábia Saudita, Catar, Turquia, Israel e EUA) que
freou momentaneamente a geoestratégia ocidental e de aliados regionais de
implodir o mundo árabe (e, por tabela, a África e a Ásia) em mini-Estados
étnico-confessionais.
A ofensiva contra o país árabe que foi o berço do Cristianismo e a
sede do primeiro império árabe-muçulmano, iniciada em 2011, sofreu um sério
revés no final de agosto deste ano, quando Washington, percebendo a derrota
iminente da horda de milicianos armados, decidiu atacar diretamente a nação
árabe, no que representou uma ameaça militar à Rússia e a China, aliadas da
Síria, e também atingidas pelas hordas de milicianos patrocinados pelas
potências ocidentais. Uma contra-ofensiva diplomática e militar (com o envio de
uma frota de 16 navios para o Mediterrâneo Oriental) do presidente russo
Vladimir Putin, que também não dispensou ameaças militares veladas contra o
reino saudita, salvou, paradoxalmente, Barack Obama de um desastre militar no
Oriente Médio.
A contra-ofensiva russa destruiu o sonho americano da unipolaridade,
porém, ao impedir o ataque à Síria, prevenindo a guerra ao Irã, abriu caminho
para os EUA distenderem momentaneamente a hostilidade com o chamado “eixo da
resistência” (ao domínio colonial ocidental), formado pelo Hizbollah, Irã,
Síria, o ambivalente Iraque (também pró-ianque) e a Armênia.
Como resultado, Washington firmou um acordo interino com Teerã sobre o
programa nuclear iraniano, repudiado pelo reino saudita e Israel. Com mãos
livres no Oriente Médio, Barack Obama pode dar prosseguimento às intervenções
imperiais, direta ou indiretamente, no Extremo-Oriente, na África e na América
Latina (Honduras, Paraguai e Venezuela), visando impedir o ressurgimento da
China como potência mundial.
Recuo no auto de fé?
No Extremo-Oriente, os EUA intervieram nas eleições malaias de maio
deste ano, ao tentar impor um governo fantoche em Kuala Lampur favorável ao
Acordo de Comércio Trans-Pacífico, assim como ameaçaram atacar a Coreia do
Norte. Em resposta ao cerco ocidental, a China criou uma zona de defesa aérea
no Mar da China Oriental, o qual os EUA foram obrigados a respeitar até o
presente momento.
Na África, após a destruição da Líbia em 2011, Washington tem
permitido à França desencadear uma “guerra por procuração”, para a reconquista
colonial da sua região subsaariana, que atingiu o Mali, em janeiro deste ano,
Níger e o Chade, nos meses posteriores, alcançando no presente momento a
República Centro-Africana, deixando um rastro de destruição, desagregações
territoriais e mortes. Ao mesmo tempo, mantêm ocupação militar em mais de 30
países africanos.
Fomos testemunhas, ao longo do ano de 2013, da longa marcha do “povo
eleito por Deus” cumprindo o seu “destino manifesto” de submeter toda a
humanidade aos seus desígnios. Pela primeira vez, em duas décadas, contudo, a
“nação eleita” encontrou uma barreira à expansão de seu projeto de reduzir os
países de todo o planeta a pequenas entidades territoriais, baseadas no
exclusivismo étnico-confessional, tal como é o Estado de Israel.
A derrota dos EUA na Síria, pela Rússia, resultando no fim da
unipolaridade, não representou, porém, o fim “estado de sítio” que a “casta dos
proprietários brancos anglo-saxões pós-protestantes/pagãos” impôs a toda
humanidade desde 1991 – não apenas impedindo o desenvolvimento econômico e
soberano das nações, mas também as atacando militarmente. O que demonstra que
sua missão é o resultado de uma fé na sua superioridade moral e racial sobre
todos os povos do mundo.
Ramez Philippe Maalouf é historiador (UERJ) e doutorando em Geografia
Humana (USP).
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